Presidente violou norma da Anvisa que veta a difusão de informações enganosas sobre medicamentos e sem respaldo científico; agência sanitária afirma que não abriu procedimento interno contra Bolsonaro por não ter recebido denúncia sobre o caso
As aparições do presidente Jair Bolsonaro expondo caixas de
cloroquina como um medicamento eficaz contra a Covid já lhe renderam
alguns pedidos de impeachment por crime de responsabilidade contra a saúde pública e até uma notícia-crime por charlatanismo
(anunciar cura infalível). Agora, especialistas afirmam que o
presidente também violou norma da Anvisa que limita a divulgação ou
publicidade de medicamentos. E isso aconteceu em pelo menos 18 ocasiões
no intervalo de 7 meses – sem qualquer tipo de atuação por parte da
Anvisa.
Entre 26 de março e 29 de outubro de 2020, o presidente exibiu por 18 vezes a marca de hidroxicloroquina de duas fabricantes nacionais, a Apsen e a EMS, recomendando-as para tratamento da Covid, segundo levantamento feito pela Repórter Brasil nas redes sociais e nos eventos que contaram com a presença do presidente. A droga da Apsen apareceu em 14 ocasiões, enquanto a da EMS, em 6 – em dois momentos o presidente exibiu ambas as marcas. A medicação, contudo, é comprovadamente ineficaz contra a doença.
O principal canal de divulgação de Bolsonaro foram suas lives às
quintas-feiras (10 vezes), em vídeos que tiveram 16,2 milhões de
visualizações só no Facebook (boa parte dos vídeos no YouTube foi
excluída por infringir regras da plataforma). O presidente também
estimulou o consumo dos produtos em publicações no Instagram, levou as
caixinhas para coletivas de imprensa, exibiu-as em transmissões ao vivo e
eventos políticos. (veja a lista completa ao final do texto).
No entanto, a resolução 96 de 2008
da Anvisa proíbe a divulgação de marcas de remédios de forma “não
declaradamente publicitária” e veda a difusão de mensagens enganosas sem
respaldo científico. O texto está respaldado na lei 9.294 de 1996,
que determina que as comunicações sobre fármacos tarja preta ou
vermelha (caso da hidroxicloroquina) devem ser obrigatoriamente
direcionadas a profissionais de saúde e publicadas somente em veículos
técnico-científicos.
“Divulgar informações falsas e não amparadas cientificamente sobre um
medicamento, além de ser charlatanismo, obviamente confronta a
legislação sobre propaganda [de medicamentos], porque induz a
comportamentos errados, que é o que a norma combate”, afirma o
farmacêutico Dirceu Raposo de Mello, que foi presidente da Anvisa entre
2005 e 2011, época em que a resolução foi editada. Ele destaca que a
agência poderia ter aberto um processo administrativo para apurar a
conduta do presidente e, comprovando-se a propaganda enganosa, Bolsonaro
deveria ser multado e obrigado a retratar as mensagens.
Ainda que o presidente possa não ter sido incentivado ou pago pelas
fabricantes para virar o seu “garoto-propaganda”, Mello é taxativo: “O
que ele [Bolsonaro] faz é propaganda. Eu posso propagandear, sem ser
remunerado, um serviço de um amigo meu, por exemplo. Aí estou fazendo
uma propaganda”, afirma.
Segundo o ex-presidente da Anvisa, um dos objetivos da resolução na
época em que foi publicada era justamente evitar que pessoas famosas
fizessem propagandas de medicamentos tarjados, e por isso se obrigou que
apenas profissionais de saúde promovessem esses remédios, e somente
para público especializado.
“Pode ser considerado tanto uma infração sanitária como um crime
mesmo. Não só por ter infringido a resolução que proíbe propaganda de
medicamentos, mas também se encaixa em charlatanismo, que é oferecer
cura sem ter a capacitação técnica para isso, nem permissão estatal para
indicar medicamentos”, concorda o advogado e professor Fernando Aith,
diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário
(Cepedisa), da Faculdade de Saúde Pública da USP.
