sexta-feira, 17 de março de 2023

Um presente exorbitante no valor e suspeito na forma

 anais do descalabro

No caso dos diamantes da família Bolsonaro, nada pode se presumir como lícito

Piaui | Rafael Mafei | 14 mar 2023_07h00

Qualquer que seja a explicação para a origem das joias dadas a Jair e Michelle Bolsonaro, há certas coisas que são inequívocas nessa história até aqui cheia de dúvidas.

A primeira é que a oferta foi exorbitante em seu valor, além de essencialmente suspeita em sua forma. Um bem de mais de 16 milhões de reais é fora de padrão para presentes diplomáticos, mesmo vindo da esbanjadora ditadura saudita; e um estojo de joias suíço, portanto sem relação evidente com a nação que presenteia, aparentemente entregue sem qualquer protocolo ou formalidade às autoridades presenteadas, fora dos canais diplomáticos que existem justamente para dissipar dúvidas sobre segundas intenções, igualmente desperta precauções. Embora nada se possa concluir sem investigações adicionais, o mais comum é que um tal expediente – entrega de bens irrastreáveis, de fácil transporte oculto e com imenso valor – seja adotado na prática de ilícitos como corrupção, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro ou evasão de divisas.

A segunda é que o procedimento adotado para o ingresso das joias no Brasil foi grotescamente ilegal. Qualquer cidadão médio, especialmente se tiver o mínimo de experiência em viagens aéreas – como é o caso de todos os envolvidos – desconfiaria que não se pode entrar ou sair de um país com milhões em pedras preciosas sem ao menos comunicar isso às autoridades. Menos ainda transportar bens de terceiros (supostamente) sem saber no que consistem, razão pela qual a Receita Federal exige sempre declaração nesses casos. Tratando-se de agentes públicos de primeiro escalão, que participam de altas missões oficiais a todo tempo, esse conhecimento é tanto um pressuposto seguro, quanto uma exigência legal.

A terceira é que o comportamento dos agentes políticos envolvidos, após a correta apreensão do estojo de joias, foi absolutamente impróprio. De Jair Bolsonaro aos militares que transportaram e tentaram liberar, de forma oficiosa, os bens apreendidos, passando por ministros de Estado e pelo secretário da Receita que usaram o peso de seus cargos para atender a interesses privados, só não foi turvo o que foi cristalinamente antirrepublicano. Não há dúvidas de que abusaram não apenas do prestígio e da autoridade de suas posições, como também dos bens materiais (como aviões da FAB) e humanos (como assessores e militares) de que dispunham, pagos com dinheiro público, para a consecução de um fim ilegal e imoral.

Diz o brocardo popular que todos os dias um esperto sai de casa na esperança de encontrar um trouxa. O que o ditado não conta é que o esperto às vezes encontra um agente da Receita Federal. Ou talvez isso apenas signifique que quem se julgava o esperto na verdade era o trouxa, e isso é o que de melhor se pode dizer em favor de Jair Bolsonaro e seus sacoleiros de Brancaleone – mesmo aceitando o pressuposto, até aqui não provado, de que as joias sauditas eram de fato um presente diplomático, e não o pagamento de uma vantagem ilícita a algum agente público brasileiro.

Em 2021, quando se deram os fatos, Bolsonaro já era um presidente rodado, com experiência em viagens oficiais. O mesmo vale para Bento Albuquerque, então ministro de Minas e Energia, e para a sua comitiva. É seguro todos sabiam o básico sobre regras e protocolos tanto para recebimento de presentes, quanto para o ingresso de bens no Brasil. É provável que soubessem também da zona cinzenta criada por decisão de 2016 do TCU, segundo a qual “itens de natureza personalíssima” escapam à regra geral de que presentes recebidos pelo Presidente da República são patrimônio público. Bolsonaro, ao menos, tinha o dever incontornável de saber.

A primeira esperteza do entourage de Bolsonaro foi tentar entrar de modo clandestino com as joias no país. Bolsonaro possivelmente estava determinado a enquadrar os presentes como “bens personalíssimos”, guardando-os para si. Só que não queria pagar o imposto devido.

