MEIO AMBIENTA - PARÁ
Pecuaristas do Pará abrem guerra contra o Selo Verde, uma iniciativa capaz de mostrar se o gado vem de área desmatada
PIAUÍ | Allan de Abreu | 30ago2021_13h13
O governador do Pará, Helder Barbalho, durante o lançamento do programa Selo Verde, em abril deste ano – FOTO: MARCO SANTOS/AGÊNCIA PARÁ O
governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), tinha o semblante cansado e a
camisa rosa clara parcialmente manchada de suor quando tomou lugar em
uma ampla mesa na sede do Sindicato Rural de Xinguara, no sudeste do
estado, no fim da manhã daquela quarta-feira, 21 de julho. Minutos
antes, Barbalho havia participado de mais um tradicional anúncio de
obras públicas no município, com discursos, vídeos e fotos para as redes
sociais. Ao lado dele na mesa, o secretário estadual de Meio Ambiente,
José Mauro de Lima O’de Almeida; à frente, políticos da região e a nata
dos pecuaristas de Xinguara. Em pauta, o Selo Verde, um programa do governo estadual em vigor desde abril que rastreia toda a cadeia produtiva da pecuária. Ou seja: é capaz de apontar se o gado vem de uma área desmatada ou não (por ora, o selo é só informativo e não há qualquer tipo de punição). Quando sua origem está em áreas de pastagem sem passivos ambientais, o gado ganha um “selo verde”, mostrando que é ambientalmente correto. Já as áreas com déficit de reserva legal recebem um “selo amarelo”, indicando que, caso houvesse punição, seriam autuadas, assim como propriedades com “selo vermelho”, que possuem algum percentual de desmate ilegal. Pelo número do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro autodeclaratório que, por lei, todo imóvel rural precisa ter, é possível verificar o tipo de selo de cada propriedade no site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará. Não é exatamente fácil fazer a consulta porque o interessado precisa saber o número do CAR da propriedade que quer pesquisar. Ainda assim, e mesmo que os donos de áreas amarelas ou vermelhas não estejam sujeitos a qualquer punição, a transparência do programa despertou a fúria de boa parte dos pecuaristas no estado – os que desmatam, naturalmente. (Por ora, além de não prever punição, o selo vale apenas para os pecuaristas e não alcança os frigoríficos.) A pecuária de corte é o motor da economia na macrorregião de Xinguara e destaque na economia de todo o Pará: com 20,9 milhões de cabeças, o estado possui quase 10% do rebanho brasileiro. Mas, ao mesmo tempo em que alavanca o desenvolvimento paraense, o gado também é um conhecido vetor da grilagem e do desmatamento – não à toa, o Pará lidera a destruição da floresta em toda a Amazônia Legal. É esse o estado de coisas que o Selo Verde, que foi desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pretende mudar.
No embate entre ambientalistas e pecuaristas, o secretário Almeida estava em franca desvantagem naquela manhã em Xinguara. Sem nenhum funcionário da pasta para auxiliá-lo, encarava a agressividade verbal de Carlos Fernandes Xavier, presidente da Faepa (Federação da Agricultura e Pecuária do Pará); de Joel Carvalho Lobato, que comanda o Sindicato Rural de Xinguara; de Roberto Paulinelli, dono de um dos maiores frigoríficos da região; dos pecuaristas Roque Quagliato e Dirceu Gomes Remor; e até fogo amigo, do titular da Secretaria Extraordinária de Produção do Pará, Giovanni Corrêa Queiroz, que não escondia sua hostilidade ao Selo Verde. “Só aqui no sindicato são dois leilões de gado por semana”, disse Quagliato, apontando o dedo na direção de um grande salão contíguo onde desfilam os animais a serem leiloados. “Como vamos escolher só os donos que têm selo verde?”, questionou, exaltado. Queiroz aquiesceu e acrescentou: era preciso recuar e anular o programa Selo Verde. “Não é justo que os pecuaristas e os frigoríficos se neguem a comprar gado de quem não tem o selo verde”, disse. Remor e o presidente do sindicato de Xinguara, Joel Lobato, garantiram ter ouvido da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, a informação de que, se o Pará mantiver o programa, ficará de fora de um acordo em andamento para aumentar a exportação de carne bovina para a China – de longe, a maior compradora do produto brasileiro. (Procurada pela piauí para explicar sua pressão antiambiental, a ministra não respondeu às mensagens deixadas em seu celular. Em nota, a pasta não esclareceu sua posição. Disse apenas que “é uma decisão e responsabilidade de cada governo estadual desenvolver e executar” ações como a do Selo Verde. Lobato, por sua vez, afirmou que desconhece a posição da ministra Tereza Cristina. Remor não quis se manifestar) Durante a reunião em Xinguara, o governador Barbalho mais ouviu do que falou. Mas a pressão dos pecuaristas deu resultado. Na última semana, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará instalou formalmente um comitê “consultivo e deliberativo” de acompanhamento do Selo Verde. A primeira tarefa do comitê, formado por órgãos do governo federal e entidades ligadas à pecuária, além da UFMG, será deliberar sobre