sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O estereótipo “no meio do mato”: jornalistas da região Norte exigem respeito

 
IJNat porFRED SANTANA | Sep 3, 2023 em DIVERSIDADE E INCLUSÃO

 

Foto: Canva - foto aérea de Belém do Pará

Provavelmente você em algum momento já ouviu a frase "Quando tudo aqui era mato". Ao escutar, você inconscientemente a associa com a região Norte do país (o autor desse artigo mora em Manaus, capital do Amazonas). Embora seja usado de maneira despretensiosa, esse "mato" tem uma carga de preconceito ligada à história da Amazônia brasileira. Recentemente, o termo foi usado pelo jornalista William Waack, da CNN Brasil, em comentário depreciativo sobre a cidade de Belém, no Pará.

O âncora afirmou que não poderia deixar o repórter da emissora, que fazia link na capital paraense,
esperando "lá no meio do mato". A repercussão é claro, foi extremamente negativa. Nas redes sociais, os moradores da região se sentiram insultados com o comentário do apresentador.


Preconceito histórico

Esse preconceito sempre existiu. A lembrança mais antiga que eu tenho sobre isso aconteceu em 1999. Naquele ano, uma equipe de futebol amazonense chamada São Raimundo fazia uma campanha brilhante na Terceira Divisão do Campeonato brasileiro e iria enfrentar o Fluminense. do Rio de Janeiro, em Manaus. Dias antes da partida, foi publicada uma charge num jornal carioca mostrando o técnico Carlos Alberto Parreira no meio da selva, com roupa de safari, perguntando para uma criança indígena pra que lado ficava o campo do São Raimundo. A charge, é claro, causou revolta na cidade.

Há um comportamento padrão em situações como essas. Nos dois casos, tanto o âncora quanto o jornal se desculparam dizendo se tratar de uma "brincadeira", uma manifestação de humor. É óbvio que a intenção era o humor, mas um humor depreciativo, que equipara o ato de estar na Amazônia como uma situação ruim, de penúria ou insalubridade. Há também o estereótipo de que todas as pessoas que moram aqui são indígenas, que por sua vez são tratados pejorativamente.

"A fala dele só reflete uma visão estereotipada que ainda se tem da região amazônica. Essa ideia colonial de que somos uma grande floresta vazia e inabitada", diz protesta a jornalista Catarina Barbosa, de Belém. "Na Amazônia não temos só mato, temos pessoas que são as grandes responsáveis por essa floresta continuar existindo e além da vida humana, temos uma extensa biodiversidade. Nos reduzir a 'mato' é uma visão tão pequena quanto a do próprio comentário".

O jornalista Fábio Pontes, que mora em Rio Branco, no Acre e trabalha no jornal O Varadouro, lamenta episódios como este, vindos geralmente da mídia do eixo Rio-São Paulo. "Para nós que moramos aqui não é nenhuma surpresa. Estamos acostumados com esse tipo de preconceito. É uma visão estereotipada das elites sobre os interiores do Brasil, aquilo que não está no mundinho deles. Esperamos que isso mude, mas não sei se vai", diz Pontes.

Na raiz histórica desse pensamento há uma visão racista e predatória, que custou floresta e vidas humanas da nossa região. No imaginário colonizador, o "mato", ou seja, a floresta, significava o atraso, a ignorância, a selvageria, algo que deveria ser destruído em nome do progresso. A cidade e o concreto, por sua vez, significam a civilização e o desenvolvimento que precisam ser alcançados a todo custo.


Respeito e conhecimento

Se hoje existe uma cidade de concreto no Brasil, provavelmente antes havia uma floresta ou um ecossistema intacto ali. A cidade de São Paulo, onde o colega proferiu o infeliz comentário, já foi toda "mato" habitado por povos indígenas em algum momento da história. Se hoje a realidade não é essa, é porque houve um processo em que esse mato foi destruído e seus antigos moradores expulsos e/ou assassinados.

Esse debate ganha importância no momento em que essa visão predatória mostra resultados catastróficos. Hoje, a maior emergência da humanidade é conter as mudanças climáticas. Enquanto finalizo esse texto, a cidade de São Paulo registra 30º Celsius em pleno inverno e Manaus tem sensação térmica de 49º Celsius. Isso é fruto de séculos de ataques ao meio ambiente, a substituição do "mato" pelo concreto.

Aqui mora uma grande ironia: embora alguns moradores do Sudeste se incomodem com o fato de um repórter estar "no meio do mato", a verdade é que todos nós precisamos desesperadamente de mais floresta no planeta o quanto antes. A restauração de ecossistemas e a preservação do meio ambiente - antítese desse pensamento predatório - é a única alternativa para salvar a humanidade da extinção.

Não custa nada rever alguns conceitos e aprimorar o senso de humor. Já passou da hora das grandes redações do Sul e Sudeste começarem a educar seus profissionais a terem uma postura mais respeitosa, especialmente figuras mais influentes e conhecidas. "Precisamos mesmo avaliar em que medida e qual a relação da mídia no tratamento de colônia que o Estado brasileiro dá à Amazônia. Isso cabe a todos nós jornalistas, independente do veículo e do alcance dos mesmos", alerta a jornalista Rosiene Carvalho, da Bandnews Manaus.

No momento em que a humanidade se preocupa e volta os olhos para a Amazônia, é fundamental que a imprensa do restante do país a compreenda em toda sua complexidade. "Quão longe a mídia e os jornalistas que pisam e olham a Amazônia como alienígenas ainda estão da busca da compreensão da região, dos seus saberes e dos diversos modos de vida das populações tradicionais para alcançarem uma cobertura profissional da mesma? De que Amazônia falam? E por que a Amazônia precisa dessa cobertura exótica que a procura, na sanha de um novo eldorado?", questiona Carvalho.

Foto: Canva - foto aérea de Belém do Pará

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Fred Santana

 

 

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