Apreensão de madeira ilegal exportada do Pará aos EUA foi o estopim da operação que investiga o ministro do Meio Ambiente por contrabando. Ele teria usado Ibama para forjar documentos e favorecer tráfico internacional
Publicado 24/05/2021 às 14:02
Por Diogo Magri, no El País Brasil
Nunca antes na história um ministro do Meio Ambiente brasileiro foi investigado por supostas violações ambientais. O ineditismo foi quebrado na última quarta-feira (19), quando Ricardo Salles apareceu entre os investigados da Polícia Federal sob acusação de envolvimento num “grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais”. As 35 ordens de busca e apreensão que vasculharam propriedades de Salles e servidores apontados por ele para a pasta aconteceram em São Paulo, no Distrito Federal e no Pará e vem num péssimo momento para o fiel integrante do gabinete Jair Bolsonaro. Enquanto o Governo brasileiro tenta se livrar da imagem de “vilão ambiental” e se aproximar do Governo Joe Biden, foram justamente autoridades norte-americanas que ajudaram a deflagrar a operação da PF, ao denunciar irregularidades em carregamentos de madeira exportados para os Estados Unidos.
O objetivo da Operação Akuanduba, segundo a PF, é apurar crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando por meio da exportação ilegal de madeira que teriam sido cometidos por agentes públicos e empresários do ramo madeireiro. Além de Salles, estão entre os investigados 10 funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Ministério do Meio Ambiente, que foram nomeados pelo ministro e afastados de seus cargos —entre eles o presidente do Ibama, Eduardo Bim.
A investigação de Salles, que tem foro privilegiado por ser ministro, foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, um desafeto do bolsonarismo. Além das buscas, apreensões e afastamentos, Moraes determinou “a suspensão imediata”de uma despacho, editado no ano passado, que permitia a exportação de produtos florestais sem a necessidade da emissão de autorizações, e a quebra de sigilo bancário e fiscal de Salles e outros investigados. A justificativa da decisão leva em conta “os depoimentos, os documentos e os dados que sinalizam para a existência” do esquema de contrabando.
“A situação que se apresenta é de grave esquema criminoso de caráter transnacional. Esta empreitada criminosa não apenas realiza o patrocínio do interesse privado de madeireiros e exportadores em prejuízo do interesse público (…) mas, também, tem criado sérios obstáculos à ação fiscalizatória do poder público no trato das questões ambientais com inegáveis prejuízos a toda a sociedade”, afirma a PF, em trecho reproduzido na decisão de Moraes. O mesmo documento cita a frase dita por Ricardo Salles em reunião ministerial, que se tornou pública no fim de maio do ano passado, onde ele afirmou que a pandemia do coronavírus era uma “oportunidade” para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas [ambientais] (…) de baciada. Tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta”.
“O referido modus operandi (’parecer, caneta’) teria sido aplicado na questão das exportações ilícitas de produtos florestais”, descreve a decisão. Segundo explica o documento, o papel de Salles no esquema criminoso foi evidenciado após a apreensão nos Estados Unidos de madeira ilegal exportada do Pará pelas empresas Ebata Produtos Florestais Ltda. e Tradelink Madeiras Ltda. Por conta da apreensão, a Associação Brasileira das Empresas Concessionárias Florestais (Confloresta) e a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira no Pará (Aimex) procuraram Walter Mendes Magalhães, superintendente do Ibama no Pará, e Rafael Freire de Macedo, diretor de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas do Instituto —ambos nomeados e promovidos por Ricardo Salles— para “resolver a situação”. Ambos teriam emitido certidões e ofício “claramente sem valor” para liberar a exportação. “O que se viu na prática foi a elaboração de um parecer por servidores de confiança [do ministro Salles], em total descompasso com a legalidade”, afirma o texto de Moraes.
As autoridades norte-americanas não aceitaram os pareceres e fizeram a denúncia à Justiça brasileira, o que motivou o início das investigações em janeiro de 2021 e culminou nos mandados desta quarta (19). Os indícios da participação do ministro no contrabando foram reforçados pelo depoimento de outro servidor do Ibama, Hugo Leonardo Mota Ferreira, à Polícia Federal. O depoente, que atua no Instituto desde 2015, destacou a participação Leopoldo Penteado Butkiewicz, assessor especial de Salles, dizendo que “nunca tinha visto um assessor direto do Ministro do Meio Ambiente atuar de forma direta no Ibama (…) tendo por diversas vezes dado ordens diretamente [a Ferreira] e intercedido em favor de autuados”.
