Lavras regularizadas, mas inativas, são usadas para acobertar origem ilegal do minério; entre 2019 e 2020, 6,3 toneladas de ouro produzidas no Brasil vieram de garimpos que só existem no papel
Pelo menos 220 lavras de garimpo que registraram produção de ouro em
2019 e 2020 simplesmente não existem. Ou melhor, existem apenas
formalmente: estão autorizadas a funcionar e comercializam o minério,
mas quem tentar visitá-las só encontrará mata fechada e nenhum sinal de
intervenção humana. São os chamados “garimpos fantasmas”, utilizados
para acobertar a origem do metal extraído clandestinamente e que se
espalham pelo país beneficiados pela falta de fiscalização da Agência
Nacional de Mineração (ANM).
Ao estudarem lavras garimpeiras indicadas como origem do ouro comercializado, pesquisadores da UFMG viram duas irregularidades: os chamados “garimpos fantasmas” (quadro A) e área de exploração que supera os limites do título minerário (B) (Foto: imagem de satélite reproduzida do estudo “Legalidade da produção de ouro no Brasil, da UFMG) |
“Essa tem sido a forma mais utilizada para esquentar [legalizar] o
ouro extraído de uma área ilegal. Algumas pessoas também costumam chamar
de ‘garimpo laranja’. Esse é um problema que a agência precisa
enfrentar”, reconhece Valdir Farias, ex-chefe da Divisão de
Procedimentos Arrecadatórios da Superintendência da ANM em São Paulo e
que hoje atua como diretor-executivo Fioito Consultoria.
O termo “garimpo fantasma” foi cunhado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, que identificaram a prática em um estudo feito em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e divulgado em agosto deste ano. Ao cruzar a origem declarada do ouro com a geolocalização das lavras de garimpo, os especialistas descobriram, por meio de imagens de satélite, que muitas delas estavam em uma área de mata nativa, sem intervenção humana. Outras tinham áreas de exploração superando os limites legais.
‘Esse [garimpo fantasma] é um problema que a agência precisa enfrentar’, diz Valdir Farias, ex-superintendente da ANM
Um maior rigor da fiscalização, porém, esbarra na falta de recursos
financeiros e humanos, justifica a agência. “São 35 mil procedimentos
minerários, entre elas as permissões de lavra garimpeira. E nós temos
cerca de 170 fiscais. É muito pouco para fazer uma fiscalização
eficiente”, afirmou à Repórter Brasil Roger Cabral, atual superintendente de produção mineral da ANM.
Negócio bilionário
De acordo com os pesquisadores da UFMG, 6,3 toneladas de ouro
produzidas no Brasil entre 2019 e 2020 tinham como origem lavras que não
mostraram atividade garimpeira, segundo registros de satélite. O valor
representa 13% do total de 49 toneladas do minério que o estudo ligou a
algum tipo de irregularidade.
Pesquisadores estimam que 13% do ouro comercializado no país em 2019 e 2020tinham como origem um garimpo ilegal ou irregular, como este da imagem, na TI Munduruku (Foto: Julia H) |
A partir do estudo da UFMG, o MPF protocolou ações civis públicas contra as empresas FD’Gold, Ourominas e Carol.
As três são DTVM’s (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários),
companhias autorizadas pelo Banco Central para adquirir ouro de garimpo.
De acordo com o levantamento, essas empresas comercializaram ouro
registrado por 220 “garimpos fantasmas”, mas que tudo indica ter sido
extraído ilegalmente de terras indígenas e áreas protegidas nos
municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, todos do Pará.
As empresas FD’Gold e Carol DTVM não responderam aos questionamentos
enviados pela reportagem. A Ourominas afirmou que possui “rigoroso
controle interno, que permite a identificação e qualificação de seus
parceiros”. Disse ainda que a fiscalização é responsabilidade do poder
público e não “deve ser atribuída à empresa privada”. Leia a íntegra da nota aqui.
‘Temos cerca de 170 fiscais. É muito pouco para fazer uma fiscalização eficiente’, afirma Roger Cabral, superintendente da ANM
Em julho, a Repórter Brasil e Amazônia Real mostraram no especial Ouro do Sangue Yanomami como o metal extraído ilegalmente da maior Terra Índigena do país, em Roraima, é legalizado no Pará e posteriormente vendido para grandes empresas – até chegar em joalherias como a HStern.
Pelo Código Penal, vender ouro cuja origem é fraudada, como aquele
registrado por lavras que não possuem vestígios de exploração mineral,
pode ser considerado crime de lavagem de dinheiro ou falsidade
ideológica.
Pequenos garimpos, grandes negócios
O pano de fundo para o problema é o regime de Permissão de Lavra
Garimpeira (PLG), autorização concedida pela ANM para pequenas
explorações de ouro. Beneficiadas por um trâmite simplificado e mais
difíceis de fiscalizar, essas concessões mascaram a mineração ilegal no
país sem que a agência reguladora consiga coibir a atividade. Os
“garimpos fantasma” são registrados nessa categoria.
Existem duas formas de se requerer uma PLG: como pessoa física ou
cooperativa, que devem apresentar apenas um descritivo técnico de como
pretende explorar a área e a licença ambiental emitida pelo órgão
estadual onde a lavra está situada.
O limite de tamanho de uma lavra garimpeira é de 50 hectares para
pessoas físicas e de 1.000 para as cooperativas. No entanto, a ANM não
restringe o número de garimpos que cada indivíduo ou cooperativa pode
explorar. No banco de dados da agência, é possível encontrar pessoas e
empresas com mais de 30 lavras ativas.
