Grupos feministas protestaram em frente ao MASP e caminharam pela Av. Paulista em defesa do aborto legal nesta quinta-feira (13/6).
Matéria Ponte Jornalismo | Newsletter nº 288 - 15 de junho de 2024
Para quem luta pelos direitos humanos, perder é comum. Para não enlouquecer, a gente faz o Darcy Ribeiro e diz que nossas derrotas são como vitórias, porque de fato odiaria estar no lugar da gente horrível que costuma nos vencer. Mas, porra, precisamos de vitórias. Até porque as derrotas em nosso campo significam sofrimento demais para populações inteiras.
Por isso, vamos celebrar a vitória que a mobilização das mulheres conquistou nesta semana sobre o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto ao crime de homicídio e proíbe qualquer possibilidade de aborto legal após 22 semanas de gestão, sendo por isso chamado acertadamente de PL do Estupro ou da Gravidez Infantil. A mobilização nas redes e nas ruas já fez os presidentes das casas legislativas, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, tirarem o pé do projeto, além de levar diversos nomes do governo Lula a se manifestarem a favor dos direitos humanos dentro de um assunto polêmico, o que infelizmente não é comum. Foi uma vitória pequena, parcial e provisória, mas ainda assim uma vitória. É feia, mas é uma flor. E precisamos celebrar.
Precisamos celebrar porque foi a primeira vez em muito tempo que uma bandeira dos direitos humanos conseguiu fazer frente à extrema-direita dentro do que o jornalismo hegemônico (não o da Ponte!) chama de “pauta de costumes”. Um nome péssimo, porque passa a impressão de que se trata de algo menor, como se estivesse em questão o uso de ketchup na pizza ou se o feijão deve ser colocado em cima ou ao lado do arroz, quando diz respeito a direitos fundamentais.
Pois é nas pautas de direitos que a gente tem tomado um 7 a 1 atrás do outro, porque o rolo compressor da extrema-direita se mostra tão devastador que muitos políticos que deveriam estar ao nosso lado evitam confrontá-la em nome da própria sobrevivência política. Rifar os direitos humanos se tornou uma prática recorrente do governo Lula e de muitos petistas, em questões tão diferentes como a memória do golpe de 1964, a Lei Orgânica das Polícias Militares ou o fim das saídas temporárias de presos, que teve voto favorável até de Maria do Rosário, deputada tradicionalmente alinhada aos direitos humanos, mas que preferiu jogar sua trajetória fora para não prejudicar a candidatura à prefeita de Porto Alegre.
Essa postura supostamente “realista” do governo recebe o apoio de um campo do petismo, minoritário porém barulhento, que passou a desprezar tudo o que envolva as lutas pelos direitos de mulheres, negros, indígenas e população LGBTQIAP+, chamando a tudo pejorativamente de “pautas identitárias” e dizendo que o governo tem mais é que ignorá-las, porque só serviriam para fortalecer o poder da extrema-direita. Além de culpar as vítimas pela existência de seus algozes, essas correntes desqualificam essas bandeiras como divisivas ou irrelevantes, agindo como se o racismo, o machismo ou a LGBTfobia não existissem no Brasil e tivessem sido inventados pela Fundação Ford ou pela Open Society.
Seja por convicção ou estratégia, quem defende que o governo do PT deveria abaixar a cabeça diante da extrema-direita nas pautas de direitos fundamentais (ou de “costumes”, ou “identitárias”, como esse povo fala) argumenta que é impossível vencê-la nessa área. Que a esquerda só teria a perder com esse enfrentamento e que Lula teria mais é que dar uma rasteira em todos os grupos que simbolicamente estiveram ao seu lado na subida da rampa.
É um argumento que eu não aceitaria mesmo que fosse verdadeiro. Se for para vencer passando por cima dos negros, das mulheres, dos indígenas e da população LGBTQIAP+, aí eu volto ao Darcy Ribeiro e digo que é melhor perder do que estar ao lado dos vencedores, de uma esquerda que já virou extrema-direita há muito tempo.
Mas a escolha não precisa ser entre perder ou vender a própria alma para vencer. O que a mobilização desta semana demonstrou, da forma como conseguiu acuar e calar os defensores da criminalização da escolha das mulheres, é que a extrema-direita não é invencível como pensam e que pode haver espaço para combatê-la mesmo nos temas em que parece levar vantagem.
Num governo de compromisso como o atual, precisamos mais do que nunca de movimentos sociais fazendo barulho nas ruas e nas redes, de trabalhadores fazendo greve, e de jornalismo críticos, como a Ponte, apontando sempre que o governo vacilar ou nos trair. A Ponte defendeu o voto em Lula em 2022, mas sempre deixamos claro que não deixaríamos nossa visão crítica de lado. “Não precisamos de puxa-saco”, disse Lula. Pena que muitos se esqueçam disso, incluindo aí o próprio Luiz Inácio.
Então, se a semana que passou fosse um episódio de He-Man, ou da She-Ra, a gente poderia encerrar com um dos dois primos dizendo:
“Olá, crianças, no episódio desta semana aprendemos que a extrema-direita não é invencível e pode, sim, ser enfrentada e até vencida, inclusive nos temas de direitos humanos. Não se esqueçam disso. E lembrem-se: pauta de costumes de cu é rola. São pautas de direitos. E é tudo pelo qual vale a pena lutar nessa vida.”
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