No evento realizado
pela Frentex no dia 27 de agosto, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a
professora de filosofia da USP, Marilena Chauí, dissertou sobre o tema
"Liberdade de Expressão para quem?". Seu pronunciamento segue abaixo
na íntegra.
Obviamente há coisas polêmicas, como a opinião de Marilena sobre... o jornalismo de opinião.
Obviamente há coisas polêmicas, como a opinião de Marilena sobre... o jornalismo de opinião.
Debate à vista!
*******
I. Democracia e
autoritarismo social
Estamos acostumados
a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para
a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática
liberais identificam a liberdade com a ausência de obstáculos à competição,
essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se
reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição
política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia
apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo
critério da eficácia, medida no plano do poder executivo pela atividade de uma
elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia
é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania
organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de
escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções
técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços
breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples idéia de um
regime político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de
uma sociedade e, assim, considerá-la:
1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia ( igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia ( igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. forma política na
qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e
necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A
democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os
conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes:
como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não
a da mera oposição?
3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos ( econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos ( econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
4. graças à idéia e
à prática da criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas
pela ausência de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto
é, pela capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas
próprias normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa
da liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma
definição positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade
possibilita aos cidadãos instituir contra-poderes sociais por meio dos quais interferem
diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. pela criação dos
direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às
mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência
e, conseqüentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de
maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é,
aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela
criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a
sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois
não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela
possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;
6. única forma
sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a
evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só
ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares
contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em
outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de
democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as
classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam
novos direitos;
7. forma política na
qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença
de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela
existência das eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência
política) não significam mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder
está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o
ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras,
os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa
não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio
afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém
aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é
afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que
uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além
de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república,
respeito à vontade da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é
condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que
essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade
democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina,
dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os
principais traços da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes
dificuldades para instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade
brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e
oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a
lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática
democrática da representação — o representante não é visto como portador de um
mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. A
burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma organização do
trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios opostos aos
democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto ao direito à
informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura temporal da ação
política.
Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
A esses obstáculos,
podemos acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o
encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado.
Economicamente, trata-se da eliminação de direitos econômicos, sociais e
políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da
classe dominante, isto é, em proveito do capital; a economia e a política
neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do
capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais,
transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a
privatização dos direitos transformados em serviços, privatização que aumenta a
cisão social entre a carência e o privilégio, aumentando todas formas de
exclusão. Politicamente o encolhimento do público e o alargamento do privado
colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual
a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é
impossível, qual seja, o direito à informação.
II. Os meios de
comunicação como exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.
Do ponto de vista
econômico, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria
porque são empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da
chamada globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo
nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de
domínio na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte
concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a
presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com
ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de
lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria
metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e
aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora,
jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de
internet, satélites, etc..
No caso do Brasil, o
poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do
Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o
que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma
privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos
a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar
as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um
bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a
informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue contra dois
direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a
isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em
público e ter suas opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra,
a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam informados para que
possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder
econômico dos meios de comunicação.
A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.
A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.
A ideologia da
competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode
em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro.
O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem
deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é
permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve
ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma
distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou
de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que
podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber,
que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a
divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os
incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.
Enquanto discurso do
conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de
comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la
como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio,
na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das
últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver.
O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária,
educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas
em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação
espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir
na vida. O principal especialista, porém, não se confunde com nenhum dos
anteriores, mas é uma espécie de síntese, construída a partir das figuras
precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos
econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que
devassa, eleva e rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros — em
suma, o chamado “formador de opinião” e o “comunicador”.
Ideologicamente, o
poder da comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e idéias,
pois, dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista,
o formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu
poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais
terríveis desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos
midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio
de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção
de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução Francesa,
Hegel considerou que uma de suas marcas essenciais é afirmar que, por
princípio, todos são suspeitos e que os suspeitos são culpados antes de
qualquer prova. Ao praticar o terror, a mídia fere dois direitos
constitucionais democráticos, instituídos pela Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a presunção de inocência (ninguém pode
ser considerado culpado antes da prova da culpa) e a retratação pública dos
atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, isto é, atingidos pela
infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para assegurar esses dois direitos que
as sociedades democráticas exigem leis para regulação dos meios de comunicação,
pois essa regulação é condição da liberdade e da igualdade que definem a
sociedade democrática.
III. Faz parte da
vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de
programa de televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do
espetáculo: programas
de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças
contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária
ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma
peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de lazer e
cuidados corporais.
As ondas sonoras do
rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios
sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de
cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de
jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida
doméstica. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam
uma cena doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos
entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é
exibida, os hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou
a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os
competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos
são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências,
indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até
hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao
promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou
indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém:
“o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você
gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o
que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou
desagrada.
Também tornou-se um
hábito nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em
telefonemas a “personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no
momento, que filme foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual
a lembrança infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam
aos 15 anos de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou
ecológica, ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor
do sorvete preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os
assuntos se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se
reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou
“achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.
Como observa
Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram
irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas
noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja
aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido
por alguém confiável Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades
autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências e estas se
convertem imediatamente em propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um
público cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado,
o propagandista moderno evita slogans grandiloqüentes e se atém a ‘fatos’,
dando a ilusão de que a propaganda é informação”.
Qual a base de apoio
da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto
comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações
telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda.
Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e
garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública
passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada,
abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as
relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais
aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto
sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das
relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e
políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações
pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre
pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os
gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são
mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições,
pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder
político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida
privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos,
agrado e aversão.
Não é casual, mas
uma conseqüência necessária dessa privatização do social e do político, a
destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião
pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era
definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou
coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao
direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião
pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida
política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso
público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão.
É sintomático que,
hoje, se fale em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica
que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim
que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido,
isto é, que se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma
de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como
se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se
exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a
manifestação pública de sentimentos.
Nada mais
constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em
que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um
acontecimento falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e
interpretam o que se passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar
e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes
envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a
incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos
e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse
procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e
do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento.
Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”,
portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor
pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.
É possível perceber três deslocamentos sofridos pela idéia e prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da idéia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social pela idéia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação. Esses deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo escreveu que o povo estava contra a opinião pública!
O caso mais
interessante é, sem dúvida, o do jornalismo impresso. Em tempos passados, cabia
aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de
notícias. Sem dúvida, um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito,
de um lado, pelos editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo
modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”,
determinação da página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras,
do tamanho do texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios
eletrônicos e digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto
estão ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada,
pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e
pela televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no
mercado de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns
chamam a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).
O resultado dessa
situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida
e, freqüentemente, inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro,
deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião,
ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre
elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo
investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os
jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a
grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não
fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os
noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é
interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.
Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:
Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:
1) uma vez que o
jornalista concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado
a ir além disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o
valor de um fato e a ser tomada como um acontecimento real
2) os efeitos da concentração
do poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal,
rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e
grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou
privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à
liberdade de expressão, que fundamenta a idéia de opinião pública. Hoje, porém,
os conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas
também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de
custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da
imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.
Esses dois aspectos
incidem diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão
de credibilidade e plausibilidade. Rápido, barato, inexato, partidarista,
mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não
investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da
plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião
pública.
De fato, a
desinformação é o principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais,
no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de
maneira a impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.
Ausência de
referência espacial ou atopia: as diferenças próprias do espaço percebido
(perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio
e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e
proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal
modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina
Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.
Ausência de
referência temporal ou acronia: os acontecimentos são relatados como se não
tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente
atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências;
existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem
transmitidos. Têm a existência de um espetáculo e só permanecem na consciência
dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua
transmissão.
Como operam
efetivamente os noticiários?
Em primeiro lugar,
estabelecem diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o
horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o
popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite e buscando
sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo,
por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador
ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e
sistemática de uma ordem apaziguadora: em seqüência, apresentam, no início, notícias
locais, com ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de
perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com ênfase em crises e
conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às
notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos (maremoto,
terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem
com as notícias nacionais, enfatizando as idéias de ordem e segurança,
encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E, nos finais
de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais
(nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro, proteção a
espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento de
bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o mundo
vai bem, obrigado.
Paradoxalmente,
rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem
de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos
fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. Como
desconhecemos as determinações econômico-territoriais (geográficas,
geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e as
conseqüências dos fatos noticiados, não podemos compreender seu verdadeiro
significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas
exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num
mesmo tempo (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado
completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua
transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação,
mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos
informados sobre tudo.
Se não dispomos de
recursos que nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens
transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos
a TV ou quando navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as
imagens escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo
transmissor das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que
a internet é o mundo.
A multimídia
potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos.
Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e
sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo
mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. No sistema de
comunicação multimídia a própria realidade fica totalmente imersa em uma
composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não
apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em
experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que
fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo
texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e
futura, como num ponto único do universo.
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
Na perspectiva da
democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle
dessa massa cósmica de informações. Ou seja, o problema é saber quem tem a
gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza
essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em
consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja,
a concentração e centralização da informação, pois tecnicamente, os sistemas
informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção
de novos dados pela combinação dos já coletados.
---------
Pedro Estevam da Rocha Pomar
(11) 3091-4465/4466 e 85681925
(11) 3091-4465/4466 e 85681925
Nenhum comentário:
Postar um comentário