sexta-feira, 28 de junho de 2024

O Brasil deverá superar não só a cultura do fogo, mas também a cultura do petróleo

 A era do fogo e da fumaça chegou

No Brasil e no mundo, as queimadas estão transformando o ar que respiramos em ameaça, com impactos devastadores na saúde pública e no meio ambiente


Conteúdo Carta Capital | por Carlos Bocuhy28 de junho de 2024


O Brasil deverá superar não só a cultura do fogo, mas também a cultura do petróleo (Foto: CartaCapital/Reprodução)


No Brasil, as cidades próximas dos campos onde ocorria a queima de cana-de-açúcar sofriam consequências danosas, até que a proibição das queimadas passou a considerar os danos à saúde pública. Mas o desafio está voltando. O inverno de 2024 está se tornando a temporada de fumaça. 


Em 2023, na Amazônia, a fumaça cobriu Manaus e adjacências. Em anos anteriores, a pluma das queimadas da Amazônia seguiu pelo canal dos rios voadores para a região Sudeste, enevoando a cidade de São Paulo. 


Nos dias em que foi constatada fumaça sobre São Paulo, as concentrações de partículas finas chegaram a exceder o padrão estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 99% das estações de monitoramento, segundo estudo do Instituto Astronômico e Geofísico, da USP.


No verão de 2023, a nuvem de fumaça de incêndios do Canadá cobriu Montreal, Nova York e parte da Nova Inglaterra, com pluma de poluição que atravessou o Atlântico e foi sentida na Europa. 


A fumaça transfronteiriça está se tornando comum. As queimadas do Pantanal ultrapassam fronteiras do Paraguai e da Argentina, enquanto a massa de ar seco e poluído da África atravessa o Atlântico e agrava o calor nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. “É um ar seco e poluído que não chega a se apresentar como fumaça, mas provoca poluição do ar”, afirma Humberto Barbosa, do Instituto de Ciências Atmosféricas (Icat), da Universidade de Alagoas. 


A transposição intercontinental da África provem das florestas da bacia do Congo, que sofre queimas da pequena agricultura de sobrevivência, fator que também ocorre nas regiões da Amazônia e do Pantanal. 


Os ventos e a secura transformaram essa prática em queima descontrolada, motivo pelo qual vem sendo proibida por ação dos órgãos ambientais. A era do fogo e da fumaça chegou. 


É preciso conter a cultura do uso do fogo. Em 2024 temos, no Brasil, 56% mais focos de incêndios do que em 2023, que atingem todos os biomas brasileiros. Os impactos maiores são no Pantanal. Amazônia, Cerrado, Caatinga e parte da Mata Atlântica também sofrem, com exceção do Pampa, que ainda continua parcialmente sob fortes chuvas.    

 

Há estudos recentes sobre a relação entre incêndios florestais e agravos à saúde. A fumaça dos incêndios na Califórnia provocou a morte prematura de mais de 50.000 pessoas de 2008 a 2018, de acordo com uma pesquisa publicada na semana passada na revista Science Advances. Os prejuízos foram estimados em 423 bilhões de dólares. 


Pesquisa recente do National Bureau of Economic Research (NBER) prevê que, dada a velocidade das mudanças climáticas, as mortes relacionadas à fumaça nos EUA aumentarão consideravelmente. No pior cenário, em meados do século, o excesso acumulado de mortes por exposição à fumaça de incêndios florestais pode chegar a 700.000 pessoas, um aumento de dois terços em relação aos números atuais. 


A gravidade da situação levou à contabilização dos danos. Em termos econômicos, ao preço de possíveis valorações da vida e da saúde, as mortes equivalem, de forma conjunta, a todos os danos climáticos que já ocorreram nos EUA. Não é pouco, considerando que o país que abriga um “hurricane corridor”, uma trilha anual de passagem para furacões.


Entre os perigos da fumaça, os pesquisadores ressaltam as partículas chamadas PM2.5 (Material Particulado 2,5). São pequenas o suficiente para penetrar a corrente sanguínea e se infiltrar nos órgãos, causando inflamação e aumentando o risco de uma cascata de problemas inter-relacionados, incluindo cognitivos, respiratórios, cardíacos e de morte prematura. 


“Os perigos da fumaça para a saúde ainda não aparecem nas análises de custo-benefício da política climática”, diz Minghao Qiu, pesquisador da Universidade Stanford que estuda qualidade do ar e mudanças climáticas. “O custo social do carbono tenta estimar os danos sociais de uma tonelada extra de emissões contabilizando a mortalidade relacionada à temperatura extrema, mas ainda não inclui mortes por fumaça de incêndio florestal. Uma grande parte do bolo de danos climáticos está simplesmente faltando”, completa.


