Onde a autora relata sua paciência com ouvintes de rádio
comunitária que pedem música conservadora e a aventura de um jornal de
reportagens autônomo — além de refletir sobre experiências latino-americanas
ligadas a mídia e hegemonia
Por Elaine Tavares, no Palavras Insurgentes
Podem-se separar esses dois conceitos de comunicação como sendo, o
primeiro, uma comunicação feita com o controle da sociedade organizada, e o
segundo, como a comunicação feita numa comunidade específica. Mas, se fixarmos
bem o olhar, vamos ver que é só uma divisão didática. Tanto uma como a outra
precisa da organização comunitária. E aí é que a porca torce o rabo. Vivemos
num país e — arrisco dizer – num continente, onde a participação é coisa que
ainda precisa ser aprendida. Países colonizados, amordaçados, useiros e
vezeiros de ditaduras militares, de governos conservadores e patriarcais. Somos
uma gente muito pouco acostumada a ter espaço onde dizer a palavra. Por conta
disso, estamos sempre sendo representados por pequenos grupos que, com o passar
do tempo, se acham no direito de dizer o que gostamos e o que não gostamos.
Democracia direta é coisa distante para nós.
Isso nos leva a questão principal que é a da comunidade. O que é isso?
Como definir? O filósofo Enrique Dussel tem um conceito para comunidade que eu
gosto muito. Ele diz que comunidade é o povo organizado, são as forças em ação
num determinado lugar. Ora, isso nos coloca um problema, com o qual nós, que
trabalhamos com a tal da comunicação comunitária, temos de lidar todo o dia.
Vou falar da minha aldeia, para que vocês possam —
se for bem sucedida – aceder ao universal. Temos uma rádio comunitária no
bairro onde moro em Florianópolis, o Campeche. Ela foi criada pelo movimento
organizado que se formou num momento em que a comunidade foi chamada a discutir
um plano diretor. Foi um tempo rico. As pessoas se juntavam, debatiam,
discutiam o bairro e, depois de muita reunião, formularam uma proposta. Foi a
primeira comunidade de Florianópolis a fazer isso, nos anos 80. Mas, nesse processo,
quem atuou não foi o bairro todo, eram alguns. Principalmente gente de
esquerda, mas também gente nem tão de esquerda, mas que queria pensar o bairro
e garantir uma vida boa. Esse movimento fez nascer um jornal impresso, o Fala
Campeche, que passou a ser uma voz importante no bairro, dando notícias de
todo o debate do plano diretor, assim como de todos os olhares que o
construíram. Essa caminhada desse povo organizado, mais tarde, acabou gestando
a Rádio Comunitária Campeche.
A nossa rádio, portanto, é filha de um longo processo de organização da
comunidade, de um conjunto de pessoas que, por vezes, nem está tão afinada na
política, mas que se afina no desejo de coisas boas para o bairro. É uma
aliança tênue e frágil que temos de refazer a toda hora. Mas, ainda assim,
temos conseguido manter a rádio viva desde 1994, com programas ao vivo desde
2004. Ali têm espaço todas as forças vivas que atuam no bairro, o que garante
voz inclusive a algumas com as quais nem concordamos muito. Mas, isso é a democracia
e a rádio está ali para o debate.
Isso significa que, tal qual na vida mesma, a luta de classe também se
faz no âmbito da comunicação comunitária. É o nosso desafio diário. Todas as
mazelas da sociedade se expressam naquele espaço. A comunidade se vê retratada
na rádio e ocupa o espaço. Então, temos de lidar o tempo todo com a
contradição. De um lado, todos os pressupostos que garantem ser a nossa rádio
um espaço democrático, livre, formador de conhecimento, fomentadora dos debates
e de outro, a sempre constante presença de forças que representam o contrário.
Isso significa que a peleia pelas mentes e corações é diária. Assim que fica
claro o quanto esse vocábulo “comunidade” encerra de conflito, contradição e
complexidade.
Comunitário e popular
Nesse sentido, a comunicação comunitária se
diferencia totalmente de outras propostas de comunicação popular que se fazem
sem essa tensão. É o caso de outro projeto no qual tomo parte que é a revista Pobres
e Nojentas, uma revista de reportagem que busca mostrar aquilo que a mídia
normal não mostra. Esse é um projeto unilateral, que existe a partir do desejo
de cinco jornalistas e alguns parceiros eventuais. Nós olhamos a cidade, as
comunidades de periferia, os problemas, e decidimos a pauta.
Damos espaço para quem queremos e nos damos o
direito de não dar voz a quem acreditamos que não mereça. É uma revista
parcial, fincada na ideia de que aquele é um espaço dos que não têm ainda onde
expressar sua voz. Ainda assim é um projeto de comunicação popular porque se faz
na perspectiva do mundo popular e se distribui gratuitamente nas comunidades.