Diante da apreensão na vistoria do aeroporto de Guarulhos, Bolsonaro tentou ser esperto uma segunda vez: colocou o Ministério de Minas e Energia e o Itamaraty, além do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República, para pressionarem a alfândega. Foi então que passaram a sustentar que o bem integraria o acervo presidencial, e a tratar as joias com alguma oficialidade. Até então, elas vinham sendo manuseadas com absoluta clandestinidade, trazidas em mala de mão e transportadas, de modo sorrateiro, pela fila do “nada a declarar”. No caso do estojo de menor valor, que passou sem ser detectado, sua existência permaneceu oculta ainda por um ano mais.

Durante todo o imbróglio, Bolsonaro e os agentes públicos que ele pôs no esforço de liberar os bens apreendidos seguiram resistentes em adotar os caminhos legais, detalhadamente explicados pela Receita Federal: ou os bens seriam públicos, e nesse caso deveria ser provada sua incorporação ao patrimônio da União; ou seriam privados, e nesse caso deveria haver o pagamento dos tributos devidos por sua importação. Espertos, parecem ter desejado o melhor dos dois mundos: seriam públicos para que fossem rapidamente liberados pela Receita, mas acabariam privados no momento de determinar quem seria o seu dono final.

Foi só depois de várias tentativas infrutíferas de pressionar a aduana de Guarulhos para liberar o bem sem o pagamento dos tributos, em novembro de 2022 – portanto, mais de um ano após a apreensão do estojo de 16 milhões –, que o segundo kit de joias, que passara na surdina naquela mesma viagem, foi formalmente entregue ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do Planalto. Vale dizer, só se oficializou a entrega desse outro bem ao acervo presidencial depois que Bolsonaro já havia perdido as eleições, e que era evidente que ele dificilmente desembaraçaria o caso das joias sem o pagamento de impostos. Era também óbvio que aquele enrosco todo, quanto ao bem apreendido, poderia lhe trazer dores de cabeça quando ele deixasse o poder. Incrível que queiram agora usar a entrega tardia de um bem descaminhado como prova de alguma boa fé.

A esperteza derradeira, que está mais para desespero, foi a mobilização emergencial de pessoal e de bens da União, inclusive um avião da FAB, como cartada final para recuperar as joias apreendidas. Tudo isso aconteceu na véspera de Bolsonaro partir, também em avião da FAB, para o exílio autoimposto do qual ainda não voltou. Considerando o fato de que ainda dispunha do tratamento dispensado a chefes de Estado na chegada aos EUA, talvez ele pretendesse levar consigo as joias, na certeza de que não seria inspecionado na chegada àquele país. É sabido que cogitava não voltar ao Brasil pelo medo de ser enquadrado pela justiça. Ironicamente, o enrosco dos diamantes agora é o que o mantém por lá.

Esse quadro desenha os caminhos das potenciais implicações jurídicas para todos os envolvidos.

As primeiras são de natureza tributária. Se Jair Bolsonaro conseguir que os bens sejam considerados personalíssimos, será imperioso que pague o imposto de importação, à alíquota de 50% sobre o valor dos bens, acrescidos de multa de 50% pela tentativa de ingressar com eles no país sem a devida declaração aduaneira. Ainda que ao final o plano de Bolsonaro seja frustrado e as joias acabem incorporadas ao patrimônio público, ficando dispensadas do pagamento do imposto de importação, a Receita Federal poderá entender que a multa é independente e insistir em cobrá-la. Isso porque a sanção seria devida pelo ingresso irregular de bem no país, qualquer que seja a sua titularidade.

Há também potenciais desdobramentos em matéria de improbidade administrativa. Embora a legislação tenha sido alterada para tornar mais difícil a aplicação dessas penalidades, o fato é que atos de improbidade ainda existem e são puníveis pela legislação. O uso de bens e recursos humanos estatais, como aviões da FAB e pessoal militar, para satisfazer a interesses puramente privados, e ainda por cima potencialmente ilegais, poderá enquadrar-se aí. Mas há muitas dúvidas de que essa categoria de ilícito, se confirmada, possa chegar até Jair Bolsonaro: a improbidade presidencial é especificamente regida pela lei do impeachment, e essa, salvo alguma inovação no entendimento jurídico predominante, não pode ser aplicada a quem já não esteja mais no cargo.

