domingo, 26 de novembro de 2017

Morre o frei da Libertação do sul e sudeste do Pará

Henri des Roziers morreu neste domingo e serviu de referência para o atual advogado da CPT no sul do Pará, José Batista Afonso

Frei Henri enfrentou os poderosos das florestas no sul do Pará por longas décadas e ajudou a transformar a realidade de pequenos agricultores

Frei Henri des Roziers faleceu, na tarde deste domingo (26), na mesma Paris em que nasceu há 87 anos. Advogado de formação e dominicano por vocação, tornou-se um dos maiores defensores dos direitos dos trabalhadores rurais e camponeses na região de fronteira agrícola da Amazônia brasileira. Ele foi umas das referências para o atual advogado da CPT (Comissão Pastoral da Terra) na região, José Batista Afonso.

Esse homem magro, de fala mansa e andar compassado tornou-se referência no acolhimento de vítimas do combate ao trabalho escravo e na denúncia desse crime à Justiça e ao mundo. Mas também tornou-se um dos principais atores na luta pela reforma agrária, contra a impunidade dos ricos detentores de terras e pelo fim das arbitrariedades policiais.


A morte de Henri, decorrente do agravamento de seu estado de saúde (ele havia sofrido acidentes vasculares cerebrais e tinha uma miopatia congênita, que paralisava seus músculos), apesar de trazer um vazio a todos seus amigos – grupo ao qual, orgulhosamente, me incluo – não deixa de ser uma vitória. Pois nenhuma das várias ameaças que recebeu e nenhuma das tentativas de assassinato que sofreu conseguiram impedir seu trabalho.


Ou seja, o fato de Henri ter deixado a vida por conta própria é uma humilhante derrota para o rosário de grileiros, madeireiros ilegais, escravagistas e latifundiários inescrupulosos do Pará e do Tocantins que planejaram sua morte. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser visto como uma vitória de nossa frágil democracia. Porque ele sobreviveu apesar da incompetência do Estado brasileiro em garantir a vida aos defensores de direitos humanos em uma região regada periodicamente com sangue.


Henri, descendente de uma nobre família francesa que escolheu lutar ao lado do povo, incomodou muita gente. E fez com que a Amazônia fosse um lugar menos injusto para se viver.


Formado em direito e com um PhD em Direito Comparado, pela Universidade de Cambridge, Henri foi ordenado sacerdote em 1963 – cinco anos antes de participar dos protestos de estudantes e trabalhadores em Maio de 1968 nas ruas da capital francesa. Vem ao Brasil em dezembro de 1978, quatro anos após frei Tito ter cometido suicídio durante seu exílio, na França, como consequência da tortura que sofreu do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

''Cheguei ao Brasil no fim de 1978. Em 1979, vim para cá acompanhando um agente pastoral ao Bico do Papagaio [norte do atual Estado do Tocantins]. É terra sem lei. Os posseiros totalmente oprimidos, pequenos, não tinham uma organização mínima. Queriam minha expulsão do país.''


Durante anos, Henri foi a única assessoria jurídica dos trabalhadores nessa região. A violência na região tem uma origem histórica. Durante a ditadura militar, o governo federal concedeu uma série de subsídios financeiros a empresas para que se instalassem na Amazônia, garantindo também infraestrutura e segurança aos seus empreendimentos. Isso foi feito sem a ordenação da divisão das terras ou instalação de serviços essenciais que garantissem os mesmos direitos de ocupação para pequenos colonos e posseiros. Com isso, a Amazônia tornou-se uma região livre para grandes empreendimentos, grandes fazendas e seus interesses, em que o poder econômico faz a lei. Entre 1971 a 2006, foram registrados no Estado do Pará, 814 assassinatos no campo, dos quais a grande maioria permaneceu sem apuração.


Frei Henri des Roziers chegou a andar com proteção policial 24 horas por dia. No dia 18 de outubro de 2007, chegaram informações à Polícia Militar no município de Xinguara, Sul do Pará, que pistoleiros haviam contratados para assassinar Henri por R$ 50 mil.

