Em pauta, o Selo Verde, um programa
do governo estadual em vigor desde abril que rastreia toda a cadeia
produtiva da pecuária. Ou seja: é capaz de apontar se o gado vem de uma
área desmatada ou não (por ora, o selo é só informativo e não há qualquer tipo de punição).
Quando sua origem está em áreas de pastagem sem passivos ambientais, o
gado ganha um “selo verde”, mostrando que é ambientalmente correto. Já
as áreas com déficit de reserva legal recebem um “selo amarelo”,
indicando que, caso houvesse punição, seriam autuadas, assim como
propriedades com “selo vermelho”, que possuem algum percentual de
desmate ilegal.
Pelo número do Cadastro Ambiental
Rural (CAR), um registro autodeclaratório que, por lei, todo imóvel
rural precisa ter, é possível verificar o tipo de selo de cada
propriedade no site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Sustentabilidade do Pará. Não é exatamente fácil fazer a consulta porque
o interessado precisa saber o número do CAR da propriedade que quer
pesquisar. Ainda assim, e mesmo
que os donos de áreas amarelas ou vermelhas não estejam sujeitos a
qualquer punição, a transparência do programa despertou a fúria de boa
parte dos pecuaristas no estado – os que desmatam, naturalmente. (Por
ora, além de não prever punição, o selo vale apenas para os pecuaristas e
não alcança os frigoríficos.)
A pecuária de corte é o motor da
economia na macrorregião de Xinguara e destaque na economia de todo o
Pará: com 20,9 milhões de cabeças, o estado possui quase 10% do rebanho
brasileiro. Mas, ao mesmo tempo em que alavanca o desenvolvimento
paraense, o gado também é um conhecido vetor da grilagem e do
desmatamento – não à toa, o Pará lidera a destruição da floresta em toda
a Amazônia Legal. É esse o estado de coisas que o Selo Verde, que foi
desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pretende
mudar.
No
embate entre ambientalistas e pecuaristas, o secretário Almeida estava
em franca desvantagem naquela manhã em Xinguara. Sem nenhum funcionário
da pasta para auxiliá-lo, encarava a agressividade verbal de Carlos
Fernandes Xavier, presidente da Faepa (Federação da Agricultura e
Pecuária do Pará); de Joel Carvalho Lobato, que comanda o Sindicato
Rural de Xinguara; de Roberto Paulinelli, dono de um dos maiores
frigoríficos da região; dos pecuaristas Roque Quagliato e Dirceu Gomes
Remor; e até fogo amigo, do titular da Secretaria Extraordinária de
Produção do Pará, Giovanni Corrêa Queiroz, que não escondia sua hostilidade ao Selo Verde.
“Só aqui no sindicato são dois leilões de gado por semana”, disse
Quagliato, apontando o dedo na direção de um grande salão contíguo onde
desfilam os animais a serem leiloados. “Como vamos escolher só os donos
que têm selo verde?”, questionou, exaltado.
Queiroz aquiesceu e acrescentou: era
preciso recuar e anular o programa Selo Verde. “Não é justo que os
pecuaristas e os frigoríficos se neguem a comprar gado de quem não tem o
selo verde”, disse. Remor e o presidente do sindicato de Xinguara, Joel
Lobato, garantiram ter ouvido da ministra da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, Tereza Cristina, a informação de que, se o Pará mantiver o
programa, ficará de fora de um acordo em andamento para aumentar a
exportação de carne bovina para a China – de longe, a maior compradora
do produto brasileiro. (Procurada pela piauí
para explicar sua pressão antiambiental, a ministra não respondeu às
mensagens deixadas em seu celular. Em nota, a pasta não esclareceu sua
posição. Disse apenas que “é uma decisão e responsabilidade de cada
governo estadual desenvolver e executar” ações como a do Selo Verde.
Lobato, por sua vez, afirmou que desconhece a posição da ministra Tereza
Cristina. Remor não quis se manifestar)
Durante a reunião em Xinguara, o
governador Barbalho mais ouviu do que falou. Mas a pressão dos
pecuaristas deu resultado. Na última semana, a Secretaria de Meio
Ambiente do Pará instalou formalmente um comitê “consultivo e
deliberativo” de acompanhamento do Selo Verde. A primeira tarefa do
comitê, formado por órgãos do governo federal e entidades ligadas à
pecuária, além da UFMG, será deliberar sobre uma proposta surgida na
reunião em Xinguara: restringir, mediante senha, o acesso à consulta do
Selo Verde apenas aos servidores públicos e aos próprios pecuaristas. Se aprovada, a restrição significará que os consumidores não saberão a origem daquilo que compram. Procurados pela reportagem, nem o governador nem o secretário de Meio Ambiente quiseram se manifestar.