Para José Jaime Sznelwar, ex-superintendente de produção mineral da
ANM, esse é um dos principais problemas do regime de PLGs. “É um
conceito que está sendo desvirtuado. Uma pessoa física com 10 permissões
deixou de ser garimpeiro, já é um minerador”, afirmou à Repórter Brasil, complementando que esses produtores deveriam ser submetidos a processos mais rígidos de controle e concessão.
‘As PLGs foram pensadas para serem artesanais, mas os garimpos estão concentrados nas mãos de poucas pessoas’, diz Raoni Rajão, pesquisador da UFMG
“Há casos absurdos. As PLGs foram pensadas para serem uma atuação
artesanal, pequena. Mas o que nós estamos vendo há alguns anos é que os
garimpos estão concentrados nas mãos de poucas pessoas, algo que não é
benéfico ao setor”, analisa Rajão, da UFMG.
Em dois anos, desde janeiro de 2019, a degradação ambiental da atividade garimpeira cresceu 363% no território dos Munduruku (PA), segundo o ISA (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real) |
Há ainda outra distorção. A lei que criou o conceito das permissões de lavras garimpeiras é de 1989, e hoje os garimpos já não são operados de forma artesanal, mas com grandes retroescavadeiras, que chegam a custar R$ 1 milhão. Muitos deles são de difícil acesso, sendo necessário o uso de jatos particulares, cujos pilotos chegam a faturar R$ 200 mil por semana. Ou seja, o conceito de exploração “artesanal” de garimpos por pessoas físicas é algo do passado.
Leia também: Com receita de R$ 1,4 bi, maior exportadora de ouro do garimpo tem cadeia contaminada por metal ilegal
Em setembro, a ANM autorizou as gerências regionais nos estados a
fiscalizar lavras, com o intuito de combater as ilegalidades. “Serão
nossos olhos e braços para melhorarmos a fiscalização. Não é suficiente,
mas ajuda”, afirmou Roger Cabral, superintendente da agência.
O cenário de descontrole está na mira do MPF. Em julho, os procuradores dede Itaituba, no Pará, pediram a suspensão de outorga
de novas PLGs na região, onde o avanço do garimpo preocupa as
autoridades. “É preciso um freio de arrumação”, sintetiza Rajão, que
defende o cancelamento de lavras com atuação irregular.
A ANM também está na mira do Tribunal de Contas da União, que desde 2019 tem apontado deficiências na agência, como falta de estrutura, ausência de fiscalização das informações prestadas pelos garimpeiros e atuação frágil no combate à ilegalidade do setor.
Após pedido do MPF, o tribunal afirmou, em setembro deste ano, que “realizará
fiscalização nos órgãos pertinentes, a fim de levantar fragilidades e
oportunidades de aprimoramento dos mecanismos de combate à
comercialização e à exportação de ouro de origem ilegal”. A Repórter Brasil tentou contato com o ministro Marcos Bemquerer, relator do processo, mas ele não quis conceder entrevista.
Aparelhamento da ANM
Atualmente, existem 2.765 permissões de lavra ativas no país, segundo a ANM. E, apesar das preocupações que esse regime de concessão tem despertado nos órgãos fiscalizadores, funcionários e ex-funcionários da agência relatam pressão externa para que esse número cresça ainda mais. O lobby vem de políticos e empresários, especialmente do Pará, que querem facilitar as concessões de PLGs, contornando os mecanismos de controle, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
Os garimpos da atualidade não tem nada de artesanal (como prevê a lei), contando com uso de máquinas que custam até R$ 1 milhão (Foto: Vinícius Mendonça/Ibama) |
“São senadores e deputados que estão em constante diálogo com membros
da diretoria da ANM”, afirma Jaime Sznelwar. O executivo suspeita que
sua demissão da agência, após pouco mais de um ano no cargo, tenha
ocorrido por sua tentativa de frear a outorga de novos garimpos.
Sua exoneração, em agosto deste ano, foi determinada por Guilherme
Santana Lopes Gomes, um dos integrantes da diretoria colegiada do órgão,
indicado ao posto pelo presidente Jair Bolsonaro por influência de lobistas do setor.Para
a vaga de Jaime Sznelwar, o contratado foi Roger Cabral, um defensor do
garimpo em terras indígenas que diz se basear em informações técnicas.
“A mineração pode conviver [com terra a indígena]. Mas tem muita
ideologia, a mídia, as ONGs que estão interessadas mais na Amazônia do
que na proteção dela. Tudo isso está no jogo”, afirmou à Repórter Brasil.
‘Empresário chega com político querendo liberar sua PLG. Isso acontece mesmo, mas não vejo problema’, diz Roger Cabral, da ANM
O novo superintendente confirma que a ANM é alvo de lobby, mas
considera que a pressão “faz parte”.”Às vezes vem o empresário que
entrou com o requerimento. Está ansioso, e a papelada não sai”, diz.
Cabral também confirma a tentativa de intervenção de políticos no
processo. “Empresário chega com político aqui querendo liberar sua PLG.
Isso acontece mesmo, mas não vejo problema. Respeitamos o rito e a
documentação, mas a pressão existe”.
A Repórter Brasil entrou em contato com a ANM para
ouvir Lopes Gomes, mas a agência afirmou que os assuntos “se tratam de
pautas esgotadas” e que ele não vai se manifestar.
https://reporterbrasil.org.br/2021/11/sem-fiscalizacao-da-anm-garimpos-fantasmas-legalizam-ouro-de-terras-indigenas-e-areas-protegidas/
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