Os episódios de fumaça que hoje invadem as cidades de Corumbá e Ladário, no Pantanal do Mato Grosso, mantêm populações reféns da poluição. “São elementos químicos, tais como monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio, hidrocarbonetos e partículas”, afirma o doutor em Geofísica Espacial, Widinei Alves Fernandes. 


Nos Estados Unidos, o US Centers for Desease Control and Prevention (CDC), recomenda ficar em casa, fechar janelas e usar um filtro de ar ou, se precisar sair, usar máscara filtrante. 


Mas nem todo mundo pode ficar dentro de casa sem medo de perder o emprego; o governo americano fez pouco mais do que pedir aos empregadores que tivessem um plano para seus trabalhadores ao ar livre durante um evento de fumaça, e apenas três estados – Califórnia, Oregon e Washington – têm regras que regulam a exposição à fumaça no trabalho. 


O CDC também recomenda que todos os americanos sigam as orientações dos gerentes de emergência locais, mas o prefeito de Nova York, Eric Adams, foi amplamente criticado por não ter um plano de salvaguardas para os nova-iorquinos quando a crise da fumaça do verão passado chegou. 


No Brasil, a população é deixada para lidar com os riscos por conta própria. Sem orientações mais precisas e protocolos preestabelecidos, populações desavisadas, atingidas pela fumaça, estão sofrendo fortes impactos em sua saúde. 


Atualmente, com o calor e a secura climática, a fumaça dos incêndios florestais passou a representar parcela maior da totalidade das emissões de PM2,5 às quais os norte-americanos estão expostos. 


A lógica das queimadas, considerada na Lei do Ar Limpo das décadas de 60 e 70, compreende incêndios florestais como “evento excepcional", deixando-o além do ônus da regulamentação. Isso não consegue mais se manter frente à exposição à poluição do PM 2,5, que está começando a suplantar outras fontes de poluição do ar, como emissões industriais e de veículos. 


No Brasil o número de incêndios provocados pela mão do homem tem sido preponderante. Na seca e no calor, qualquer faísca provocada por queima de lixo, pontas de cigarro, lançamento de balões, “limpeza” de terrenos, “queima controlada” de pastagens e desmatamento criminoso se tornam elementos perigosos, que fogem do controle. 


O Brasil necessita de forte aparato de fiscalização e de intenso processo de conscientização da população para quebrar a velha “cultura do fogo”, inerente a velhas práticas agrícolas que não são mais possíveis no atual contexto climático.


Outro elemento são os ventos fortes decorrentes da intempestividade provocada pela mudança climática, que permitem expansão rápida das chamas, inclusive saltando barreiras como aceiros que, tradicionalmente, dariam conta do problema.   


O Brasil deverá superar não só a cultura do fogo, mas também a cultura do petróleo, que assola o governo Lula, que sinaliza estar preso ao modelo econômico-energético do passado. "A Petrobras do povo brasileiro tem que promover uma transição energética justa e inclusiva. Ela precisa buscar a segurança energética com a reposição das nossas reservas de petróleo e gás", disse recentemente Alexandre Silveira (PSD-MG), ministro das Minas e Energia. 


A única vertente inclusiva nessa transição fóssil é a massiva exposição aos efeitos das mudanças climáticas, que não têm nada de justa, a começar pelos impactos que atingem principalmente populações mais vulneráveis.  


Brasil, há muita lição de casa! Recompor, com base na ética pela vida, as políticas públicas para longe dos combustíveis fósseis; recompor quadros funcionais e tratar com dignidade servidores do Ibama e ICMBio, pagando salários dignos e justos diante da alta periculosidade que esses trabalhadores enfrentam em suas funções. 


Com quadros de pessoal reduzido à metade, não há de se falar que tecnologia por satélite permite compensar falta de quadros, uma vez que multas por satélite não apagam incêndios. Trata-se de priorizar ações preventivas. 


Em plano mais geral, recuperar o terreno perdido para o desarranjo climático será impossível sem conter as causas subjacentes aos incêndios, a emissão dos gases efeito estufa que provocam o aquecimento global. Entre outras práticas de climate washing, é preciso fazer cessar a queima de gás fóssil travestido de “natural” em usinas termelétricas, além dos incineradores de lixo travestidos de “recuperação energética”. 


A imaginação humana, para o bem e para o mal, parece não ter limites. As idiossincrasias do business as usual devem ser superadas. 


As inadiáveis medidas em prol da saúde da população e dos ecossistemas devem prevalecer em nosso modelo de sociedade humana, por se tratar de questão basilar: garantir a sustentabilidade que se reveste, neste momento crítico, dos requisitos emergenciais da sobrevivência.



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