Belém (PA) – Desde o massacre de Eldorado de Carajás (1996) ao assassinato de Dorothy Stang (2005); da chacina de Pau D’Arco (2017) às mortes do ambientalista Zé do Lago, Márcia Nunes Lisboa e sua filha (2022), e tantos outros, o Pará é o mais violento estado brasileiro para defensoras e defensores dos direitos humanos, territoriais e ambientais. Conflitos agrários e invasões de terras, que têm como pano de fundo a falta de regularização fundiária, são resultado de décadas de impunidade nos crimes cometidos contra esses defensores. A Comissão Arns, organização da sociedade civil suprapartidária, decidiu visitar o Pará para cobrar respostas a esse histórico de violações.
“A preocupação com a impunidade recorrente de criminosos no Pará foi um dos principais motivos que deram origem à expedição, especialmente diante do clamor da população local para que providências sejam tomadas sobre o clima constante de violência e impotência na região”, explica Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos dos governos Lula (2005-2010). “A Comissão Arns recebeu diversos relatos de problemas graves no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos.”
Vannuchi esteve no Pará acompanhado da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e do ex-secretário da Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Jr, entre outros. Os representantes da Comissão Arns visitaram as cidades de Marabá, Eldorado dos Carajás, Anapu, Altamira e Belém entre 15 e 20 de abril. O objetivo foi realizar entrevistas, reuniões e audiências com vítimas, familiares, lideranças e autoridades locais.
O Pará é o estado brasileiro com o maior número de assassinatos decorrentes de conflitos agrários, 111 entre 2019 e 2022, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A maioria dos casos permanece em aberto, com condenações parciais ou simplesmente foram esquecidos pela Justiça. À Amazônia Real, Vannuchi disse que o quadro paraense preocupa porque, diante da situação de risco e vulnerabilidade social dos defensores e suas famílias, “a ausência do Estado favorece a violência”.
A comissão, fundada em fevereiro de 2019, leva o nome do já falecido cardeal e defensor dos direitos humanos Dom Paulo Evaristo Arns. Ela é composta por juristas, intelectuais, jornalistas, ativistas e voluntários na defesa dos direitos humanos. Tem, entre seus membros, nomes como Ailton Krenak, André Singer, Fábio Konder Comparato, Paulo Sérgio Pinheiro, José Gregori, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Daniela Mercury, Oscar Vilhena, Dalmo Dallari, Sueli Carneiro e Claudia Costin.
Membros da Comissão Arns, entre eles o ex- ministro Paulo Vannuchi, a antropóloga Manoela Carneiro da Cunha e o advogado João Batista (de blusa lilás), da CPT (Foto: Divulgação/Comissão Arns) |
Movimentos sociais que acompanham casos de violências e violações a direitos humanos se articula para a vinda da Comissão Arns ao Pará, afirma Erasmo Alves Teófilo. Ele próprio é um defensor ameaçado de Anapu, cidade distante 115 quilômetros de Altamira, oeste do Pará. Há tempos a região ocupa lugar de destaque nos relatórios anuais de violência no campo da CPT, que registrou 1.107 conflitos somente na Amazônia Legal, em 2022, quase metade (54,86%) dos conflitos registrados no Brasil.
Erasmo e sua companheira, Natalha Teófilo, fugiram com seus quatro filhos de Anapu sob ameaças de grileiros que desejavam ocupar as áreas do projeto de assentamento do Lote 96 da Gleba Bacajá, hoje assentamento que leva o nome da irmã Dorothy Stang. A missionária foi assassinada em 2005, em Anapu, a mando de grileiros, por defender a reforma agrária e apoiar projetos de assentamentos na região conhecida pelos conflitos, pela ausência do Estado e pela negligência e impunidade dos crimes.
Impunidade histórica
Túmulo de Dorothy Stang, no Centro de Formação São Rafael, em Anapu, Pará (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Para a Comissão Arns, o caso Dorothy é um exemplo da maneira como os crimes são tratados no Pará, já que 18 anos depois ele permanece em aberto e “um dos comparsas do crime, Clodoaldo Carlos Batista, está foragido até hoje”. A Comissão Arns pretende retomar casos como o massacre na curva do S, em Eldorado dos Carajás (1996); os assassinatos do casal Zé Cláudio e Maria, no sul do Pará (2011); a chacina de Pau D’arco (2017); os assassinatos a líderes de movimentos sociais em Anapu, ocorridos nos últimos cinco anos, e – caso mais recentemente – os assassinatos de uma família interia de ambientalistas no rio Xingu, em janeiro de 2022.