“A lei é para todos. A legislação precisa ser respeitada”, diz a
consultora e advogada Maria José Delgado Fagundes, que trabalhou por 25
anos em vigilância sanitária, sendo 12 deles na Anvisa, onde cuidou das
propagandas de medicamentos. Ela chefiou este departamento da agência
até sua extinção, em 2012. “A divulgação de medicamentos têm restrições
legais e só podem ser divulgadas as utilizações aprovadas, porque elas
possuem as evidências científicas que sustentam aquele registro”,
completa.
Para o advogado sanitarista Silvio Guidi, do escritório Vernalha
Pereira, a atitude do presidente não pode ser interpretada como
propaganda “do ponto de vista jurídico”, mas a Anvisa poderia mover uma
ação judicial contra o presidente para que ele não mais estimule o
consumo do remédio para tratamento da doença. “A Anvisa tem legitimidade
para isso, e um dos seus papéis é zelar pela saúde coletiva. A postura
dele [Bolsonaro] é sim um crime de responsabilidade contra a saúde
pública”.
A Anvisa, entretanto, disse à Repórter Brasil que a
norma se aplica “a outras práticas de comunicação”, como, por exemplo,
“divulgação de informações por meio de redes sociais”.
Com o presidente como garoto-propaganda, a Apsen vendeu 58,8 milhões
de comprimidos em 2020, ou 30% a mais que no ano anterior, segundo disse a empresa à CPI da Covid.
A farmacêutica, assim como a EMS, também teve apoio de Bolsonaro e do
Itamaraty para receber da Índia a matéria-prima para fabricação da
cloroquina.
‘10 comprimidos dão conta do recado’
A resolução da Anvisa define a publicidade de medicamentos como o
“conjunto de técnicas e atividades de informação e persuasão com o
objetivo de divulgar conhecimentos, tornar mais conhecido e/ou
prestigiado determinado produto ou marca, visando exercer influência
sobre o público” para “promover e/ou induzir à prescrição, dispensação,
aquisição e utilização de medicamento”.
“Este regulamento se aplica à propaganda, publicidade, informação e
outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de
medicamentos”, diz outro trecho da resolução. À Repórter Brasil,
a Anvisa afirmou que a “divulgação de informações por meio de redes
sociais” também se enquadra na norma. “Cabe esclarecer que as denúncias
[de violação da norma] são avaliadas pela Anvisa de forma detalhada
observando o contexto da divulgação e seu conteúdo”, informou a agência,
em nota.
A norma afirma ainda que “não é permitida a propaganda ou publicidade
enganosa, abusiva e/ou indireta” e que “fica vedado utilizar técnicas
de comunicação que permitam a veiculação de imagem e/ou menção de
qualquer substância ativa ou marca de medicamentos, de forma não
declaradamente publicitária, de maneira direta ou indireta”, em qualquer
tipo de mídia eletrônica.
Para configurar publicidade, é “imprescindível” exibir não apenas o princípio ativo, mas a marca do medicamento, declarou a Anvisa este ano, em uma ação judicial. Apesar disso, a agência não investigou a atuação do presidente ao promover a marca de hidroxicloroquina das duas fabricantes. Questionado pela Repórter Brasil, o órgão disse que a ouvidoria interna não recebeu denúncias sobre o caso. “A atuação da agência se limita à prescrição de medicamentos conforme o registrado na bula do produto. O uso fora da bula, o chamado “off label”, é uma prerrogativa médica”, afirmou.
O objetivo das normas sanitárias é impedir o consumo irracional de
medicamentos, especialmente para uso fora da bula (caso da
hidroxicloroquina para Covid), mas Bolsonaro agiu na direção contrária.