Em 1990, Henri planejou mudar-se para a América Central a fim de desenvolver por lá o mesmo trabalho que fazia na Amazônia. Mas acabou se estabelecendo no município de Rio Maria (PA) a fim de ajudar o padre Ricardo Rezende após o assassinato, a tiros, de Expedido Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria.


''Henri é uma das figuras singulares, únicas, que têm a vida marcada pelo compromisso com os mais pobres. Teve uma atuação marcante pela proteção dos migrantes, na França nos anos 60. E durante 35 anos, lutou pelos camponeses e os trabalhadores em uma região que matava e escravizava'', lembra Ricardo Rezende.


Em uma de nossas conversas, ele me contou sobre essa época: ''Acompanhamos, por exemplo, toda a apuração, o processo e o julgamento dos assassinos dos sindicalistas da região de Rio Maria nos anos 80 e 90. Os fazendeiros resolveram acabar com o sindicato dos trabalhadores de Rio Maria e assassinaram uma série de presidentes. Nessa época, era um dos sindicatos mais atuantes da região. Foi assassinado o primeiro presidente em 1985. Depois, foi a vez de um dos líderes em 90 e seus dois filhos, que eram do sindicato, o terceiro saiu ferido. Foi assassinado, em 90, um diretor. E, em 91, o sucessor dele, além de baleados outros. Passei da região do Bico-do-Papagaio para aqui [Xinguara] a fim de ajudar na apuração desses crimes. Tem dado um trabalho enorme até hoje, mas conseguimos que todos os pistoleiros fossem a júri. Vários foram condenados. Todos fugiram.''


A Teologia da Libertação, linha da igreja católica que acredita que a alma só será livre se o corpo também for, tem sido uma pedra no sapato de quem lucra com a exploração do seu semelhante na periferia do mundo. Na prática, esses religiosos católicos realizam a fé que muitos não querem ver retirada do livro sagrado do cristianismo. Para traduzir, nada como uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.


Henri recebeu a condecoração de cavalheiro da Legião de Honra, do governo francês, em 1994, um dos tantos prêmios que ele recebeu. Após um dos AVCs que sofreu, foi transferido, a contragosto, para um hospital particular em São Paulo. Lembro do seu incômodo por estar lá. Achava que estava sendo mimado. Queria estar no mesmo hospital usado pela população com a qual convivia diariamente. Não por populismo ou a fim de provar algo para ninguém, ele não precisava. Mas porque sentia que aquele não era seu lugar.


Em 2013, profundamente debilitado pela doença, Henri voltou para sua terra natal e permaneceu no convento de Saint-Jacques até sua morte.


Frei Xavier Plassat, francês como Henri, coordena a campanha nacional da CPT para o combate ao trabalho escravo e está há décadas no Brasil. Foi ele quem me trouxe a notícia de sua morte. Desabafou: ''Henri tinha como mestre Bartolomeu de las Casas, dominicano e defensor dos indígenas escravizados, que viveu no século 16. Tinha dele a paixão irredutível, incansável, eficaz. Paixão e compaixão. Uma pessoa que sabia chorar de indignação e denunciar os potentados, sem medo. Dele, é o Deus do canto do Magnificat: 'Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos'. Henri foi quem me conduziu aqui no Brasil. Grato para sempre, Henri, meu irmão''.


Ao receber o Prêmio Internacional de Direitos Humanos Ludovic Trarieux, em 2005, mesmo reconhecimento dado a Nelson Mandela, ele afirmou: ''Neste mundo globalizado em que vivemos a loucura do consumo, neste mundo da injustiça e da desigualdade, da destruição da criação e, consequentemente, da vida, é essencial retomarmos consciência dos valores fundamentais da existência, da diversidade, da solidariedade, da relação com a natureza, de uma outra relação entre Norte e Sul, para podermos embasar a esperança de que um outro mundo é possível e nos motivarmos a construí-lo''.