“Será um retrocesso grande no
programa, cuja base é a transparência”, diz o procurador do MPF
(Ministério Público Federal) no Pará Ricardo Negrini. O Selo Verde,
segundo ele, é um avanço na fiscalização ambiental da pecuária paraense,
que começou nos anos 2000, quando o MPF ingressou com vinte ações na
Justiça contra os frigoríficos que adquiriam gado de áreas com passivos
ambientais no estado. Nessas ações judiciais, os procuradores
solicitavam o pagamento de multas que somavam 2 bilhões de reais. Para
se livrarem de uma possível condenação judicial, em 2009 os frigoríficos
assinaram os primeiros termos de ajustamento de conduta com o MPF em
que se comprometiam a fiscalizar a origem dos animais abatidos, no que
ficou conhecido como o “TAC da carne”. Atualmente, segundo Negrini,
cinquenta frigoríficos, responsáveis por 90% do processamento de carnes
no Pará, assinaram TACs com o MPF.
Esses acordos, no entanto, têm uma
fragilidade: só consideram o fornecedor direto do gado para o
frigorífico, ignorando o restante da cadeia de comércio (é comum o gado
ser negociado mais de uma vez entre produtores rurais antes de ir para o
abate). Assim, para driblar o TAC, muitos produtores triangulavam a
venda de gado para que chegasse ao frigorífico partindo de uma área
“limpa”. O Selo Verde elimina essa fragilidade porque analisa todas as
guias de trânsito animal, ou GTAs, documento obrigatório para o
transporte de gado vivo, gerido pela Adepará (Agência de Defesa
Agropecuária do Pará). Assim, mapeia a origem de cada animal —
desde que as GTAs, claro, não sejam fraudadas. Por ora, o selo vale
apenas para os pecuaristas e não alcança os frigoríficos.
À piauí,
Joel Lobato, do sindicato de Xinguara, disse que o setor é favorável às
boas práticas ambientais e que a atividade pecuária “deve ser a mais
transparente possível”. Ele negou que o
setor tenha proposto o fechamento do sistema por meio de senha, o que,
naturalmente, reduz a transparência dos dados. Lobato afirmou que o
setor defende a implantação do Selo Verde, mas somente após o governo
paraense regularizar todos os 250 mil registros do cars do estado. É uma
medida que tende a demorar anos porque, até hoje, com 13 anos de
existência, o car teve apenas 10% de seus registros devidamente
regularizados pelo governo. “Não podemos colocar o carro na frente dos
bois. Esse debate é açodado”, disse.
Em nota, o presidente da Faepa,
Carlos Xavier, afirmou que o uso das GTAs pelo Selo Verde fere a
“confidencialidade de algumas informações da atividade produtiva”
contida nesses documentos. Por isso, disse, as guias só podem ser
utilizadas para o controle fitossanitário do rebanho, e não para o
controle ambiental. Para Xavier, a implantação do Selo Verde pode
prejudicar as exportações de carne do Pará. “Os recursos necessários
para efetuar as adequações [nas propriedades] são vultosos para o
produtor que, por sua vez, tem dificuldades para acessar o crédito rural
em razão da carência de garantias reais ditadas pela ausência de uma
política de regularização fundiária.” Os pecuaristas Quagliato e Remor
não quiseram se manifestar e o secretário Giovanni Queiroz não respondeu
às mensagens deixadas pela piauí em seu celular.
O governo federal mantém desde 2010 o
Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), que oferece incentivos
fiscais para a recuperação de pastagens degradadas e plantio de
florestas, entre outras medidas, e é válido para todo o país. Segundo a
assessoria do Ministério da Agricultura, 50 milhões de hectares foram
inseridos no programa nos últimos dez anos.
Embora
intensa, a resistência do setor pecuário paraense ao Selo Verde não é
unânime. “Infelizmente a maior parte dos criadores não entende que o
programa vai agregar valor ao produto que oferecemos”, diz Mauro Lúcio
Costa, vice-presidente da Acripará (Associação de Criadores do Pará).
“Dizer que [o selo] vai inviabilizar a pecuária paraense é uma reação
puramente emocional, fora da realidade.”
Há cinco anos, Costa ajudou a
desenvolver um aplicativo de celular para rastrear a origem do gado que
compra na sua própria fazenda em Tailândia, interior do Pará. Até então,
todo fim de ano ele fazia um levantamento minucioso (e manual) do gado
que comprava ao longo dos doze meses anteriores, e sempre encontrava um
ou outro fornecedor com passivos ambientais. “Contratei uma empresa para
desenvolver esse aplicativo que faz esse rastreamento automaticamente.”
Hoje, o produtor afirma saber a origem de todos os seus 2,5 mil
animais. “Naquela época eu já sabia que o caminho seria o rastreamento
da cadeia produtiva. Não precisamos ter medo do novo.”
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