CRIMES AMBIENTAIS NA AMAZÔNIA
Em Jacarecanga (PA), reportagem flagrou garimpeiros desmobilizando áreas de extração ilegal de ouro em reservas ambientais e indígenas, depois de terem sido informados em reunião ‘oficial’ de que haveria fiscalização
Às margens da BR-230, a Transamazônica, o desmatamento segue às claras com uma retroescavadeira conhecida como PC trabalhando em um garimpo no trecho entre Jacareacanga e Itaituba. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil) |
Enquanto a reportagem presenciava a mobilização dos garimpeiros para
fugir da fiscalização, lideranças indígenas se revoltavam com o “caráter
oficial” do vazamento. Isso porque não é a primeira vez que os donos de
garimpo são avisados antes de fiscalizações do tipo. Em dezembro, a
operação Fool’s Gold (Ouro de Tolo em português) da PF prendeu um delegado,
acusado de vender informações. No entanto, desta vez, o vazamento teria
sido comunicado oficialmente em uma reunião com a presença de
garimpeiros, de uma associação indígena controlada pelos interesses
pró-garimpo e até de um representante da própria Funai.
“Para nós, essa reunião em que as autoridades fizeram um acordo com
os garimpeiros foi um equívoco. Deram 15 dias para que todos os
garimpeiros brancos retirassem seus bens”, afirma Ademir Kaba Munduruku.
“Daí, por incrível que pareça, as principais cabeças que têm provocado
toda essa violência continuam livres, enquanto nós temos que nos
recolher e ficar com a liberdade tolhida”, afirma o líder indígena, que
se opõe à exploração de ouro.
Escondendo máquinas milionárias
Era intensa a movimentação no porto local, em um braço do rio
Tapajós, na manhã da quarta-feira (29). Embarcações de diversos portes
chegavam carregadas de motores usados na extração de ouro. “Está uma
correria danada. O pessoal está tentando esconder as PCs no mato, pois o
rio está muito baixo e não dá para tirar na balsa”, conta um
funcionário de um garimpo na região do rio Cabitutu, que aceitou
conversar com a reportagem sob condição de anonimato.
PC é abreviação usada nos garimpos para as retroescavadeiras e
pás-carregadeiras que revolvem a terra e transformam áreas intocadas de
floresta em um lamaçal, poluindo os rios. Essas máquinas custam entre R$ 500 e R$ 1 milhão e são um sinal claro de que quem investe em garimpo são empresários de grande porte.
Esses donos de garimpos clandestinos teriam sido comunicados da ação
da Polícia Federal durante o encontro, ocorrido em 17 de setembro. A Repórter Brasil teve
acesso a dois documentos sobre a reunião. O primeiro é um convite –
direcionado a vários caciques – para discutir a “retirada dos
proprietários de máquinas não indígenas das TIs Munduruku e Sai Cinza”. O
documento é assinado por Francinildo Cosme Kaba Munduruku, que preside a
Associação Índigena Pusuru – uma entidade de Jacareacanga controlada
pelos interesses dos garimpeiros – e por um representante da Coordenação
Técnica Local da Funai de Jacareacanga
O segundo documento, também assinado por Francinildo, é um comunicado
sobre o que teria ocorrido na reunião, onde se lê: “Ficou decido por
unanimidade que os garimpeiros e proprietários de máquinas não indígenas
que praticam atividade de garimpagem ilegal no interior das TI
Munduruku e Sai Cinza tem 15 dias de prazo para retirar seus
maquinários, caso não cumpram com esta determinação os órgãos
competentes de fiscalizaçao como Ibama, Polícia Dederal e Força Nacional
serão acionados para fazer a retirada de todos e estarão sujeitos a
prisão e prejuízo dos seus pertences.” O prazo venceria neste 2 de
outubro.
Questionada, a Funai afirmou que essas operações são de
responsabilidade da Polícia Federal e recomendou que o órgão fosse
procurado. Contudo, não respondeu sobre o funcionário presente na
reunião do dia 17. Já o Ibama e a Polícia Federal disseram que não podem
comentar sobre operações sigilosas. O ICMBio, que também faz parte da
operação, não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
Fracinildo também foi procurado pela reportagem, mas não se posicionou.