Uma pessoa assim não morre. Eu que não tenho a mesma fé de Henri, acredito que ele sim atingiu a imortalidade. Viverá para sempre como um dos capítulos mais bonitos da história brasileira. (blog do Sakamoto – publicado originalmente no www.uol.com.br)


https://www.correiodecarajas.com.br/post/morre-o-frei-da-libertacao-do-sul-e-sudeste-do-para

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Redações à beira de um ataque de nervos



Em artigo para o Portal Comunique-se, o “Mestre do Jornalismo” Heródoto Barbeiro coloca em pauta a situação enfrentada por redações


As redações estão à beira de um ataque de nervos. As informações para serem transformadas em notícias chegam por vários canais. Pela reportagem, apuração, os mais variados sites e plataformas digitais, releases físicos ou virtuais, e também pelo Facebook, Google ou WhatsApp. Este não para de divulgar informações de origem pública, de outros veículos, de grupos com participantes pré selecionados ou de mensagens individuais. Pessoas e telefones que nunca vimos, de repente, aparecem no celular e trazem uma informação que aparentemente pode ser transformada em notícia.

Será verdade? Era mais fácil avaliar antes da teia de comunicação informacional se estruturar. A identificação da fonte era o primeiro passo para atestar se o que chegava era falso ou verdadeiro. Se estava exposto em um veículo de credibilidade, meio caminho andado. Ainda assim é preciso averiguar. E se o colega errou? Com o advento das mídias sociais há uma verdadeira avalanche de informações que brotam durante todo o dia e uma boa parte delas, falsas. Umas dolosamente falsas. O primeiro alvo é e reputação de pessoas, de preferência conhecidas; marcas, de preferência globais; instituições, de preferência de entidades que tem uma determinada posição sobre assuntos polêmicos.

“As redações estão à beira de um ataque de nervos. As informações para serem transformadas em notícias chegam por vários canais”


Khadafi morreu. Vários veículos consultados confirmam a informação e que já se transformou em notícia. Trump mandou tirar o busto de Martin Luther King do salão oval da Casa Branca. Com a fama que o histriônico americano tem, só pode ser verdade. Não era. A fonte, um repórter da revista Time errou. E a montanha de coisas que chega via WhatsApp? O político fez uma ligação que foi grampeada e nela conta como conseguiu milhões para suas despesas pessoais e o que sobrou aplicou na campanha. A precariedade, a diminuição de jornalistas na redação, a pressa de divulgar antes da concorrência não justificam divulgar, ou reproduzir a informação sem boa dose de apuração. É preciso checar nome, endereço, evidências em contrário, identificar a fonte se for possível.

A origem pode ser de um adversário ou de um bot à serviço sabe-se lá de quem e qual causa. Por isso o risco é maior consideradas as transformações pelo que passam os veículos e os jornalistas. Não é fácil estar atento para investigar evidências e pistas que vão contra o palpite, ou preferência pessoal do jornalista. Este precisa identificar as bolhas de informação especialmente as que lhe são simpáticas e comungam com a sua visão de mundo, aquela que gosta de ouvir e falar para fortalecer sua convicção.


Redações contra fake news


Será verdade? É possível conter a histeria de divulgar algo que parece que vai causar grande impacto no púbico alvo, promover o veículo ou plataforma que carregou e notícia e dar notoriedade ao jornalista ? Nunca o ditado dito por minha vó foi tão útil: quem tem pressa come cru. Contemplar os vários lados e pontos de vista ajuda, é preciso separar, como dizia o velho Mark Twain, o joio do trigo. O que de fato aconteceu e o que é ou fantasia, ou notícia falsa? Fake news já fazem parte de dicionário da língua inglesa. Mais do que nunca o jornalista tem que usar o ponto de interrogação como instrumento de trabalho diário.

Diante da realidade da confluência de mídias uma notícia não espera mais 24 horas, ou uma semana para chegar em uma banca de jornal ou na porta da casa de um assinante. Ela pulula na tela do celular com sinal sonoro, e viaja de metrô, ônibus e em alguns casos, de avião. O gesto de ler, ouvir, ver é imediato. Mesmo sorrateiramente durante uma palestra ou uma aula na escola. O impacto também é imediato e daí sobrevém o compartilhamento nas redes pessoais. Não se pode esquecer que com a tecnologia à disposição dos proprietários de smartphones qualquer pessoa pode se tornar um repórter ou editor. Se o seu público vai aceitar ou não o que divulga depende do seu chapéu de reconhecida credibilidade.

https://portal.comunique-se.com.br/redacoes-beira-de-um-ataque-de-nervos/?info