Assim que soube da operação, Ricardo Salles compareceu na sede da Polícia Federal em Brasília, por volta das 8h (horário de Brasília), com um assessor armado (que seria militar da reserva e atuaria como segurança do ministro) e cobrando explicações sobre o inquérito ao superintendente. Poucas horas depois, o ministro participou da abertura de um evento sobre desenvolvimento sustentável da indústria em Brasília e classificou operação como “exagerada” e “desnecessária”. “O Ministério do Meio Ambiente, desde o início desta gestão, atua sempre com bom senso, respeito às leis, respeito ao devido processo legal”, prometeu. Também disse que o inquérito induziu Alexandre de Moraes “a dar impressão de que teria havido possivelmente uma ação concatenada de agentes do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente para favorecer ou para fazer destravamento indevido do que quer que seja. Essas ações jamais, repito, jamais aconteceram”.
No mesmo evento, Salles disse que explicou ao presidente Jair Bolsonaro que “não há substância em nenhuma das acusações” e que “o assunto pode ser esclarecido com muita rapidez”. Com as atenções voltadas ao depoimento de Pazuello na CPI da Pandemia, nenhum membro do Governo federal se manifestou em suas redes sociais sobre a investigação da Polícia Federal, nem sequer Salles. Somente o filho do presidente e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, publicou em seu Twitter que Ricardo Salles “é o melhor ministro do Meio Ambiente da história deste país”.
Por outro lado, quem celebrou a Operação Akuanduba foi Alexandre Saraiva, ex-superintendente da PF no Amazonas. Saraiva apresentou uma notícia-crime ao STF no dia 14 de abril em que dizia que o ministro Salles e o senador de Roraima, Telmário Mota (PROS), agem “no intento de causar obstáculos à investigação de crimes ambientais e de buscar patrocínio de interesses privados e ilegítimos perante a Administração Pública”. No dia 15 de abril, Saraiva foi exonerado do cargo pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. Após os mandados desta quarta (19), o delegado publicou em seu Twitter: “Salmo 96:12: ‘Regozijem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta’”, para em seguida exibir o desenho de uma moto com a inscrição “Eu te disse, eu te disse!!”.
Os atritos entre Salles e Saraiva começaram após o então superintendente coordenar a maior apreensão da história de madeira extraída de maneira ilegal na região amazônica, em dezembro do ano passado. A carga é avaliada em 130 milhões de reais, representa mais de 200.000 metros cúbicos de madeira e foi apreendida no Pará. O inquérito da PF sobre o caso apontou que a madeira foi retirada ilegalmente de terras públicas griladas e as madeireiras responsáveis pelas toras não apresentaram documentação válida. Tudo foi confiscado na ação batizada de Operação Handroanthus. Depois da apreensão, o ministro Salles visitou o local duas vezes para prestar apoio aos apontados como criminosos, sugeriu que estava tudo certo com a documentação apresentada pelos madeireiros e pediu a liberação da madeira. Daí se seguiu a denúncia do ex-superintendente e sua exoneração no dia seguinte.
A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra o diretor-geral da PF por causa da troca do chefe no Amazonas, mas a atitude não gerou resultados. A notícia-crime apresentada por Saraiva ao STF foi repassada à Procuradoria Geral da República pela ministra Carmen Lúcia, mas também não caminhou até agora. Até o fechamento desta reportagem, a Superintendência Regional da Polícia Federal no DF não havia respondido às tentativas de contato para dar mais detalhes sobre a mais recente operação. O nome escolhido para a ação, Akuanduba, faz referência a uma divindade protetora do meio ambiente da mitologia dos índios Araras, que habitam o estado do Pará. “Segundo a lenda, se alguém cometesse algum excesso, contrariando as normas, a divindade fazia soar uma pequena flauta, restabelecendo a ordem”.
A investigação é mais um problema de imagem para o Brasil. “Infelizmente quem quiser saber sobre a questão ambiental precisa abrir as páginas policiais”, criticou Marcio Astrini, secretário-executivo da ONG Observatório do Clima. O levantamento mais recente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que a Amazônia perdeu em abril 581 quilômetros quadrados de sua cobertura vegetal (43% acima dos valores desmatados em 2020), o maior índice de desmatamento no mês de abril desde 2016, quando foram destruídos 440 quilômetros quadrados. No mesmo mês em que aconteceu a Cúpula do Clima liderada pelos EUA, Bolsonaro também enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prometendo acabar com o desmatamento ilegal no bioma até 2030.
https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-pf-chegou-a-boiada-criminosa-de-ricardo-salles/
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