O documento da Pusuru menciona que a Força Nacional de Segurança
Pública (FNSP) também participou da reunião que vazou a informação da
operação. Questionada sobre o acordo, a FNSP disse que está atuando em
Jacareacanga em apoio à Funai e que “não tem competência para atuar em
tratativas com a comunidade indígena” e que não participou do acordo com
a Associação Indígena Pusuru.
Ademir Munduruku criticou a reunião: “Além de tudo é desnecessária,
porque já há uma decisão judicial para que todos os invasores sejam
retirados do nosso território”. O líder indígena também destacou a
participação da Funai e criticou a associação. “A Pusuru não tem
autonomia nem respaldo para tratar de operações com as autoridades,
visto que ela é a responsável por toda essa situação de invasão do nosso
território. As autoridades deveriam era punir os membros da Pusuru
envolvidos com a atividade de garimpo.”
A organização presidida por Francinildo é assessorada por Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas”, que atua para reverter demarcações de terras indígenas, sempre com um discurso conservador e de ataque a ONGs.
“Chega de sermos manipulados por ongueiros que só querem nos usar
como cobaias ou escudos humanos contra o nosso próprio desenvolvimento”,
diz nota da Associação Pusuru publicada em abril em defesa do Projeto
de Lei 191, que prevê a liberação do garimpo em terras indígenas.
A posição da Pusuru está longe de ser unânime entre os Munduruku. Sete dias após a associação publicar essa nota, 72 caciques Munduruku contestaram a legitimidade da Associação Indígena Pusuru. Na carta que escreveram, declaram ser contrários ao PL, que chamam de “projeto de morte”. Eles atribuem ao projeto a divisão dos Munduruku, a violência e o ataque às mulheres e lideranças que defendem o território.
Motores queimados e retroescavadeiras
José (nome fictício), que conversou com a reportagem mediante a
condição de não ser identificado, estava em um barco carregado com cinco
motores queimados. O fogo foi colocado durante a última fiscalização,
em junho, e, por ordem de seu patrão, ele retirou os motores do garimpo
na tentativa de recuperá-los em uma oficina em Jacareacanga. Cada motor
custa cerca de R$ 30 mil.
O objetivo dos garimpeiros é evitar que os equipamentos sejam destruídos pela fiscalização, como prevê o decreto da presidência da República 6.514 de 2008,
que dá essa prerrogativa aos fiscais ambientais diante da
impossibilidade de apreender e remover motores e retroescavadeiras em
áreas de difícil acesso na floresta.
A Repórter Brasil também flagrou uma
retroescavadeira sendo rebocada por um caminhão na BR-230, a rodovia
Transamazônica. O que pode ser entendido como mais um sinal da fuga
empreendida pelos garimpeiros diante da ameaça da fiscalização. Apesar
de ser chamada de rodovia, o trecho de 290 quilômetros entre
Jacareacanga e a vizinha Itaituba lembra em muitos momentos uma trilha
precária.
A paisagem ao redor desse trecho da Transamazônica é intercalada por
três diferentes cenários. Tem grandes áreas queimadas com presença de
gado; diversas vilas de garimpeiros com aviões monomotores estacionados
nas marginais da rodovia e também a densa selva Amazônica, com a pista
cortando áreas de reservas como o Parque Nacional da Amazônia, a Terra
Indígena Munduruku e as Floresta Nacionais de Amana e de Itaituba, todas
elas com garimpos ilegais.
Somente na Terra Indígena Munduruku, houve um aumento de 363% de área
degradada pelo garimpo entre janeiro de 2019 e maio de 2021, a
porcentagem representa 2.274,8 hectares, quase 15 vezes a área do Parque
Ibirapuera, em São Paulo, segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA).
O garimpo que José* trabalha, no leito do rio Cabitutu, chegou a ter
170 garimpeiros antes de a operação vazar e os garimpeiros serem
desmobilizados. Parte dos homens que restaram estão agora empenhados em
levar as máquinas para áreas na floresta longe da extração e camuflar
com folhas e galhos para não serem identificados pelos drones usados na
fiscalização.