uma proposta surgida na reunião em Xinguara: restringir, mediante senha, o acesso à consulta do Selo Verde apenas aos servidores públicos e aos próprios pecuaristas. Se aprovada, a restrição significará que os consumidores não saberão a origem daquilo que compram. Procurados pela reportagem, nem o governador nem o secretário de Meio Ambiente quiseram se manifestar. “Será um retrocesso grande no programa, cuja base é a transparência”, diz o procurador do MPF (Ministério Público Federal) no Pará Ricardo Negrini. O Selo Verde, segundo ele, é um avanço na fiscalização ambiental da pecuária paraense, que começou nos anos 2000, quando o MPF ingressou com vinte ações na Justiça contra os frigoríficos que adquiriam gado de áreas com passivos ambientais no estado. Nessas ações judiciais, os procuradores solicitavam o pagamento de multas que somavam 2 bilhões de reais. Para se livrarem de uma possível condenação judicial, em 2009 os frigoríficos assinaram os primeiros termos de ajustamento de conduta com o MPF em que se comprometiam a fiscalizar a origem dos animais abatidos, no que ficou conhecido como o “TAC da carne”. Atualmente, segundo Negrini, cinquenta frigoríficos, responsáveis por 90% do processamento de carnes no Pará, assinaram TACs com o MPF. Esses acordos, no entanto, têm uma fragilidade: só consideram o fornecedor direto do gado para o frigorífico, ignorando o restante da cadeia de comércio (é comum o gado ser negociado mais de uma vez entre produtores rurais antes de ir para o abate). Assim, para driblar o TAC, muitos produtores triangulavam a venda de gado para que chegasse ao frigorífico partindo de uma área “limpa”. O Selo Verde elimina essa fragilidade porque analisa todas as guias de trânsito animal, ou GTAs, documento obrigatório para o transporte de gado vivo, gerido pela Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará). Assim, mapeia a origem de cada animal — desde que as GTAs, claro, não sejam fraudadas. Por ora, o selo vale apenas para os pecuaristas e não alcança os frigoríficos. À piauí, Joel Lobato, do sindicato de Xinguara, disse que o setor é favorável às boas práticas ambientais e que a atividade pecuária “deve ser a mais transparente possível”. Ele negou que o setor tenha proposto o fechamento do sistema por meio de senha, o que, naturalmente, reduz a transparência dos dados. Lobato afirmou que o setor defende a implantação do Selo Verde, mas somente após o governo paraense regularizar todos os 250 mil registros do cars do estado. É uma medida que tende a demorar anos porque, até hoje, com 13 anos de existência, o car teve apenas 10% de seus registros devidamente regularizados pelo governo. “Não podemos colocar o carro na frente dos bois. Esse debate é açodado”, disse. Em nota, o presidente da Faepa, Carlos Xavier, afirmou que o uso das GTAs pelo Selo Verde fere a “confidencialidade de algumas informações da atividade produtiva” contida nesses documentos. Por isso, disse, as guias só podem ser utilizadas para o controle fitossanitário do rebanho, e não para o controle ambiental. Para Xavier, a implantação do Selo Verde pode prejudicar as exportações de carne do Pará. “Os recursos necessários para efetuar as adequações [nas propriedades] são vultosos para o produtor que, por sua vez, tem dificuldades para acessar o crédito rural em razão da carência de garantias reais ditadas pela ausência de uma política de regularização fundiária.” Os pecuaristas Quagliato e Remor não quiseram se manifestar e o secretário Giovanni Queiroz não respondeu às mensagens deixadas pela piauí em seu celular. O governo federal mantém desde 2010 o Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), que oferece incentivos fiscais para a recuperação de pastagens degradadas e plantio de florestas, entre outras medidas, e é válido para todo o país. Segundo a assessoria do Ministério da Agricultura, 50 milhões de hectares foram inseridos no programa nos últimos dez anos.
Embora intensa, a resistência do setor pecuário paraense ao Selo Verde não é unânime. “Infelizmente a maior parte dos criadores não entende que o programa vai agregar valor ao produto que oferecemos”, diz Mauro Lúcio Costa, vice-presidente da Acripará (Associação de Criadores do Pará). “Dizer que [o selo] vai inviabilizar a pecuária paraense é uma reação puramente emocional, fora da realidade.” Há cinco anos, Costa ajudou a desenvolver um aplicativo de celular para rastrear a origem do gado que compra na sua própria fazenda em Tailândia, interior do Pará. Até então, todo fim de ano ele fazia um levantamento minucioso (e manual) do gado que comprava ao longo dos doze meses anteriores, e sempre encontrava um ou outro fornecedor com passivos ambientais. “Contratei uma empresa para desenvolver esse aplicativo que faz esse rastreamento automaticamente.” Hoje, o produtor afirma saber a origem de todos os seus 2,5 mil animais. “Naquela época eu já sabia que o caminho seria o rastreamento da cadeia produtiva. Não precisamos ter medo do novo.”
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