quarta-feira, 27 de março de 2024

A TEVÊ COLOCOU A MÚSICA NO “MUDO”

questões artísticas (Material indicado a apresentadores de programas musicais)

A história só depõe contra a extinção de programas com atrações musicais relevantes nas emissoras: de Roberto Carlos a Rita Lee, muitos surgiram na televisão
 
Revista Piauí | Julio Maria | 27 mar 2024_09h03
 
Foto: João Bosco com o apresentador Rolando Boldrin no Som Brasil: anos atrás, passava boi, passava boiada, e um monte de música caipira na tevê aberta (Madalena Schwartz/Memória Globo)

Algo no silêncio entre uma palavra e outra que Kalil Filho dizia olhando para as câmeras da TV Excelsior naquele 30 de março de 1965 dava pistas de que ele sabia estar pisando no coração da história. “E aqui está a apresentação da última melodia desta noite. Arrastão. Elis Regina.” Ninguém, além dos inferninhos do Beco das Garrafas, no Rio, conhecia Elis quando as tevês mostraram ao país a cantora de corpo inteiro diante da orquestra da emissora. Arrastão caminhava por risos e dramas até chegar ao apogeu eruptivo que a fazia girar os braços e transbordar a voz. O que era dito até então em rodas intelectuais da Zona Sul do Rio se tornava planetário. Elis, mostrava a tevê, era real.

Até então, Ed Sullivan, na parte Norte do hemisfério, já havia materializado muita gente desde a estreia de seu programa The Ed Sullivan Show, na CBS, em 1948. Enquanto a Excelsior mostrava quem era Elis, ele levava a seu palco cinco irmãos negros da cidade de Gary, Indiana. Ed era um torpedo. No primeiro dia em que teve os Beatles como atração, fazendo-os decolar em solo norte-americano, seu programa foi visto por 73 milhões de pessoas. Uma fake news bem humorada pregou que o feito chegou a reduzir até os índices de criminalidade nas ruas dos Estados Unidos. “Os ladrões também estavam assistindo a gente”, afirmou mais tarde, com graça, o beatle George Harrison. Mas, naquele dia, ao olhar para Michael Jackson com 6 anos de idade, Sullivan ficou desnorteado. Assim que o número acabou, os chamou para cumprimentá-los e avisou: “Olhem bem para ele”, disse, apontando para o garoto menor, Michael, que usava um chapéu cor de rosa: “Esse menino vai longe.”

Música e televisão, quando unidas, elevaram à décima potência a euforia do áudio iniciada pela Era do Rádio no instante em que deu a ele uma imagem. Antes de se divorciarem, um fenômeno que tem sido observado nos últimos anos, com a extinção dos programas musicais relevantes das grades de tevê e cada vez menos espaços para música nos que já existem, as partes envolvidas ganharam altos valores palpáveis e outros tantos imateriais investindo em um jogo de mão dupla. O artista entrava com o prestígio e a emissora, com o espaço. Assim, o canal ganhava audiência e o artista triplicava o cachê. Nos casos das produções mais discretas, os músicos novatos garantiam visibilidade e relevância. Nos mais ambiciosos, surgiam alguns dos primeiros popstars pós era de Luiz Gonzaga. Secos & Molhados, Elis Regina, Wilson Simonal, Jorge Ben, Ronnie Von, Roberto Carlos e toda a Jovem Guarda, Rita Lee e toda a Tropicália, os festivais e toda a MPB, Belchior e todo o pessoal do Ceará. Tudo foi revelado em alguma emissora de tevê.

