quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Após enchente, indígenas recolhem alimentos descartados no Acre

 

Meio Ambiente

Por Fabio PontesPublicado em: 23/02/2022 às 16:08
Após enchente, indígenas recolhem alimentos descartados no Acre
Aldeias do povo Huni Kuin, às margens dos rios Jordão e Tarauacá, perdem roçados e criações de animais com transbordamento; quase 40 comunidades foram impactadas (Foto: Pedro Devani/Agência Acre).

Rio Branco – (AC) Um vídeo com imagens de indígenas Huni Kuin recolhendo alimentos descartados por comerciantes após a descida das águas dos rios Jordão e Tarauacá, no Acre, que circula nas redes sociais vem causando comoção e revolta em quem assiste às imagens. Os alimentos são de comércios que foram inundados pelo transbordamento dos dois rios. As intensas chuvas que caíram sobre as cabeceiras dos rios desde o último fim de semana provocaram o transbordamento que afeta comunidades indígenas e ribeirinhas espalhadas ao longo dos dois mananciais. O vídeo, sem autoria identificada, é acompanhado de um relato em que uma voz masculina diz: “Após o nível das águas começar a baixar, o material descartado pelo comércio está sendo reaproveitado pelos indígenas”.

A pequena cidade de Jordão (a 462 KM de Rio Branco) amanheceu na segunda-feira (21) com 70% do perímetro urbano inundado pela cheia dos rios. Ao menos 38 aldeias do povo Huni Kuin foram impactadas, causando a perda de roçados, casas e criação de animais. O bairro Kaxinawa, onde vive a maior parte dos Huni Kuin que moram na cidade, está entre os mais atingidos. Mais de 30% dos moradores de Jordão é composta por indígenas, que se espalham entre as aldeias e os bairros da cidade. 

As imagens que mostram os Huni Kuin pegando os alimentos descartados pelo comércio em meio à lama deixada pelas águas do Jordão e Tarauacá foram gravadas na terça (22). Sem contar com nenhum tipo de assistência por parte da prefeitura ou do governo estadual naquele momento, os indígenas não encontraram outra opção senão aproveitar os produtos que tinham ficado debaixo d’água. Procuradas, lideranças indígenas da etnia preferiram não comentar sobre o episódio. 

Momentos antes, parlamentares de oposição no Acre já haviam alertado sobre a possibilidade de a população jordãoense passar fome como consequência da enchente. “Se não tiver uma ação imediata, a situação será de muitos transtornos sociais. Hoje temos a falta de uma política de proteção social para alimentar as pessoas, uma ação imediata de levar alimentos, kits de desinfecção das casas”, afirmou o deputado estadual Edvaldo Magalhães (PCdoB) à Amazônia Real.

De acordo com o governo do Estado, 100 cestas básicas, kits de limpeza e água potável e colchões foram entregues em Jordão nesta terça. Mais ajuda imediata será transportada por embarcações a partir do município vizinho de Tarauacá.  Segundo a Secretaria de Assistência Social, ao menos 76 famílias tiveram que deixar suas casas e foram levadas para escolas transformadas em abrigos. A maioria dos desalojados é do povo Huni Kuin, moradores do bairro Kaxinawa.   

Fotos e vídeos enviados à Amazônia Real mostram as tentativas dos Huni Kuin de salvar os seus poucos pertences ao longo de toda a segunda-feira nas aldeias e na cidade. Na maioria das aldeias, a água chegou à altura do teto. Como o transbordamento aconteceu na virada de domingo para segunda-feira, os indígenas não tiveram a oportunidade de retirar os bens, como geladeiras e fogões. Em alguns casos, essa retirada ficou ainda mais inviável, pois a correnteza arrastou embarcações e motores. 

“Essa é a segunda pior enchente em 16 anos aqui no nosso município de Jordão. Das outras vezes foram menores. É a segunda vez que deu esse tanto de água, cobrindo quase toda a cidade. Inundou os bancos, os comerciantes estão debaixo d’água. A situação está muito complicada”, diz a liderança Lucas Sales Huni Kuin. Nesta mesma época de 2021, Lucas já havia sido entrevistado pela Amazônia Real para falar sobre o mesmo problema nas aldeias do Baixo Jordão.     

