sexta-feira, 23 de junho de 2023

Fuligem de queimadas na África atravessa o Atlântico e atinge atmosfera amazônica



Estudo estima que de 30% a 60% do volume total deste tipo de poluição medida na Amazônia venha da África; metodologia usada permitirá compreender melhor consequências do transporte de poluentes para o clima global

Publicado: 22/06/2023 | Texto: Ivan Conterno Arte: Joyce Tenório

Incêndio florestal na África - Foto: Domínio público

Incêndio florestal na África - Foto: Domínio público

As correntes de ar transportam pela atmosfera da Terra materiais essenciais para a fertilização dos solos e os ciclos naturais, conhecidos como aerossóis. Embora essas partículas suspensas no ar possam nutrir biomas distantes, aerossóis contendo fuligem da queima de combustíveis e florestas também contribuem para desequilíbrios no clima e na saúde. Tendo isso em vista, pesquisadores brasileiros e alemães monitoraram os aerossóis provenientes das queimadas na África, revelando como e em que quantidade eles afetam a atmosfera amazônica. Os estudos com modelos climáticos sobre a Amazônia até o momento não levavam em conta as emissões da África.

Bruna Holanda 
Foto: Arquivo pessoal
Os cientistas conseguiram diferenciar as partículas de fumaça originadas na floresta das que foram transportadas do continente africano. Essas diferenças se dão em relação ao tamanho e à capacidade de absorção de calor, entre outras características físicas e químicas. “O transporte e a sazonalidade da fumaça da África através do Atlântico eram conhecidos com base em medidas de satélite e de avião. Sabia-se também que as propriedades físicas e químicas afetavam os aerossóis sobre a Amazônia. Contanto, ainda não se sabia em que proporções e como distinguir isso da poluição local”, esclarece ao Jornal da USP Bruna Holanda. Pesquisadora do Instituto de Física (IF) da USP e do Instituto de Química Max Planck de Mainz, na Alemanha, a brasileira é primeira autora do artigo com os resultados do estudo, publicado na revista Communications Earth & Environment, do grupo Nature.

Embora haja períodos em que a floresta amazônica receba nutrientes essenciais, agora se sabe que o volume de poluição também transportado da África corresponde a um percentual significativo do total da poluição medida no bioma: de 30%, na estação seca, a 60%, na chuvosa. Essa descoberta inédita destaca a importância de compreender a extensão e os efeitos da queima de florestas para o clima e a saúde em todo o planeta.

Embora não seja possível discriminar a contribuição por território, a maior parte da fumaça africana que chega na Amazônia durante a estação seca vem de países da região centro-sul africana com zonas de floresta tropical como Angola, Zâmbia, República Democrática do Congo, Congo e Gabão. Durante os períodos de chuva na Amazônia, predomina a fumaça da região a sudoeste e sul do Saara, como Guiné-Bissau, Guiné, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Gana, Tongo, Benim, Nigéria, Camarões e República Centro Africana. - Imagem: African biomass burning affects aerosol cycling over the Amazon/Communications Earth & Environment

Black carbon

O black carbon, fuligem emitida durante a combustão que sobe para a atmosfera, é uma das consequências mais preocupantes das queimadas para o meio ambiente. Analisando essas pequenas partículas dispersas no ar, os pesquisadores geraram uma enorme quantidade de dados e perceberam diferenças significativas entre o material produzido em cada continente, devido às particularidades de suas propriedades físico-químicas.

A equipe criou um método matemático que mostra a distribuição de tamanho das partículas coletadas na atmosfera para obter duas medidas mais frequentes: uma corresponde às partículas emitidas na África; a outra é proveniente das emissões na América do Sul. A análise mostrou que, embora outras partículas sejam adicionadas ao topo desses aerossóis, o núcleo de black carbon não se altera no trajeto da África à América do Sul. “Nós medimos o black carbon que, assim como o CO2 (dióxido de carbono), absorve bastante radiação e tem potencial de aquecer a atmosfera. Embora o continente africano esteja a milhares de quilômetros, nós ficamos extremamente chocados com os valores de quanto vem da África, que se soma ao que já é emitido por desflorestamento da Amazônia”, revela Bruna Holanda.

Marco Aurélio de Menezes Franco
- Foto: Arquivo Pessoal
As partículas de black carbon e os gases de efeito estufa produzidos na África e transportados pelas correntes de vento absorvem e reemitem altas quantias de radiação na forma de ondas longas, infravermelhas. Segundo Marco Aurélio Franco, atualmente professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e um dos colaboradores da pesquisa, as ondas infravermelhas têm como característica o calor.

“O fenômeno altera tanto os regimes de chuva quanto o balanço radiativo, contribuindo para o aquecimento da região. Isso impacta não só a natureza, mas também a saúde da população que respira esse material, tanto humana quanto animal”, diz Franco.



Além disso, Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física (IF) da USP e um dos autores do artigo, alerta para o agravamento da situação atual. “O aumento da temperatura previsto nos próximos anos para a África Central e para a África Subsaariana, a principal fonte dessas emissões de queimadas, e a redução das chuvas que já está ocorrendo naquela região muito provavelmente tenderão a se agravar e isso poderá fazer com que esse transporte seja mais intenso no futuro, piorando as mudanças climáticas na região do Atlântico Tropical entre a África e a Amazônia.”



A Zona de Convergência Intertropical, representada em azul, é a área de vapor próxima ao equador por onde ocorre o transporte de poeira entre o continente africano e o sulamericano. - Foto: NASA/JPL AIRS Project

Metodologia inovadora

O fluxo da poeira do deserto do Saara para a Amazônia é estudado desde a década de 1980. Esse transporte normalmente ocorre durante a estação chuvosa, quando uma massa de ar proveniente da Zona de Convergência Intertropical passa pela África, na região próxima ao deserto do Saara, e chega à Amazônia. Isso resulta em um transporte de poeira que ocorre há milhões de anos.

O estudo publicado agora levou nove anos e envolveu modelagem computacional nunca utilizada antes, material colhido pela aeronave Halo (aeronave de pesquisa de alta altitude e longo alcance), operada por um consórcio de institutos de pesquisa alemães, e medidas no Observatório de Torre Alta da Amazônia (ATTO). Os voos foram realizados em diferentes pontos do Atlântico, da Amazônia e da divisa com o continente africano em setembro de 2014, entre agosto e setembro de 2018 e entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Dessa forma, foram monitorados dados de queimadas e de transporte de poeira em todo o trajeto.

O artigo desvenda pela primeira vez a grande incógnita sobre a quantidade, a sazonalidade e as propriedades da fumaça africana na Amazônia central. Essa abundância observada afeta diretamente a qualidade do ar, o ciclo atmosférico e o clima na floresta amazônica, além de outras implicações.

Paulo Artaxo - Foto:
Arquivo pessoal
“A região do Atlântico Tropical, entre a África e o Brasil, é uma das regiões do oceano que sofre o aquecimento mais rápido do planeta. Em geral, o aquecimento da água é de 30% a 40% maior nesta região do que em outras regiões do oceano. Isso pode intensificar a ocorrência de furacões, pois eles surgem das altas temperaturas da água”, explica Paulo Artaxo.

Durante a estação chuvosa, entre fevereiro e maio, verificou-se que 60% da concentração de fuligem encontrada na Amazônia foi na verdade produzida na África. Nas estações secas, quando a concentração de fumaça é predominantemente de queimadas locais, ainda assim 30% da fuligem encontrada em território amazônico é originalmente da África.

De acordo com Paulo Artaxo, Bruna Holanda foi a primeira a quantificar os fluxos de black carbon trazidos da África, fazer medidas desses componentes e juntá-los em uma modelagem que explica esse transporte. “O trabalho começou olhando para o transporte de poeira. Ao longo da elaboração do trabalho, observou-se que o transporte de queimadas era muito mais significativo do que tínhamos pensado quando começamos a analisar os dados.” Com essa nova metodologia, será possível aprimorar os modelos climáticos existentes.

Foto tirada em 30 de setembro de 2014, mostra a camada de poluição acastanhada na atmosfera chegando ao litoral brasileiro - Foto: Bruna Holanda


Não existem fronteiras para a poluição


Mesmo com essa influência externa, a principal causa das mudanças nos regimes de chuva na América do Sul continua sendo o desmatamento local. Embora a adição de 30% de material de fumaça africana na estação seca seja relevante, os pesquisadores lembram que os outros 70% são de emissões locais.

Marco Aurélio Franco explicou ao Jornal da USP que esse fenômeno tem relação com a mudança do uso da terra. Na região amazônica, as queimadas foram intensificadas com aumento do processo de ocupação durante a ditadura militar brasileira, com o incentivo à exploração de seringueiras para a produção de borracha, à agricultura e à mineração. Hoje, parte da floresta foi transformada em área para plantação e criação de gado. Na África, provavelmente tenha ocorrido um processo similar.

Isso significa que o ecossistema da América do Sul não depende apenas de medidas feitas localmente, como enfatiza Franco. “É impossível separar regiões do planeta, que é inteiramente conectado. Mesmo que cortemos toda a poluição antrópica das queimadas na Amazônia, é impossível frear esse tipo de infusão de poluentes da África se as queimadas não pararem lá também.”

Mais informações: e-mails b.holanda@mpic.de, com Bruna Holanda; marco.franco@usp.br, com Marco Aurélio Franco; e artaxo@if.usp.br, com Paulo Artaxo


https://jornal.usp.br/ciencias/fuligem-de-queimadas-na-africa-atravessam-o-atlantico-e-atingem-atmosfera-amazonica/



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