“Dez comprimidos dá conta do recado aí (sic)”, recomendou o presidente,
enquanto exibia os remédios das duas marcas, na live de 26 de março de 2020,
o primeiro dia em que promoveu os produtos. Ele também contrariou a
bula ao afirmar na ocasião que os remédios “não têm efeito colateral”.
Ao se infectar pela Covid, em julho do ano passado, o presidente alçou o curandeirismo ao nível máximo ao dizer que o medicamento o fez “muito bem” em apenas “12 horas”.
A promoção dos dois produtos continuou até a live de 29 de outubro de 2020,
quando Bolsonaro exibiu a marca da EMS ao tratar de um estudo sobre
suposta redução de internações por Covid devido à cloroquina. “Quem toma
não vai pro hospital e muito menos vai ficar entubado”, disse.
A legislação sanitária, contudo, obriga a divulgação de informações
completas ao se promover um medicamento. Porém, Bolsonaro deixou de
dizer que se tratava de um estudo observacional, ou seja, com menor
relevância e incapaz de atestar a comprovação científica. Os próprios
autores alertam que a pesquisa tem “várias limitações”. Bolsonaro
continua promovendo a medicação até hoje, mas não exibe mais as marcas
nacionais.
A Apsen informou, por meio de nota, que segue as resoluções da Anvisa
e que recomenda a hidroxicloroquina apenas para tratamentos previstos
em bula (malária, lúpus e reumatismo). “[A empresa] em nenhum momento
deu aval ou solicitou a qualquer pessoa que seus produtos fossem
divulgados fora desse contexto”. Já a EMS disse que “sempre
comercializou seus medicamentos para os fins previstos em bula” e que
sua relação com os governos é “institucional” (veja as respostas na íntegra).
O Palácio do Planalto foi procurado desde a última quarta-feira, mas não respondeu.
***
Bolsonaro como ‘garoto-propaganda’ da cloroquina
Confira as 18 vezes em que o presidente exibiu caixas das fabricantes Apsen e EMS
26/03/2020: Videoconferência dos líderes do G20
Marca: Apsen
26/03/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais*
Marca: Apsen e EMS
Facebook: 3,8 milhões de visualizações
Fim de março de 2020: Palácio da Alvorada – coletiva de imprensa
Marca: Apsen e EMS
09/04/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais*
Marca: Apsen
Facebook: 260 mil visualizações
06/06/2020: Foto no Instagram
Marca: EMS
09/07/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais
Marca: EMS
Facebook: Dois vídeos com 1,3 milhões e 2,2 milhões de visualizações, respectivamente
16/07/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais
Marca: EMS
Facebook: 1,6 milhão de visualizações
YouTube: 263.161 visualizações
19/07/2020: Palácio da Alvorada
Marca: Apsen
23/07/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais
Marca: Apsen
Facebook: Dois vídeos com 1 milhão e 696 mil visualizações, respectivamente
YouTube: 258.211 visualizações
23/07/2020: Palácio da Alvorada
Marca: Apsen
25/07/2020: Foto no Instagram
Marca: Apsen
31/07/2020: Bagé, no Rio Grande do Sul – saindo de visita à Escola Municipal Cívico-Militar de Ensino Fundamental São Pedro
Marca: Apsen
Audiência: 1,1 milhão de visualizações
06/08/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais / Eduardo Pazuello*
Marca: Apsen
Facebook: 1 milhão de visualizações
13/08/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais*
Marca: Apsen
Facebok: 795 mil visualizações
20/08/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais
Marca: Apsen
Facebook: 1,1 milhão de visualizações
YouTube: 67.314 visualizações → foi marcado como “impróprio para alguns usuários”
03/09/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais
Marca: Apsen
Facebook: 988 mil visualizações
YouTube: 96.814 visualizações
16/09/2020: Palácio do Planalto – Posse do Eduardo Pazuello
Marca: Apsen
29/10/2020: Live – perfil pessoal das redes sociais*
Marca: EMS
Facebook: 1,5 milhão de visualizações
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