O rompimento das tevês com a música tem deixado um inexplicável vácuo e, mesmo em tempos nebulosos de streaming, a sensação é de que alguém, além dos artistas, está perdendo muito com isso. A Globo encerrou o reality de auditório The Voice, em dezembro de 2023, depois de dobrar seu faturamento em 2019 e embolsar 115 milhões de reais. Encerrou, disse, porque tinha coisa melhor por vir. Do outro lado, o enfraquecimento de ilhas musicais menos monetizadas, portanto, mais democráticas, como o programa Ensaio (que nunca foi o mesmo desde a morte de seu idealizador, Fernando Faro, em 2016, limitando-se a reprises) e o Viola, Minha Viola (que, sem sua idealizadora, Inezita Barroso, morta em 2015, exibe reprises desde 2019), ambos da TV Cultura, foi um duro golpe nos valiosos espaços de artistas menos visíveis. Raro espaço longevo, o Altas Horas, de Serginho Groisman, na Globo, ainda consegue dar relevância à música que se faz ao vivo.

O que está prometido pela Globo para assumir o lugar do The Voice é outra coisa: um reality show nos moldes do BBB dirigido por Boninho. Seu nome será Estrela da Casa e a proposta é a de mostrar cantores e cantoras “de todos os gêneros musicais” (como anuncia a emissora, o que já seria tecnicamente impossível). Eles irão construir suas carreiras sob muita tensão e discórdia (o alimento da audiência de Boninho que jamais deveria ser o de um compositor) em um confinamento transmitido 24 horas por dia. Não precisa estrear para sabermos que não será a música a protagonista do negócio.

Silvio Santos, por sua vez, tenta reeditar, desde o dia 3 de março, uma de suas maiores criações ao lado do Domingo no Parque: o Show de Calouros, colocado pela primeira vez no ar em 1977. Sua filha, Patrícia Abravanel, a nova apresentadora, recebeu como calouros na estreia a drag queen Gysella Popovic, um grupo cover da banda One Direction e alguns dançarinos de K-Pop. Ou seja: muito mais entretenimento do que música, como sempre foram todos os covers do Show de Calouros surgidos sobretudo nos anos 1980. Com respeito aos saudosistas, a música e os músicos nunca foram bem tratados nos ambientes de palco circenses criados por boa parte dos apresentadores do programa de auditório. Em alguns deles, a produção cobrava ‘jabás’ para músicos terem um espaço que deveriam merecer por talento. Em outros, colocava o baterista para tocar de pé em uma caixa e um prato decorativos enquanto o cantor dublava a própria voz. Disso, a música jamais pode sentir falta.

Para além do circo dos reality shows que as emissoras conseguem ver quando pensam em programas musicais de abrangência pop existe um ativo de afeto incalculável que só os músicos e os grandes atores são capazes de produzir para as audiências televisivas. É a emoção em estado bruto. Se vivemos a maior profusão desses talentos musicais, não identificáveis por falta de curadoria, não por ausência de material humano, a tevê está perdendo o trem que a levaria à ponta de um novo negócio. Abrir espaços generosos para talentos trazidos por especialistas contratados para investigarem ruas, teatros, casas de show e redes sociais, e não pescarem nos charts dos mais tocados do Spotify, como fazem os curadores dos festivais, abriria uma frente poderosa em seu conceito de musicais e devolveria, remodelada aos novos tempos, o status de plataforma de lançamento de artistas de carreira.

Que contem a história de vida de tais artistas, mas garantam que as canções sejam interpretadas do início ao fim, comoventes e arrebatadoras, inéditas e vitais. E que sejam elas, as canções, as estrelas dos programas. “Tudo o que você fizer na vida que pretenda ser grandioso”, me disse o revolucionário diretor de programas na Globo dos anos 1970, Nilton Travesso, no intervalo de uma entrevista da qual jamais esquecerei, “tenha 90% de dedicação e 10% de loucura.” Ele dizia ser preciso ter fé no dom, como os festivais de Solano Ribeiro tiveram em Elis Regina, Chico Buarque, Jair Rodrigues e Gilberto Gil, ou como os programas de Paulinho Machado de Carvalho depositaram em Roberto, Erasmo e Wanderléa. A música e o intérprete podem ter mais força do que as ideias de um produtor do The Voice
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Julio Maria
É jornalista e crítico musical. Autor dos livros Nada será como antes, biografia de Elis Regina (editora Master Books), e Ney Matrogrosso: a Biografia (Companhia das Letras)


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