Xapuri | Chico Mendes, Crime Ambiental, Reforma agrária
Em 2021, o número de assassinatos em comunidades tradicionais e de agricultura familiar cresceu 12 vezes; a Amazônia Legal concentra 80% das mortes violentas em áreas rurais do Brasil. Acima, imagem dos Yanomami da região de Maturacá, no Amazonas.
Por Cristina Ávila/Amazonia Real
É o pior cenário da série histórica registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) desde 1985. Nesta segunda-feira (18), a CPT lança o relatório “Conflitos no Campo Brasil 2021”, um retrato cruel sobre a violência rural que não cessa. Em 20 de março de 2022, militares ao sul da Venezuela provocaram a chacina de três homens, de 22 a 30 anos, e uma mulher de 45, do povo Yanomami que vive em regiões de fronteira. Foi o segundo em sete meses na mesma Terra Indígena. Em agosto do ano passado foram assassinados três indígenas isolados (sem contato) Moxihatëtëa”, no garimpo Faixa Preta, do lado brasileiro, onde esse território está invadido por 20 mil garimpeiros. O levantamento parcial da CPT já contabiliza 14 assassinatos em 2022 no país, o que indica que a tendência é esse cenário só piorar.
Outra morte lembrada no relatório é o assassinato dos ambientalistas José Gomes, o Zé do Lago, de sua companheira Márcia Nunes Lisboa e sua filha Joane Nunes, em 9 de janeiro deste ano. Eles atuavam na proteção de tartarugas dentro da Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu. Até o momento, o Estado não concluiu as investigações.
Essa violência no campo parte também de agentes que deveriam proteger as minorias. Segundo a CPT, em 13 de agosto de 2021 a Força Nacional de Segurança, com a Polícia Militar de Rondônia, assassinou três sem-terra no Acampamento Ademar Ferreira, em área da Liga dos Camponeses Pobres (LCP). “O número de assassinatos no estado chegou a 11, sendo que 8 deles são de pessoas acampadas ou aliadas do referido movimento social, o que indica uma verdadeira caçada dos órgãos repressivos do estado e da União contra esse grupo”, afirma o documento.
Rondônia detém o recorde nacional em 2021, com 11 mortes violentas. Em seguida, vem o Maranhão com 9, Roraima, Tocantins e Rio Grande do Sul, com 3 assassinatos cada um. No País, das 35 execuções no campo, 10 foram indígenas, 9 sem-terra, 6 posseiros, 3 quilombolas, 2 assentados da reforma agrária, 2 proprietários familiares, 2 quebradeiras de coco babaçu e 1 pessoa aliada dos movimentos sociais.
O número de sem-terra assassinados cresceu 350% comparado ao ano anterior, enquanto o de vítimas posseiros de terra foi multiplicado por seis. E as mortes ocorridas em consequência de conflitos saltaram de 9 em 2020 para 109 em 2021. Um aumento de 1.110%. Dessas, 101 foram de indígenas Yanomami. Os conflitos também fizeram crescer de 9 para 13 os registros de pessoas torturadas (44%) e agredidas fisicamente de 54 para 75 (39%).
Força policial na desocupação do acampamento Tiago Campin dos Santos, em Mova Mutum (RO) (Foto: Andressa Zumpano/CPT) |
A falta de água
304 conflitos por água no Brasil envolvendo 56.135 famílias:
A falta de água para a vida de indígenas e ribeirinhos tem significado muito diferente de abrir a torneira e não poder lavar louça. “Mudou a dinâmica de nossa vida toda. Até nosso transporte. Nossos rios são nossas ruas”, relata Lorena Curuaia, nascida em Jericoá, aldeia Xipaya-Curuaia, no centro da Volta Grande do Xingu, em uma das áreas mais atingidas pelas secas provocadas pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA).
“Não tem mais como escoar a produção que ia pelos rios. A estrada não
funciona. A estrada não pode funcionar se não tiver veículo. A produção
que ia para a cidade hoje está estragando na aldeia”, afirma a indígena.
Lorena Curuaia conta que a Volta Grande do Xingu tem 130 quilômetros
quadrados, com cerca de 27 comunidades e 12 mil habitantes, entre
indígenas, ribeirinhos e pescadores artesanais. Além de não ajudar, a
estrada atrapalha a vida dos nativos, pois é por ela que chegam os
forasteiros que agem com violência nas terras indígenas.