A comissão também investiga “as mortes e ameaças na Comunidade Divino Pai Eterno, em São Félix do Xingu, desde 2011; as ameaças de morte por garimpeiros ilegais no acampamento Eduardo Galeano, em Canaã dos Carajás; as ameaças e agressões contra os indígenas do povo Parakanã por parte dos não indígenas de Novo Repartimento, desde 2022”, afirma Vannuchi.
Para Claudelice Santos, fundadora do Instituto que leva o nome do seu irmão e cunhada, “Zé Cláudio e Maria”, a vinda da Comissão Arns ao Pará “reacende uma chama que estava apagada nos últimos anos. Significa termos a certeza de que pelo menos as vítimas serão ouvidas por uma organização com o potencial de intermediar políticas de Estado para essas pessoas, que também são vítimas de apagamento”.
O advogado da CPT João Batista Afonso, conhecido por sua atuação nos principais casos de violência envolvendo conflitos agrários no Pará, acompanhou a Comissão Arns em sua passagem pelo estado. À Amazônia Real, Batista disse que as entrevistas às vítimas e testemunhas não se limitou aos municípios visitados, mas também ouviu relatos de casos ocorridos em São Félix do Xingu, Itaituba, Jacareacanga e outros.
Afonso conta que um relatório será produzido nos próximos 30 dias, avaliando o cenário para defensores e defensoras do Pará. “Esse relatório consistirá em uma avaliação da comissão a partir do que se pode perceber nas visitas que fizeram, com o intuito de apontar recomendações aos órgãos estaduais e federais”, diz.
Programa de proteção
Erasmo e Natalha Teófilo, casal de defensores ameaçados de Anapu-Pa (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Um dos pontos mais sensíveis indicados pela Comissão Arns é que o Programa de Proteção a Defensores dos Direitos Humanos no Estado Pará (PPDDH) acaba por potencializar a vulnerabilidade das lideranças ameaçadas. O PPDDH é ligado à Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) e ao Programa Estadual de Assistência a Vítimas, Testemunhas e Familiares de Vítimas de Crimes (Provita).
O casal Erasmo e Natalha Teófilo conhecem bem essa realidade. Eles, membros das famílias de colonos e membros da CPT lutaram para garantir a legitimidade do assentamento Irmã Dorothy, em Anapu. Longe da terra, que garantia o sustento deles e dos filhos, precisaram se exilar em outra cidade (mantida em sigilo por motivos de segurança), tendo que lutar, agora, contra outras adversidades.
“Já teve dias de faltar comida aqui em casa e não ter o que dar para os meninos [filhos do casal]. O governo do estado é ineficaz em proteger nossas vidas, nós somos tratados como animais. A gente sai de uma situação difícil e cai em outra, mas dessa vez longe da nossa luta e das pessoas que são importantes para nós”, explica Erasmo, que também é cadeirante.
Erasmo conta que a incerteza pela própria manutenção coloca os defensores em situação de angústia e adoecimento psíquico. “Quando o defensor de direitos humanos é retirado do seu território e fica na mão do governo do estado, ele fica em uma situação lastimável. O governo não faz o seu papel em proteger quem protege centenas de vidas”, diz.
As insatisfações com o programa de proteção levaram Erasmo e Natalha a idealizar o Instituto de Proteção a Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos e da Amazônia, fundado há três meses, em Belém. O instituto reúne lideranças de várias regiões do Pará que, hoje, se encontram sob ameaça de morte e/ou estejam no programa de proteção a testemunhas do estado, o Provita.
João Batista explica que o Provita tem por prerrogativa retirar o defensor ameaçado de seu local de militância e isolá-lo para que ele não possa ser encontrado pelos seus agressores. Para o advogado, que também já foi alvo de ameaças, o ideal é garantir a segurança dos defensores nas suas comunidades, nos seus territórios. “Todas as vezes que há uma ameaça e o programa precisa retirar o ameaçado, enfraquece a luta da comunidade, desestabiliza a família do ameaçado e acaba favorecendo o ameaçador”, conta o advogado. “É uma vitória para o ameaçador. Ele vai continuar ameaçando, porque em função da ameaça ele irá afastar a pessoa.”
O caso dos Parakanã
Corpos dos três caçadores encontrados na TI Parakanã, em Novo Repartimento, Pará (Foto: Divulgação/PF)
https://amazoniareal.com.br/comissao-arns-investiga-ameacas-e-assassinatos-impunes-no-para/
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