Em outros vídeos, é possível ver os roçados de macaxeira e as plantações de banana inundados. Tanto a banana quanto a macaxeira estão entre os alimentos básicos na dieta dos povos indígenas da região. A perda desses cultivos coloca em risco a segurança alimentar nas aldeias. Os poços de onde retiram água potável também estão comprometidos. 

“Estamos sofrendo de tudo. A água cobriu nossos roçados, nosso bananal, levou nossas criações. Alguns parentes perderam muitas coisas, os barcos, os motores, as roçadeiras”, afirma Lucas Huni Kuin. De acordo com ele, apesar de também ter sido intensa, a enchente de 2021 causou menos danos do que agora.

“A situação está bem mais feia do que em relação aos anos passados. Nem nas aldeias foi tão forte assim como agora, de encobrir tudo.” Na cidade, a geração de energia termelétrica foi interrompida pelo fato de a usina ter sido atingida pelas águas. 

Morador da aldeia São Joaquim, na Terra Indígena Kaxinawa do Rio Jordão, Isaka Huni Kuin teve sua canoa e o motor levados pela subida repentina do rio, dificultando a retirada dos bens dentro de sua casa e da mãe. De acordo com ele, as comunidades localizadas nas terras baixas são as que estão com os maiores transtornos e prejuízos. “Aqui não temos nenhum tipo de assistência por parte do poder público. Eu estou confiando na ajuda de fora”, comenta.   

“A maioria absoluta dos comércios foi tomada pelas águas. As famílias perderam praticamente tudo. Essa é a situação de Jordão. É preciso que o governo do Estado aja imediatamente antes que a situação piore ainda mais.” 

Por ficar no encontro entre os rios Jordão e Tarauacá, a cidade foi bastante afetada pela subida abrupta dos dois mananciais. Nesta terça, os mananciais apresentaram vazante, deixando um rastro de destruição e lama na pequena cidade, uma das mais carentes no Acre. Apesar do volume dos rios ter baixado, as chuvas continuam a cair na região. A depender da intensidade, pode ocorrer um repiquete, que é a elevação rápida das águas após já ter ocorrido uma inundação.  

Período chuva deve continuar intenso

Município de Jordão no Acre é atingido pela cheias dos rios Jordão e Tarauacá (Foto: Agência Acre)

  

Com uma população estimada em 8,6 mil moradores, o município ocupa a última posição entre os 22 municípios em renda per capita. De acordo com dados do último Censo Indígena do IBGE, de 2010, os indígenas representam 32,4% da população de Jordão – a segunda maior proporção do Acre. 

Jordão só é acessível por via aérea ou fluvial. Com isso, o custo de vida é alto. Além disso, o município não conta com agrupamento do Corpo de Bombeiro. O batalhão mais próximo está distante quase dois dias de barco, subindo o rio nessa época de “inverno amazônico”. 

O litro da gasolina custa R$ 9,35. Com uma população pobre cujo poder de compra fica ainda mais comprometido em tempos de inflação elevada, comprar combustível para chegar às aldeias afetadas e levar ajuda é uma operação complexa, o que deixa os Huni Kuin ainda mais vulneráveis. 

O transbordamento dos rios na região é um fenômeno comum nesta época do ano, o período de chuvas, conhecido como “inverno amazônico”, que começa em meados de outubro e vai até o começo de abril. Para o trimestre fevereiro-março-abril, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) prevê chuvas acima do normal para o Norte do país. Essas chuvas intensas são justificadas pelo fenômeno La Ninã, que é o esfriamento das águas do oceano Pacífico na costa peruana. 

Na capital Rio Branco, o rio Acre atingiu a situação de alerta na segunda-feira, mas também apresentou vazante, medindo 13,46 nesta quarta (23).  Alguns bairros da cidade foram afetados pelo transbordamento dos igarapés. Em fevereiro de 2021, centenas de casas foram atingidas pelo transbordo de igarapés e córregos. No interior, a maioria dos principais rios – como o Juruá e o Yaco – também está em situação de alerta ou alerta máximo. 

 




 Fabio Pontes

Fabio Pontes é jornalista acreano, há mais de uma década escrevendo, desde a Amazônia, sobre meio ambiente, povos indígenas e comunidades extrativistas, crises migratórias, mudanças climáticas (enchentes e secas severas) e a política regional. Já produziu reportagens para os principais veículos de imprensa do Acre e do país. Desde 2016 escreve para a Amazônia Real. Twitter: @fabiospontes

 

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