Com o barramento do Xingu, até mesmo a velocidade das cheias e vazantes
que eram parte da natureza hoje são controladas pela Norte Energia, por
meio das vazões que passam pelas comportas da usina hidrelétrica. “Uma
hora a água está em cima, outra hora está embaixo. Não há mais verão e
inverno. Não se encontra mais peixe no igapó. Hoje a água traz é coceira
no corpo. As caças foram para lugares bem mais longe. Os pontos
estratégicos de alimentação não existem mais. As nossas plantações
tinham mais vida. Acho que a água chegava de outro modo, parece que o
solo perdeu também nutrientes”, conta Lorena.
Na região Norte, segundo o relatório da CPT, foi registrado um aumento
de 18% nos conflitos por água, com 66 em 2020 e 78 em 2021. E as
famílias envolvidas passaram de 19 mil para 29,2 mil (54%). O Pará foi o
que mais contribuiu para o aumento de casos, de 31 para 47 (52%). E o
número de famílias envolvidas cresceu de 7,8 mil para 16,1 mil (105%).
Os vilões de sempre
“Chama a atenção ano a ano o protagonismo persistente das mineradoras, como principal ator dos conflitos por água”, apontaram os pesquisadores Maiana Teixeira e Talita Montezuma, autoras de textos do relatório. Entre os registros, 135 envolvem disputas por uso e preservação das águas, 127 se relacionavam a obras como açudes e barragens e 40 envolvem investidas para apropriação privada direta das águas, com cercamento e expropriação de territórios. “Setores empresariais somados concorrem na responsabilidade direta de mais de 80% dos casos, mas não é desprezível a participação direta e indireta do Estado, que deveria garantir o imperativo legal da água como bem público e direito humano”, anota o relatório.
No Pará, o rio Tapajós é um dos exemplos das desgraças que os brasileiros promovem contra seu próprio patrimônio. “A nossa vida era de fartura na margem de um dos mais lindos rios de águas doces da Amazônia. Águas verdes e ricas em variedade de peixes. Tucunaré, surubim, dourada”, conta a ribeirinha Marilene Rodrigues Rocha, moradora da comunidade Vista Alegre do Muratuba, situada na Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns.
“De uns tempos pra cá, 2005 ou 2006, começou a mudar, perder a cor. Já nessa época a gente clamava e não éramos ouvidos. Agora descobrimos que muitas comunidades bebem água e comem peixes contaminados pelo mercúrio dos garimpos. Agora se sente coceira no corpo quando se banha. Não é mais aquele banho bom”, lamenta a ribeirinha.
O documento da CPT destaca que Roraima, onde em 2020 não houve registro de conflitos por água, passou a ter seis casos, com o envolvimento de 8.155 famílias. O salto se deveu ao registro dos problemas provocados pelos garimpos em território Yanomami.
Os conflitos no Maranhão
Os indígenas Tremembé de Engenho, em São José do Ribamar, terceiro mais populoso município do estado na região metropolitana de São Luís (MA), enfrentam o problema das águas poluídas do rio Pindaí e a pressão de empresários que querem ainda se apropriar da água do subsolo de seu território, além de lutarem contra desmatamentos, loteamentos ilegais e constantes invasões que ameaçam a sua vida.
“No subsolo do meu território tem um lençol de água mineral. O interesse dos grileiros é esse, pela riqueza que é de todos. A gente perfura um poço de 15 ou 20 metros e já encontra água boa, potável. Não precisa de tratamento”, conta Robervalter Lisboa Ribeiro Cruz, ou Robson Tremembé como é conhecido. Ele disse que são várias empresas de olho no patrimônio indígena, já consolidadas e com exploração em outras áreas do estado.
Em fevereiro de 2021, o povo Tremembé obteve decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendendo a reintegração de posse de seu território dada em 1ª instância por juizado incompetente para o processo, que é da ordem da Justiça Federal. Uma ação foi impetrada por empresários do setor de água mineral interessados em seu despejo. Os indígenas sofreram diversos ataques e ameaças.
Acampamento do MST (Foto: Amanda Costa/CPT) |
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