quinta-feira, 3 de junho de 2021

Governo secreto

Matéria de CAPA da Revista Istoé 

Marcos Strecker/03/06/21 - 09h30

TUDO DOMINADO Flávio, Eduardo e Carlos se dividem entre a articulação do governo, política externa e comunicação. Ação ocorre à revelia da máquina pública (Crédito: Roberto Jayme/Ascom/TSE)


Para aumentar seu poder personalista e evitar o controle da sociedade, Bolsonaro criou uma administração oculta que vai da Saúde ao Orçamento

O governo paralelo de Bolsonaro tem vários tentáculos. A articulação política passou a ser feita em boa medida pelas mãos do filho 01, o senador Flávio Bolsonaro. Mesmo sem ocupar nenhum cargo no Executivo, ele é o responsável por negociar cargos-chave da República entre os diversos partidos e grupos de interesse. São dele as indicações do novo ministro da Justiça, Anderson Torres, do diretor da Polícia Federal, Paulo Maiurino, e até do mais novo ministro do STF, Kássio Nunes Marques. A política externa também foi confiada ao grupo familiar. O Itamaraty tem a coordenação informal do filho 03, o deputado Eduardo Bolsonaro, que chegou a sonhar com o posto de chanceler e transformou a chancelaria em correia de transmissão de teses estapafúrdias e conspiratórias copiadas da direita radical americana, que desgastaram as relações com a China. E a comunicação do governo foi transferida, na prática, da Secretaria de Comunicação (Secom) para o gabinete do ódio, outra estrutura oculta sob a coordenação de Carlos Bolsonaro, o filho 02, que é vereador no Rio de Janeiro mas se mostra um assíduo frequentador do Planalto e do Palácio da Alvorada.

SECRETA A médica Nise Yamaguchi negou contato com o presidente, mesmo havendo provas. Ela debatia a edição e redação de decretos (Crédito:Divulgação)


Além dos filhos, o presidente se cerca de aliados que se movimentam fora do radar da opinião pública, como ocorreu com a pandemia. No caso da Saúde, nenhum dos participantes do gabinete oculto ocupou cargo oficial no Ministério da Saúde, mas todos participaram de eventos e reuniões oficiais com Bolsonaro para tratar de assuntos relacionados à crise. A estrutura estabeleceu estratégias sanitárias ignorando os técnicos do governo e o próprio ministro da Saúde. Ditou políticas de governo longe dos holofotes, com objetivos escusos. A gravidade dessa constatação pode ser traduzida em números: a pandemia já caminha para a cifra de meio milhão de mortos. Quantas vidas poderiam ser salvas com uma gestão transparente e profissional, que respeitasse as indicações da ciência? Além de responsabilizar os culpados pela tragédia, a CPI deve chegar a esse número.

Gabinete paralelo estabeleceu estratégias sanitárias ignorando os técnicos e o próprio ministro

Para integrantes da CPI, esse gabinete paralelo foi fundamental para a atitude negacionista. Documentos enviados à comissão mostram que ocorreram pelo menos 24 reuniões com pessoas de fora do Ministério no Planalto ou no Palácio do Alvorada. O presidente participou pessoalmente de pelo menos 18. O relator Renan Calheiros diz que a comissão já tem provas de que seus integrantes se reuniam com o mandatário. Um papel importante pode ter sido exercido por Arthur Weintraub, que é ex-assessor da Presidência e hoje atua na OEA. Esse advogado, irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, declarou em uma live de abril de 2020 que o presidente o havia incumbido de “estudar isso aí”, em referência ao coronavírus. A peça-chave desse gabinete, acredita a cúpula da CPI, é Osmar Terra (MDB), que é médico e ex-ministro da Cidadania. Ele foi uma das primeiras pessoas públicas a lançar a tese da “imunidade de rebanho” – a contaminação generalizada como forma de se alcançar a imunização coletiva, uma adaptação irresponsável de um conceito da imunologia que favoreceu o aparecimento de novas variantes do vírus. Pela apuração da CPI, a radicalização a favor do uso da cloroquina e do tratamento precoce ocorreu precisamente em seguida às reuniões do gabinete paralelo. A oncologista Nise Yamaguchi, que também seria integrante e é defensora do uso da cloroquina, encontrou-se com o presidente em momentos-chave. Um coincidiu com a demissão do ex-ministro Nelson Teich. Outro precedeu o pronunciamento oficial do dia 8 de abril, quando o mandatário defendeu o medicamento. No dia 15 de maio do ano passado, um novo protocolo para o uso do fármaco ocorreu após uma reunião com essa médica.