Antes de trabalhar no garimpo do Cabitutu, José, que tem 28 anos,
trabalhava em outro garimpo no igarapé Massaranduba. Lá, ele conta, que
chegavam a retirar 2 kg de ouro por dia. Considerando o valor atual do
grama do ouro (R$ 308) o faturamento diário era de R$ 616 mil. Ele
mostra no celular a fotografia de uma imensa pepita de ouro. No boné,
tem o nome e sobrenome verdadeiro escritos em dourado, simulando um
metal folheado a ouro, uma tendência na região do Alto Tapajós.
‘Estamos esperando a qualquer minuto’
“Certeza ninguém tem, mas estamos esperando a qualquer hora o pessoal
(fiscalização) vir para cima. Estamos esperando a qualquer minuto. O
povo está cabreiro”, afirma o garimpeiro Vilelú Inácio de Oliveira, que
tem uma atuação crucial no lobby articulado na região para tentar
legalizar o garimpo de ouro nas terras indígenas dos Munduruku, como
mostrou reportagem publicada em julho pela Repórter Brasil.
Viela, como é conhecido, articula mais de 30 grupos de Whatsapp com
garimpeiros de toda a Amazônia. Já organizou protestos para paralisar a
BR-163 após fiscalizações feitas em 2019, quando máquinas de garimpo
foram queimadas. A mobilização encabeçada por ele levou o presidente
Jair Bolsonaro (sem partido) a prometer mais de uma vez que proibiria a
queima de maquinário de garimpo por fiscais ambientais. O que não
aconteceu.
“Esse Bolsonaro não tem palavra. Ele disse que ia ajudar os
garimpeiros, pois o pai dele tinha sido garimpeiro, mas a única coisa
que ele fez foi colocar a mídia, o Ministério Público e todo mundo que é
contra ele contra nós (garimpeiros)”, afirma Vilela.
O alerta dos garimpeiros ficou maior, pois na terça-feira (28),
Polícia Federal, Ibama e Funai foram a campo na terceira fase da
Operação Alfeu para combater a extração ilegal de ouro na Terra Indígena
Sararé, em Pontes e Lacerda (MT). Segundo a Funai e a PF, foram usados
drones para localizar os equipamentos, que foram destruídos.
Caminhando por Jacareacanga e conversando nos restaurantes, hotéis e
bares, o temor da população contra a possível fiscalização é uníssono.
Nas lojas que compram ouro, os funcionários estão nas portas aguardando
os garimpeiros, que reduziram a presença nos últimos dias.
O comércio da cidade é repleto de lojas de equipamentos que fomentam a
destruição da floresta. Motosserras são vendidas entre R$ 3 mil e R$
5,5 mil. Mangueiras, motores, ferramentas e toda a infraestrutura
necessária para o garimpo estão à venda pendurada de maneira caótica na
entrada das lojas. Pelas ruas, picapes passam carregadas de galões de
combustível usados para abastecer geradores, os motores estacionários,
as PCs e as embarcações que alimentam os garimpos.
Enquanto fiscais e garimpeiros atuam como gato e rato nas ruas de
Jacareacanga e na floresta Amazônica, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 191 de 2020,
de autoria do Executivo, que prevê permissão para lavra garimpeira em
terras indígenas desde que haja consentimento das comunidades afetadas —
caso aprovado, no entanto, os indígenas não mais teriam poder de veto.
O Ministério Público Federal (MPF) aponta a inconstitucionalidade do projeto de lei, destacando que os mais de “4 mil procedimentos minerários incidentes em 216 terras indígenas demonstram que não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”.
O projeto é objeto de lobby de empresários, políticos locais, deputados e senadores e está entre as 35 prioridades do governo federal, entregues por Bolsonaro ao Congresso Nacional em fevereiro.
Distante 2,5 mil quilômetros do Congresso, os escombros da Associação
das Mulheres Wakoborun em Jacareacanga dão lugar à construção de um
supermercado. A Associação aglutinava a resistência Munduruku contra os
garimpos e pela preservação da floresta, mas foi invadida e destruída
por um grupo de garimpeiros em março deste ano.
Em maio, os garimpeiros promoveram um motim na cidade e expulsaram as forças federais que preparavam uma operação. Eles também queimaram a casa da liderança indígena Kabaiwun Munduruku (antes conhecida por Leusa) e da sua mãe. A escalada da violência que assola os Munduruku foi denunciada nesta terça-feira (28) pelo governo da Dinamarca no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
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