Da mesma forma pode-se falar do blog “Palavras Insurgentes”, mantido por mim na
rede mundial de computadores. Faço ali comunicação popular porque o mundo que
retrato é o mundo popular. Mas, a edição, coordeno eu. Eu decido os temas, eu
escrevo, faço minha análise, expresso minha opinião. E, ainda que seja um
jornalismo feito desde abajo, ele depende só de mim.
Por isso que fazer comunicação comunitária é um desafio mais instigante.
Porque nessa proposta estamos em grupo, fazendo coisas em perpétuo negociar. E
isso não é coisa fácil. Porque fazer comunicação nas e para as comunidades é
possível com uma só mão. Barbada, desde que tenhamos a convicção política e os
meios de produção. Mas, fazer comunicação com as comunidades exige o descarte
completo do ego, das certezas, e da intolerância.
Dou um exemplo com o qual nos deparamos todos os dias na rádio
comunitária. Nossa rádio nasceu com o firme propósito de formar conhecimento,
fugir dos temas impostos pela indústria cultural, debater os problemas locais.
Mas, como agir com o associado que quer ouvir na rádio a música que é sucesso
nacional, ainda que alavancada pela indústria? Como propor à comunidade um
gosto que é de um grupo em particular? Essas são questões que estão sempre em
pauta, discutidas à exaustão. Porque ser comunitária pressupõe estar em
diálogo, e não servindo como correia de transmissão de um pensamento
particular. É claro que, nesse caso, o debate se faz ao vivo, com o ouvinte
participando e tendo a chance de se contrapor.
Outro elemento da comunicação comunitária que é bem contraditório é a
legalização. Hoje, em Santa Catarina temos mais de cem rádios comunitárias
legalizadas. E, conforme um trabalho de pesquisa da jornalista Terezinha Silva,
pouquíssimas desse grupo poderiam de fato ser chamadas de comunitárias. No mais
das vezes são rádios religiosas ou comerciais mesmo, na maior cara dura.
Algumas delas, inclusive, extrapolando seu espaço de abrangência e adentrando no
espaço da outra. Como é o caso de uma 98.3, exatamente a mesma frequência que a
Rádio Campeche, que tem sede em São José e pode ser ouvida no Campeche.
A legalização, ao mesmo tempo em que deu certa segurança para quem faz a
comunicação, colocou a proposta numa camisa de força. São tantas as regras que
boa parte da tesão que há em fazer comunicação comunitária se esvai. Muitas
vezes, as propostas comunitárias tem uma dinâmica própria que acabam tendo de
se enquadrar numa lei fria e isso afasta muita gente.
Outro elemento perturbador no mundo da comunicação comunitária é a febre
dos gestores. Como o governo Lula inaugurou uma interessante lógica de
financiamento de propostas populares – via os pontos de cultura – muitas das
pessoas que antes faziam comunicação como uma ação política na busca pela
transformação começaram a se transformar num monstro informe chamado “gestor
cultural”. Isso gerou a criação exponencial de pequenas ONGs que vão se
formando com duas ou três pessoas, e essas criaturas vão se fazendo gerentes de
projeto, passando a administrar os recursos públicos como quem administra uma
empresa. A ponto de o objeto em si da coisa – que é fazer rádio, fazer teatro,
fazer cultura – passar a ser apenas um adereço, um detalhe, quando não um
atrapalho, ficando a ação principal enredada no “gerir o projeto”. Penso que
aqui reside um nó górdio, que precisa de muito debate.
De certa forma, sou muito cética quanto a esse chamado avanço da
comunicação comunitária no Brasil. Porque há muito que avançar em termos
estruturais para que a comunicação comunitária possa de fato cumprir seu papel
com mais eficácia. Por enquanto, eu penso que somos apenas resistência, e muito
pouco eficaz às vezes. É uma coisa importante, mas precisa dar um salto de
qualidade.
Durante os debates da Conferência Nacional de Comunicação, a gente
tentou fazer a discussão num outro nível, mas não tivemos eco. Seguiu
hegemônica a ideia capitaneada pelo Fórum Nacional de Democratização das
Comunicações, que é a proposta de democratização. Ora, democratizar a
comunicação pressupõe melhorar o que aí está. E, penso que esse modelo não deve
ser remendado. Ele é ruim. Precisa de um outro, novo. Claro, conspiro da
proposta de Rosa de Luxemburgo de que é preciso fazer reforma e revolução, tudo
junto ao mesmo tempo. E é por isso que não consigo trabalhar só com a ideia de
democratização. Há que democratizar o que for possível nesse modelo, é certo.
Mas, ao mesmo tempo, temos de abrir cunhas para a construção de outro modelo.