NA CPI O senador Rogério Carvalho, do PT, fez o mapa do gabinete paralelo: núcleo negacionista, núcleo operacional e gabinete do ódio (Crédito:Divulgação)


A compra de vacinas, uma providência em que o governo foi no mínimo negligente, também ocorreu à revelia da estrutura do Ministério da Saúde. O ex-chefe da Secom, Fabio Wajngarten, passou a interceder diretamente com a farmacêutica Pfizer. Carlos Bolsonaro e o assessor internacional do presidente, Filipe Martins, participaram de reuniões para aquisição do imunizante. Também numa ação alheia à estrutura do Ministério foi o vôo para Israel atrás de um spray nasal milagroso contra a doença, que não teve nenhum resultado prático e custou ao menos R$ 400 mil. A comitiva contou com a participação de Ernesto Araújo e mais dois diplomatas, de Martins, Wajngarten, dois deputados (Eduardo Bolsonaro e Hélio Lopes, amigo do presidente), dois técnicos em saúde e um segurança. Como a “missão” não achou nenhum spray viável e virou um fiasco, o objetivo passou a ser definido como “compra de imunizantes” (mesmo que Israel não fabrique nenhum contra a Covid) e, depois, como “cooperação científica e tecnológica”.

A CPI está cercando esse desgoverno. O depoimento de Yamaguchi, na terça-feira, mostrou a mesma tática usada por outros apoiadores do presidente: mentir e negar sistematicamente suas responsabilidades. Ela negou que tenha tido encontros privados com o presidente, mas a agenda de Bolsonaro registra pelo menos quatro reuniões com a médica, uma a sós. Além disso, ela já havia declarado publicamente que tinha contatos permanentes com o mandatário.


COM PROVAS O presidente da CPI, Omar Aziz, diz que já há motivos para indiciamentos. O relator Renan Calheiros cita evidências do gabinete paralelo (Crédito:Edilson Rodrigues)

“Desconheço a existência de um gabinete paralelo. Não teria nem como enunciar pessoas que participem”, afirmou. Mas, como lembrou o senador Tasso Jereissati, ela não se constrangeu em articular e orientar políticas para a Saúde que se chocavam com o trabalho do titular da pasta. Nise atuava no Planalto à revelia do ministro e até do diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres. Em seu depoimento, a médica reiterou que defende o “tratamento precoce”, que foi classificado um dia depois na CPI como “uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente” pela infectologista Luana Araújo. O senador Otto Alencar, que é médico, fez uma das intervenções mais duras contra Nise, ao confrontar seus conhecimentos sobre a doença. “Ouvi a defesa de uma tese equivocada, já superada por outros países”, disse. O atrevimento das negativas da médica aumentou seu papel na tragédia. O presidente da comissão, Omar Aziz, chegou a se exaltar quando Nise minimizou a importância da “vacinação aleatória”. “Não escutem o que ela está dizendo. Todos os brasileiros precisam de duas vacinas “, disse o senador. Ele também classificou a defesa que ela fez da cloroquina de “grande engodo”. Para ele, a CPI já tem motivos para pedir ao Ministério Público o indiciamento de agentes públicos por crime sanitário e contra a vida. “Temos provas suficientes de que o Brasil não quis comprar vacina”, afirmou. Um dos próximos integrantes do gabinete paralelo a serem ouvidos é Arthur Weintraub. Outro deve ser o empresário Carlos Wizard.

Já se questiona a estratégica da CPI, que na prática criou um palco para o discurso negacionista. Mas parece estar funcionando. Involuntariamente, Nise Yamaguchi reforçou a convicção da CPI de que havia um gabinete paralelo. Ela mostrou mensagens com o médico aliado Luciano Azevedo em que alertava que um decreto em defesa da cloroquina poderia “expor o presidente”. Ela queria com isso mostrar que não propôs diretamente alterar a bula desse medicamento, como denunciou o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas acabou provando que as orientações oficiais eram discutidas à revelia da equipe do Ministério. Ela e outros membros discutiram a edição e a redação de minutas de decretos presidenciais. O senador Rogério Carvalho, do PT, apresentou na CPI um “organograma” desse gabinete, dividido em três núcleos. O “negacionista” seria responsável por “orientar e organizar as políticas públicas de enfrentamento da Covid”. Seus titulares seriam Wizard, Yamaguchi, Luciano Azevedo, o virologista Paolo Zanotto, o deputado federal Ricardo Barros e Osmar Terra. O “núcleo operacional” cuidaria de “operacionalizar a teoria de imunidade de rebanho” e tinha como integrantes membros do governo: Arthur Weintraub, Eduardo Pazuello, Mayra Pinheiro (a capitã cloroquina) e o ex-chanceler Ernesto Araújo. Já o “núcleo do gabinete do ódio”, para Carvalho, deveria “disseminar informações falsas sobre a pandemia” e era formado por Wajngarten, Filipe Martins, Eduardo Bolsonaro e Carlos Bolsonaro. Até o relatório final, a CPI deverá sistematizar as responsabilidades, mas o quadro do senador petista não deve estar muito distante da realidade.


