segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Quilombos do Amapá relatam violência policial e o racismo


 Rayane PenhaPublicado em: 02/12/2020 às 18:42

Um protesto durante o apagão revelou o descaso das autoridades com a população negra (Foto de Rudja Santos/Amazônia Real)


Macapá (AP) – No quarto dia de apagão no Amapá, em 9 de novembro, os moradores da comunidade de remanescentes de quilombolas Casa Grande organizaram um protesto. Como o restante da população amapaense, eles estavam sem energia elétrica e nenhuma notícia de quando o problema seria resolvido. Revoltas populares explodiram em várias partes, mas em poucas se viu uma reação policial tão desproporcional quanto nesta comunidade. Mais de 13 carros da Polícia Militar e a Tropa de Choque do Bope se locomoveram para acabar com a manifestação das 45 famílias.

O episódio é revelador do descaso das autoridades e do racismo estrutural quando o assunto envolve os povos quilombolas. Naquela ocasião, os moradores obstruíram o tráfego de veículos na rodovia AP-170, que passa pelo meio da localidade, para chamar a atenção da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). Eles interromperam o fluxo em dois momentos. No primeiro, às 14 horas, policiais chegaram e convenceram os moradores a liberarem a pista com a promessa de conseguir um carro-pipa rapidamente. Às 16 horas, sem resposta da CEA, nem carro-pipa, eles voltaram a bloquear a rodovia, dando início a uma situação que fugiu do controle. 


Protesto no quilombo Casa Grande (Foto cedida: Dayane Oliveira/@dayfotografiaap)


Pessoas que queriam ir de Macapá para outros municípios se revoltaram com o bloqueio da rodovia e passaram a agredir os moradores quilombolas. O marido de Tais Chagas, moradora da Casa Grande, teve a cabeça quebrada por uma tora de madeira no meio do confronto. Dentro da comunidade há uma base da Polícia, que agiu rapidamente para prender os quilombolas. “A polícia aqui da base prendeu o rapaz da nossa comunidade em vez de segurar os vândalos que estavam do lado deles (os agressores)”, disse Taís. Diante da injustiça, as mulheres da comunidade se reuniram e resgataram o jovem. “Eles ficaram a favor deles e contra a comunidade mais uma vez.”

Não demorou para que o reforço policial chegasse em peso. Segundo Taís Chagas, a força policial veio determinada a pôr um fim na manifestação. “O senhor governador Waldez Góes mandou a equipe de choque do Bope, a mais pesada, como se a gente fosse bandido. Só que a gente não é bandido, ficamos até nove horas da noite e aqui não veio um carro da CEA”, disse. Um carro do Corpo de Bombeiros foi até o local para apagar o fogo do protesto, enquanto a comunidade inteira estava sem água.


Protesto no quilombo Casa Grande (Foto cedida: Dayane Oliveira/@dayfotografiaap)


Distante a 25 quilômetros da capital Macapá, a comunidade de remanescentes de quilombolas Casa Grande não conta com unidade básica de saúde, não possui escola, nem transporte público, mas tem um posto policial para abrigar uma guarnição da Polícia Militar. De acordo com o morador Pedro da Silva, esses policiais têm impedido até os quilombolas de pescar. “Essa terra não é deles, mas a gente tem que passar pela área da base para ir pescar. Nós somos moradores daqui, filhos da terra.”

A iluminação pública é tão precária que os moradores da Casa Grande têm se apressado para fazer os consertos por conta própria. Foi o que aconteceu em 10 de novembro, quando a equipe da Amazônia Real voltou a visitar a comunidade. Ou eles consertavam o poste, correndo risco de acontecer algum acidente, ou o rodízio de energia para minimizar os efeitos do apagão teria sido inútil. A Assessoria de Imprensa da CEA informou que havia encaminhado essa demanda para o setor operacional e estava aguardando uma resposta. 

O descaso em Curiaú e Lagoa dos Índios



Elisabete Pereira, moradora do Quilombo Lagoa dos Índios
(Foto de Rudja Santos/Amazônia Real)


A comunidade Casa Grande, que ainda busca o reconhecimento territorial, fica nas terras do quilombo do Curiaú, reconhecidas em 2012 pela Fundação Palmares. As famílias vivem da extração e venda do açaí, da pesca e da agricultura. Sua história foi registrada no livro “A Utopia da Terra”, no capítulo sobre o interior do Amapá. Mas a situação enfrentada pelos moradores de Casa Grande se repete em outras áreas de remanescentes de quilombos no Amapá.