Soberania comunicacional. Ou seja, a comunicação de fato na mão do povo, com
todas as idiossincrasias que isso pode provocar. Por isso a experiência
comunitária é tão rica, porque ali já estamos exercitando esse fazer. A
soberania popular pressupõe o embate permanente dentro da comunidade, a luta de
classe, viva, também no campo comunicacional.
Formar redes e tomar o poder
A república bolivariana da Venezuela foi o primeiro país da América do
Sul a pensar um novo modelo de comunicação. Durante anos o governo bolivariano
conversou com as forças vivas do país e conseguiu, em 2009, constituir uma lei
– chamada Lei Resorte (lei de responsabilidade social em radio e televisão) –
que deu nova cara para o jeito de fazer comunicação. Aqui no Brasil segue
olimpicamente ignorada. Pois a lei venezuelana dá condições concretas para que
a comunicação comunitária se faça, e mais do que isso, garante espaço de
difusão a tudo o que é produzido nas mais remotas regiões do país. Emissoras
privadas precisam ter até 70% de programação local, e foram criadas várias
emissoras de rádio e TV estatais e públicas. Ou seja, houve uma mudança
estrutural (revolução) e não apenas remendo (reforma). Ali, a democratização da
comunicação não significa um pouquinho mais de negros, um pouquinho mais de
índios, um pouquinho mais de homossexuais no rádio e na TV. Ali está em curso
um processo de soberania comunicacional. Mudança, transformação.
É fato que esse processo não se dá de maneira
isolada. O país também vem atuando de outra forma no embate da colonização
mental que sempre tomou contra de nuestra América. Assim que a
soberania comunicacional só pode ser possível no Brasil se houver outro Brasil
também. Isso, por si só já nos demarca a titânica tarefa que temos.
Nesse sentido, nós, comunicadores comunitários e populares precisamos
atuar para garantir mais eficácia no nosso fazer. Isso talvez só seja possível
formando redes, potencializando nossos escritos e produções de vídeo e rádio.
Em Santa Catarina, estamos tentando. Criamos em 2010 a Rede Popular Catarinense
de Comunicação que reúne rádios comunitárias, agências de informação, blogs,
jornais eletrônicos e impressos. A ideia é que cada parceiro reproduza a
informação do outro, fazendo com que um fato que seria conhecido apenas no
bairro ou na comunidade, possa se expandir para além de suas fronteiras. Nessa
experiência vamos capengando e acertando. Por vezes, alguns veículos ficam em
dificuldade, não conseguem criar informação própria, mas a coisa vai indo. Um
ajuda o outro, fazemos oficinas, cursos, encontros. Vamos caminhando, porque já
compreendemos que sozinhos não temos eficácia, ficamos presos no gueto.
Mas, ainda assim, isso não é suficiente. Nossas redes são pequenas,
regionalizadas. Como combater com esses poucos “soldados” a força de uma
informação divulgada num Jornal Nacional, ou num Jornal da Record? Essas chegam
a todo território nacional, em cada cantinho desse país, massivamente.
Então, nossa meta
maior precisa ser aquela que o velho Brizola tanto insistiu: temos de tomar
esses meios. Eles precisam estar nas mãos populares. E essa não é uma tarefa
fácil. Mas, precisa estar no nosso horizonte. Nenhuma comunicação comunitária
ou popular, por melhor que seja, pode prescindir desse alcance nacional, dessa
penetração de massa. O espectro é público, é nosso e temos de tomá-lo. Como
vamos fazer isso é o que temos de conspirar nesses encontros que fazemos pelos
cantões do Brasil, sob pena de vivermos eternamente na resistência. Basta de
resistir. É hora de avançar. A luta pela soberania comunicacional é a luta classista
por outro Brasil. Isso significa que as pessoas que fazem a luta pela
democratização das comunicações, ou pela expansão da comunicação comunitária
popular precisam também fazer a luta geral, pela mudança e pela transformação
radical. Caso isso não seja feito seguiremos dando remédio para o monstro… E
isso, só interessa à classe dominante.
Um comentário:
Me sintonizo com esta excelente análise, somando com mais uma dimensão da comunicação; por meio da qual os povos, seja em comunidades urbanas ou tradicionais, sejam reconhecidos e abordados, não apenas por suas culturas diversas e força de resistência, mas pela capacidade que as linguagens presentes nessas tradições,têm de transformar. Transformar não apenas visões e posturas a partir do cognitivo, mas também do sensível, do subjetivo, do criativo. Um instrumento, um meio ou até uma ferramenta - se assim quisermos chamar, que nós comunicadores e comunicadoras somos os primeiros a termos que reconhecer e experimentar pela dança, pelo canto, pelo ritmo, por exemplo. Eis o desafio - a comunicação de dentro para fora; do eu para o tu e não o contrário como insistentemente seguimos praticando. Abraços e parabéns a autora do artigo.
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