ELEIÇÃO BENEFICIADA Presidente da Câmara, Arthur Lira teve a ajuda do Orçamento secreto para se eleger este ano (Crédito:GABRIELA BILO)


Essa administração oculta também funcionou em outras áreas. O escândalo do Orçamento paralelo mostra que até parte das contas públicas já são operadas com fins privados e políticos. Ao contrário do que sempre propagandeou, o governo criou uma forma secreta e personalista de distribuir recursos longe dos olhos públicos. O Ministério do Desenvolvimento Regional e sua estatal Codevasf têm sido usados para direcionar obras, como a instalação de poços artesianos, e para a compra de máquinas pesadas, como tratores, por preços até 259% acima dos valores de referência. São R$ 3 bilhões das chamadas “emendas de relator”. O ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre, foi o líder de indicações, contemplado com R$ 277 milhões. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, foi o vice-campeão em verbas secretas: conseguiu R$ 125 milhões. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira, manejou R$ 114 milhões do Orçamento. A destinação desses recursos coincidiu com a eleição da nova cúpula da Câmara e do Senado e tudo indica que foi usada para angariar apoio às chapas vencedoras, que apoiam o presidente. Na prática, uma forma de comprar o Congresso. Juristas e advogados apontam a flagrante ilegalidade. A lei proíbe a utilização das emendas para influenciar votos no Congresso. Além disso, as próprias emendas “de relator” seriam inconstitucionais, pois servem apenas para driblar as regras das emendas individuais ou de bancadas de estados, que seguem limitações previstas na Constituição.


RECURSOS Líder do governo no Senado e membro da CPI, Fernando Bezerra Coelho recebeu R$ 125 milhões do Orçamento secreto (Crédito:Jefferson Rudy)


Contra a Constituição

Esse modus operandi bolsonarista é uma rejeição essencial da Constituição, que estabelece os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Os braços desse governo das sombras, ao contrário, operam para driblar o controle social e viabilizar decisões que contrariam o interesse público, como a CPI da Covid deixa claro. E eles estão em áreas vitais. A PF, como denunciou o ex-ministro Sergio Moro, passa aos poucos a ter nomes alinhados ao clã Bolsonaro, que tem interesses em regiões como o Rio de Janeiro, onde corre o inquérito das rachadinhas de Flávio Bolsonaro. Como acontece na pasta da Saúde, os corpos funcionais dos ministérios da Educação e da Secretaria da Cultura também são desmontados para serem substituídos por nomes sem qualificação técnica. Os novos integrantes são bolsonaristas responsáveis apenas por viabilizar a agenda ideológica do presidente.

As estruturas do Ibama e do ICMBio revelam um caso ainda mais grave. Estão sendo desmanchadas por um motivo ainda mais suspeito: o favorecimento de ações criminosas de desmatadores e garimpeiros ilegais. O Itamaraty tem um corpo de servidores dos mais profissionais da administração pública, reconhecido internacionalmente e selecionado em exames rigorosos, uma exceção dentro do governo. Mas as diretrizes da política internacional passaram a ser ditadas por figuras estranhas, sem currículo, respeitabilidade ou mesmo responsabilidade para falar em nome do País.


O presidente até o momento desprezou a máquina pública, preenchendo a administração com militares para favorecer seu projeto autoritário de poder

PEÇA-CHAVE O deputado Osmar Terra foi um dos primeiros a lançar a tese da “imunidade de rebanho”, que ajudou a criar novas variantes do vírus (Crédito:Divulgação)


São todas ações que negam a burocracia do governo e fogem ao crivo da sociedade. Bolsonaro adula os servidores com fartos benefícios corporativos, para cooptá-los, ao mesmo tempo em que negligencia a burocracia. Critica a “influência esquerdista” em órgãos e ministérios, mas faz isso apenas porque gostaria que fossem aparelhados por seus próprios aliados ideológicos, sem nenhum espírito republicano. O presidente até o momento desprezou a máquina pública, preenchendo a administração com fardados para militarizar o governo. Com o mesmo espírito, quer minar a independência das Forças Armadas, submetendo-as à sua agenda política. Numa demonstração ousada de que está conseguindo esse objetivo, constrange o Exército a não punir o ex-ministro Eduardo Pazuello por ter participado de uma manifestação política ao seu lado, contra as normas da corporação. Mais do que isso, reafirmou o poder do general ao nomeá-lo para um cargo de confiança na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência. O mandatário também mandou o Ministério da Justiça realizar um estudo nacional sobre a “qualidade de vida” dos policiais civis e militares, estratégia de aliciamento que serve apenas como um passo a mais para aumentar sua influência sobre esses agentes e minar o poder dos governadores. Não é uma surpresa. Afinal, o presidente usa o discurso de um governo “liberal”, mas na verdade sonha apenas com uma máquina estatal hipertrofiada e dócil, a serviço de seu projeto autoritário de poder.


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