Rosineide Guedes, moradora da comunidade Curiaú, contou que o descaso com a comunidade do quilombo sempre existiu. “Quem não tem transporte para sair daqui, tem que esperar duas, três horas e só tem um ônibus. Eles não estão nem aí, ninguém mais faz nada, pode gritar ao vento que ninguém escuta mais e aqui nós sofremos”.

Juliana Oliveira, autônoma e moradora do quilombo da Lagoa dos Índios, relembrou dos cinco dias do apagão em que passaram sem energia ou água, uma situação crítica já que nem todos podiam contar com água de poço. “A partir do sexto dia que começou a vir umas três horas de tempo de energia, mas ainda está difícil porque de noite é uma quentura absurda, é muito carapanã, a gente fica a noite todinha acordada, e quando chega de dia tem que trabalhar cansado”, afirmou.

Elisabete Pereira, comerciante do quilombo da Lagoa dos Índios, relatou ter perdido toda a comida no freezer, e que nas idas e vindas da energia elétrica, por conta do rodízio, o aparelho acabou queimando. Para conseguirem dormir, a família levou os colchões para o pátio da casa, uma forma de suportar o calor.

A equipe da Amazônia Real, durante o apagão no Amapá, percorreu três quilombos, bairros periféricos de Macapá e áreas mais nobres. No residencial Amazonas, na rodovia Duca Serra, houve protestos também e a polícia negociou um acordo. A Duca Serra é a  principal via da capital na zona oeste. Os moradores do condomínio contaram à equipe de reportagem que tinham energia de dia e que queriam ela durante a noite para conseguirem dormir. Foi possível constatar que a energia do residencial foi restabelecida no período noturno. 

Já a realidade de Lagoa do Índios se traduz em uma única rua de acesso à comunidade, que não é asfaltada, e fica há menos de 20 minutos da rodovia Duca Serra. Além do asfalto que nunca chega, os moradores lutam por transporte público. Em 2 de outubro, antes do apagão, os quilombolas fecharam a rodovia para reivindicar o asfaltamento da comunidade, que já era para ter chegado. “Ele (Waldez Góes) tinha sido pego de roubo. Aí tem uma juíza lá de dentro (do condomínio) que para ele (o governador) não ser preso tiveram que desviar o asfalto da comunidade para dentro do condomínio”, afirma João Carlos Oliveira. O governador Waldez Góes responde a inúmeros processos judiciais.

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Polícia Militar para que a corporação comentasse as denúncias de violência e racismo nas ações policiais contra os moradores das comunidades quilombolas, durante o apagão, mas o órgão não respondeu as perguntas até o momento. 

Esta semana o governo do Amapá anunciou que o fornecimento de energia elétrica foi restabelecido nos 13 municípios que enfrentaram o apagão. O problema começou em 3 de novembro, afetando mais de 750 mil pessoas. A crise provocou o adiamento das eleições para o mês de dezembro.

Para os moradores da comunidade Casa Grande, a energia ainda é instável. “Na segunda-feira (30) ficamos desde a madrugada e só voltou às cinco horas da tarde, quando ajeitaram um poste que quebrou no Santo Antônio”, disse Taís Chagas. Santo Antônio é um distrito de Macapá, a capital do Amapá.


Tais Chagas, no quilombo Casa Grande ainda falta energia
(Foto de Rudja Santos/Amazônia Real)




Rayane Penha é jornalista e realizadora audiovisual amapaense, criadora e produtora executiva da produtora Catraia. É uma das idealizadoras e realizadora do Cine Catraia - projeto de cine clube itinerante no Arquipélago do Bailique, no Amapá. Também é coordenadora de comunicação do coletivo Utopia Negra Amapaense e representante do audiovisual no Conselho de Cultura Municipal.


https://amazoniareal.com.br/quilombos-do-amapa-relatam-violencia-policial-e-o-racismo/


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