Nos últimos anos, diversas entidades passaram a desenvolver programas de proteção e suporte a jornalistas ou criaram parcerias para acompanhar a evolução e os efeitos dos ataques nos profissionais, e em toda a sociedade. Um importante ator neste contexto são as empresas jornalísticas que possuem um triplo papel: podem ser vítimas, deveriam desenvolver protocolos internos de proteção e suporte, e em determinadas situações acabam atuando como fontes de violações aos direitos humanos individuais e coletivos dos seus empregados.
Em 2022, o relatório “The Chilling: what more can news organisations do to combat gendered online violence?[1]” debateu a responsabilização das empresas de mídia no suporte às jornalistas vítimas de ataques online. As participantes do estudo declararam se sentir abandonadas por seus empregadores. As pesquisadoras Julie Posetti e Nabeelah Shabbir concluem que reações para dar suporte a mulheres alvo de violência de gênero são “ad-hoc, inadequadas ou inexistentes”. “Em alguns casos, elas [ações de suporte] podem até mesmo prejudicar as mulheres atacadas”, destacam as autoras (tradução literal do inglês para o português). Isto porque algumas medidas de proteção expõem as vítimas a ainda mais ataques, impõem o afastamento do trabalho ou editoria em nome da segurança, e até mesmo as revitimizam, jogando a culpa do problema ou de sua repercussão sobre os ombros de quem foi alvo da hostilidade online.
Em “Newsafety: Infrastructures, Practices and Consequences[2]“, Oscar Westlund, Roy Krøvel e Kristin Skare Orgeret avaliam existir uma crescente normalização da violência online na qual jornalistas e empresas de mídia tratam os ataques como sendo um problema inerente à profissão. É algo como “o novo normal” destacado por Henrik Ornebring em 2018 ao debater a precarização do trabalho jornalístico.
Trata-se de um problema de risco ocupacional, argumentam os autores do artigo intitulado “Attacks on Journalism as an Occupational Hazard[3]“. Isto é, o jornalista é exposto cotidianamente a ameaças inerentes à sua profissão que podem oferecer riscos – físicos psicológicos – imediatos ou cumulativos. Por exemplo, no caso de um metalúrgico, o volume alto dos maquinários e a fuligem oferecem riscos à saúde. No caso do jornalismo, diferentes formas de violência – externa, interna, incluindo aí a precariedade laboral – podem comprometer a saúde física e mental dos trabalhadores. Desta forma, já que “as organizações de mídia socializam o risco como sendo parte do trabalho, elas devem adotar medidas de suporte institucional para auxiliar jornalistas a persistirem em ambientes hostis”, destacam os pesquisadores.
Naturalização é sinônimo de omissão?
A aceitação do risco como um problema intrínseco ao jornalismo poderia ser a causa ou justificativa para a falta de ação efetiva em níveis organizacional, institucional e governamental?
Do ponto de vista organizacional, os empregadores, responsáveis pelo primeiro nível de proteção, em geral fazem pouco ou nada para mitigar os efeitos da hostilidade externa. A letargia ou omissão dos donos da mídia (independentemente de seu perfil) precisam ser encaradas como atitudes que ampliam a vulnerabilização dos jornalistas, em alguns casos acarretando em novos tipos de violações contra eles. Portanto, além de olhar para riscos externos é importante debater aqueles que ocorrem dentro do ambiente que, em tese, deveria ser um porto-seguro.
São muitas as ameaças ocupacionais listadas com diferentes nomenclaturas em pesquisas acadêmicas, relatórios institucionais ou textos publicados na imprensa. O problema é que boa parte dos estudos e debates se concentram nos riscos perpetrados por agentes externos à redação. Portanto, é preciso avançar a análise para o papel organizacional.
Em debates, entrevistas e comentários de jornalistas, conseguimos identificar violações individuais e coletivas que ocorrem dentro das redações, mas são muito difíceis de serem mensuradas em estudos ou monitoramentos. Podemos destacar aqui protocolos de proteção e resposta a ataques que revitimizam a pessoa afetada; regras editoriais que incentivam a competitividade de forma exagerada e resultam em práticas hostis entre colegas de trabalho; pressão por produtividade e metas incompatíveis de se alcançar, resultando em um ambiente no qual gritos, comentários vexatórios ou ofensivos passam a fazer parte da rotina; o ritmo acelerado que às vezes impede até ações biológicas como ir ao banheiro ou comer; além de práticas discriminatórias, bullying, assédio moral e sexual comuns em alguns locais.
Estas violações são pouco debatidas e podem contribuir por exacerbar ou naturalizar outros tipos de riscos aos quais jornalistas estão rotineiramente expostos. Aqui, incluo a precarização do trabalho como uma forma de violência pois esta vulnerabiliza a pessoa do ponto de vista financeiro e estrutural. Todas estas questões impactam no bem-estar e na saúde mental do jornalista.
Há dois anos, a Unesco publicou um relatório com propostas para atualizar o “Plano de ação para segurança dos jornalistas e fim da impunidade”[4], durante a conferência “Safety of Journalists – Protecting media to protect democracy”, em Viena, Áustria. Entre os pontos de recomendação, o documento destaca “reconhecer que condições de trabalho precárias, incluindo remuneração e benefícios inadequados, contribuem para a falta de independência e segurança aos jornalistas”.
Na seção específica para combater a violência de gênero, o documento da Unesco recomenda aos países “assinarem e ratificarem a Convenção 190 da Organização Mundial do Trabalho relativa a eliminação da violência e assédio do mundo do trabalho”. Segundo a C190[5], violência e assédio estão relacionados ” a comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças, sejam eles de ocorrência única ou repetida, que visem, resultem ou possam resultar em danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, e inclui a violência e o assédio baseados no gênero”. Neste sentido, práticas discriminatórias, assédios, vilência verbal, bullying (practicados por colegas ou chefes) e trabalho precário são tratados como formas de violência que precisam ser combatidas – elas estão no nível organizacional, ou seja, são riscos internos. Portanto, é necessário debater como mais um pilar na rede de proteção aos profissionais da imprensa, a criação de estratégias de monitoramento das violações internas e mecanismos de responsabilização das empresas de mídia quando omissas no suporte de vítimas de violência externa. Entender que estas organizações podem ao mesmo tempo ser alvo e agente causador permite desenvolver estratégias governamentais e da sociedade civil capazes de fortalecer a categoria e combater violações normalizadas pela rotina que se repercutem não apenas em autocensura e adoecimento, mas também em perda de qualidade e diversidade para o público.
Notas
[1] https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000383043.locale=en
[2] Westlund, O., Krøvel, R., & Skare Orgeret, K. (2022). Newsafety: Infrastructures, Practices and Consequences. Journalism Practice, 16(9), 1811–1828. https://doi.org/10.1080/17512786.2022.2130818
[3] Bélair-Gagnon, V.; Searles, K.; Vraga, E.; Holton, A. E.; Tandoc, E., C. Jr. (2024). Attacks on Journalism as an Occupational Hazard. International Journal of Communication 18(2024), 1–20. Disponível em: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/22695
[4] Documento Unesco – For improving the implementation of the un plan of action on the safety of journalists and the issue of impunity
[5] C190 – Violence and Harassment Convention, 2019 (No. 190)
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Janara Nicoletti é jornalista, mestre e doutora em jornalismo pelo PPGJOR/UFSC; pesquisadora e docente na Ludwig-Maximilians-Universität München, é pesquisadora associada ao objETHOS.
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