As mais sérias consequências possíveis são, sem dúvidas, as de natureza penal. Apurá-las é um processo mais demorado, demandando investigação meticulosa e coleta de informações até aqui indisponíveis sobre a natureza dos bens e todas as condutas dos envolvidos. Suspeitas para justificar uma devassa, porém, há de sobra.

O ponto de partida deve ser determinar a natureza dos bens em questão. O pressuposto de que foram presentes oficiais, dados por um chefe de Estado a outro, precisa ser confirmado, pois nada nas explicações de Bento de Albuquerque parece corroborar isso. Todos os protocolos de troca de presentes, que existem inclusive para blindar os presenteados de suspeitas, foram ignorados. Se é verdade, como diz o ex-ministro de Minas e Energia, que a encomenda lhe foi entregue em mãos de última hora, ao invés de remetida à representação diplomática brasileira, e em circunstâncias nas quais era impossível trazê-la consigo para o Brasil a não ser de modo informal, na mochila de assessores, isso sugere que os presenteadores adotaram um expediente que sabidamente deixaria a mercadoria à margem de registros e controles. Nada disso cheira bem.

A venda de uma refinaria de petróleo a um grupo saudita logo na sequência do presente clandestino só aumenta a necessidade de que a natureza da vantagem oferecida à família Bolsonaro não seja presumida lícita. A incapacidade de se provar, por documentos de praxe, que o bem em questão de fato foi entregue oficialmente pelo governo saudita ao governo brasileiro, como gesto diplomático e oficial, impedirá que se tome por verdadeira a versão de Albuquerque. A licitude de um conjunto de diamantes de 16 milhões de reais entregue a um agente político deve ser sempre questionada; ela não se prova por simples palavra, “foi um príncipe que me deu”, no fio do bigode. O risco, nesse caso, é o enquadramento da conduta como crime de corrupção passiva, como contrapartida ilegal a atos favoráveis aos sauditas praticados pelos envolvidos.

Se provada a origem e a natureza lícita do bem, o passo seguinte é determinar a titularidade de sua propriedade perante o direito brasileiro. Em razão da interpretação do TCU, dada em 2016, para a natureza desse tipo de presente, tudo indica que o tesouro há de ser considerado bem público. Assim sendo, Jair Bolsonaro e sua trupe não poderiam tê-lo tratado como bens particulares, a serem transportados às escondidas e sem declaração às autoridades competentes, e depois engavetados privadamente por mais de ano, no caso das joias que passaram. O agente público que tem a guarda de um bem público e passa a tratá-lo como se fosse seu comete crime de peculato.

Mesmo que o entendimento do TCU não prevaleça em relação às joias da Chopard, o que não parece provável em razão do valor e das características dos bens, e que elas sejam consideradas personalíssimas, como parece desejar Jair, ainda sobraria o crime de descaminho, caracterizado pelo ingresso dissimulado do bem no país para evitar impostos. Aqui, o maior enrosco aos envolvidos provém do conjunto de valor menor: como ele conseguiu ultrapassar a barreira alfandegária, o delito se teria por consumado.

Quanto ao estojo de Michelle, de maior valor, sua retenção em Guarulhos deu ensejo a condutas subsequentes que poderão implicar outro crime, advocacia administrativa, pelo patrocínio de interesse privado, junto à Receita Federal, por agentes públicos. Seria esse o enquadramento do festival de carteiradas a que assistimos. Uma acusação poderá unir, como co-autores, os assessores, os ministros de Estado, e o próprio presidente da República que se associaram no esforço hercúleo de tentar liberar, na pressão e sem pagar impostos, as joias do homem que não faz questão de toalha de mesa, mas não abre mão de seus estojinhos de ouro e diamantes.

 

Rafael Mafei
Rafael Mafei

É advogado e professor da Faculdade de Direito da USP. Publicou Como Remover um Presidente: Teoria, História e Prática do Impeachment no Brasil (Zahar)

 

https://piaui.folha.uol.com.br/um-presente-exorbitante-no-valor-e-suspeito-na-forma/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_153&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 

 

Obs: Pode ser assinado ou anônimo.

 

Compartilhe clicando na sua rede social abaixo: 

Nenhum comentário: