Aldo Santos, quilombola do território Saracura, em Santarém/PA foi homenageado
Aldo Santos [sentado], quilombola do território Saracura, o homenageado, e Dileudoo Guimarães [em pé], presidente da FOQS
“Não tenho nada para dizer para vocês. Tenho para dizer ao INCRA e para este governo: nos respeitem!” vaticinou o senhor Aldo dos Santos, remanescente quilombola da comunidade de Saracura, do município de Santarém, no oeste paraense, em evento de celebração pela passagem Consciência Negra, ocorrida no território de Bom Jardim, distante cerca de 40 quilômetros da sede do município.
Santos foi o ativista homenageado pela sua dedicação à sua luta em defesa do povo negro no município. No decorrer do discurso, visivelmente emocionado, ele rememorou ameaças de morte e enfrentamentos com fazendeiros. “Hoje todo mundo tem a sua casinha em nossa terra, conseguimos isso graças à nossa luta” realçou Santos.
Assim como Santos, outros e outras dirigentes passaram pela experiência de ameaça de morte, entre eles o senhor Pinto e Dileudo Guimarães. O senhor Guimarães é o anfitrião da celebração. O ativista preside a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém/PA, (FOQS).
Espaço de celebração do dia da Consciência Negra - Quilombo Bom Jardim, Santarém/PA
A representação aglutina as 12 associações dos territórios quilombolas da cidade. Ela resulta de um processo de luta iniciado no fim dos anos 1990. O reconhecimento territorial é a principal bandeira de luta da FOQS. Para além da bandeira da terra, constam pautas da educação, saúde, moradia, direito, gênero e juventude.
Em número de 60, é a estima dos territórios quilombolas no Baixo Amazonas, estes espraiados nos municípios de Oriximiná, Óbidos, Alenquer, Monte Alegre e Santarém.
O jovem de prenome Henrique, estudante universitário, realçou a necessidade de maior engajamento da juventude, e da necessidade em alinhamento de ações que ocupem as escolas para que os mais jovens conheçam a luta quilombola.
Ao redor do galpão que abrigou a celebração, professores das escolas em territórios expunham banners relacionados ao tema. Estudantes quilombolas da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) apresentaram resultados parciais de pesquisas relacionados com a memória de seus territórios.
Além de estudantes e professores da UFOPA , assessores da ONG de Terra de Direitos prestigiaram o ato, que durou todo o dia. A ONG mantém uma parceria que ultrapassa uma década com a FOQS.
Crianças no quilombo Bom Jardim e crianças da Praça da Liberdade, Santarém/PA
As representações de coletivos de mulheres advertiram sobre a urgência em reorganizar os grupos de mulheres em cada território, bem como delas ocuparem cargos na direção das associações.
Canções de exaltação da raça negra entremearam as falas dos dirigentes. Canções com Canto das Três raças, e musicas autorais dos próprios moradores dos territórios quilombolas.
Adversidades – no decorrer das variadas falas o adverso contexto político do país foi ressaltado, como o corte dos recursos das instituições como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Cabe ao instituto a elaboração dos laudos antropológicos nos territórios quilombolas.
O avanço da cadeia da soja a partir da pressão provocada pelo projeto de obras de infraestrutura, a exemplo de complexo portuário do Lago Maicá, projetos hidroelétricos, hidrovias, estações de transbordo de cargas. O pacote visa consolidar o Baixo Amazonas como um grande corredor de circulação de commodities.
O conjunto de obras tende a pressionar territórios já consolidados, a exemplo de quilombos, reservas extrativistas, projetos de assentamentos e um pujante mosaico de unidades de conservação.
Na sede da cidade, o coletivo quilombola protagonizou uma agitada agenda da VIII Semana da Consciência Negra, com o tema: “Negros, o Estado é racista! Ou reagimos ou morreremos!” que passou por debates na UFOPA, ocupação da Praça Liberdade, em bairro homônimo com apresentação artística e apresentação de pesquisas da universidade.
A professora da Universidade Federal do Pará, Zélia Amador, proferiu a conferencia de abertura da semana da consciência que se encerra na próxima sexta feira, com o lançamento do livro Uns contos iguais a muitos, resultado de pesquisa do professor da UFOPA, Luiz Fernando de França.
Entre os organizadores constam o Coletivo de Estudantes Quilombolas da UFOPA, Grupo de Pesquisa em Literatura, História e Cultura Africana, Kitanda Preta e o Ministério Público do Estado.
Com diálogos fora de contexto e nenhum indício que configure crime, prisão de brigadistas ligados à ONG, sob acusação de incêndio proposital, é suspeita. Tudo ocorreu sob circo midiático, um dia antes de Bolsonaro retornar à Amazônia…
Documentos, vídeos, interceptações telefônicas, uma investigação de dois meses. Policiais de óculos escuros, mídia devidamente avisada e pautada, fotografias de divulgação, coletiva de imprensa marcada. Tudo pronto para a notícia: polícia prendeu quatro brigadistas ligados à ONGs acusados de atearem fogo na mata em Alter do Chão para receber dinheiro. Saiu em todos os jornais. No dia seguinte, Bolsonaro pisaria pela primeira vez na Amazônia desde a crise internacional provocada pelas queimadas na região. Um roteiro estranhamente sincronizado.
Os presos são Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Aron Cwerner, membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, no Pará. Eles foram detidos ontem sob a acusação de terem provocado um incêndio criminoso na Área de Proteção Ambiental da região – levados à cadeia, tiveram os cabelos raspados. A polícia também apreendeu equipamentos na ONG Saúde e Alegria, que atua na região, e na qual um dos brigadistas trabalha.
Segundo a Polícia Civil, responsável pela investigação, os brigadistas, ligados à ONG, teriam elaborado plano de colocar fogo na floresta para escandalizar o planeta e receber doações de ONGs internacionais para combater o incêndio que eles mesmos teriam iniciado. “A pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações como do ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse o delegado José Humberto Melo Jr. na coletiva de imprensa.
Melo Jr. falou à Globonews que a polícia investigava a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso quando desconfiou de um grupo que, segundo ele, tinha “vantagens financeiras” com os incêndios. Grampearam os brigadistas e usaram os diálogos para fundamentar a acusação. Enquanto ele dava entrevista, a Globonews cravou no letreiro na tela: “brigadistas desviavam as doações para combate a incêndios”.
Como provas, a polícia divulgou gravações de conversas dos brigadistas. Também mencionou um vídeo divulgado pelo próprio grupo. “Eles gravaram o início de um fogo, de uma queimada. Só que só estavam eles”, disse o delegado. “Ali não teria como começar um fogo se não fosse por eles”. Esse é um dos vídeos que os brigadistas divulgaram na época:
A defesa dos brigadistas diz que eles são inocentes e que não teve acesso aos vídeos usados como evidências pela polícia e que, por isso, tem duas hipóteses. A primeira é de que “as imagens sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo controlados são criados para exercícios práticos”, feitas com apoio dos bombeiros e com licenças emitidas pelos órgãos responsáveis. A outra é de que a ação mostre uma tática conhecida como “fogo contra fogo”, também realizada em conjunto com os bombeiros para proteger áreas.
As conversas do grupo também foram divulgadas com pirotecnia. A mídia noticiou frases ditas pelos brigadistas que, segundo a polícia, comprovariam a intenção deles de provocar incêndio para ganhar dinheiro. “A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Vaquinha nossa. Tá maravilhoso!”, diz um dos brigadistas em uma conversa. “Tirem suas próprias conclusões”, tuitou o ministro Ricardo Salles:
Mas o blog Ambiência, da Folha, teve acesso aos diálogos completos. E eles mostram que, de fato, os brigadistas falaram sobre dinheiro de doações — mas discutiam quais exatamente seriam as contrapartidas para ele. “Com dúvidas básicas que mostram inexperiência e preocupação com a correção, um dos brigadistas chega a perguntar se precisaria devolver o equipamento após o contrato, ao que o representante da WWF responde ‘não, é de vocês’”, diz o texto. Essas partes da conversa, é claro, não foram divulgadas.
A brigada, criada em 2018, faz parte da ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, criada para articular ações de combate a incêndios na região. Em nota, a defesa dos brigadistas afirma que fez a declaração dos valores recebidos no fim de setembro e que as doações posteriores ainda estão sendo consolidadas em um relatório. Segundo os brigadistas, o valor recebido da WWF foi uma parceria com o instituto para aquisição de equipamentos para a brigada, e as contas serão prestadas no dia 10 de dezembro.
Uma ONG para chamar de culpada
Nesta manhã, a justiça do Pará decidiu manter os quatro brigadistas — todos sem antecedentes criminais — presos. “Mantive as prisões porque as acusações são muito graves de uma possível prática reiterada de incêndios criminosos. O que não significa que eles sejam culpados”, disse o juiz Alexandre Rizzi.
Hoje, o presidente Jair Bolsonaro chega à Amazônia. É a primeira vez que ele pisa na região depois da crise internacional provocada pelos incêndios e pelo desmatamento na área, que chegaram a alimentar, até mesmo, a paranóia de militares e do governo sobre a internacionalização da Amazônia.
Entre agosto e setembro deste ano, o mundo assistiu estarrecido às imagens de queimadas e a divulgação de números do aumento do desmatamento na região. Uma das primeiras reações do presidente foi acusar ONGs que atuam na região de provocarem os incêndios para “chamar a atenção” e conseguir dinheiro. Bolsonaro, como de hábito, não apresentou provas da sua acusação.
“O crime existe, e isso aí nós temos que fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro”, ele disse.
Não foi a única vez: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também insinuou que o Greenpeace seria responsável pelo derramamento de óleo na costa do Nordeste, outro desastre ambiental deste governo.
Com a midiática operação policial que prendeu os brigadistas, Bolsonaro e Salles podem agora justificar a acusação contra as supostas ONGs criminosas. A prisão se encaixa perfeitamente na estratégia do governo de demonizar e enfraquecer organizações não governamentais, um estágio fundamental para implantar o plano do Governo Bolsonaro para a floresta: abrir espaço para mais monocultura, pecuária e mineração. E a polícia civil do Pará deu o que eles precisavam para mostrar serviço na primeira visita do presidente à região depois da crise.
Há uma investigação paralela que corre no Pará para encontrar os responsáveis pelo Dia do Fogo, ação de fazendeiros da região para provocar incêndios ao longo da BR-163. Tocada pela Polícia Federal, ela mostrou que os responsáveis articularam a queimada via WhatsApp — em um grupo que tinha, inclusive, um delegado da Polícia Civil — para dificultar a fiscalização. O grupo é apoiador das políticas de Bolsonaro para a região. Até agora, ninguém foi preso e nenhum acusado foi exibido como troféu na mídia.
As prisões dos brigadistas são suspeitas. Não há nada nos diálogos que configurem provas robustas contra eles. O que existe é apenas interpretação de trechos de diálogos que, dependendo da inclinação ideológica do leitor, pode significar uma coisa ou outra. O material, que é dúbio, não deveria ser suficiente para um juiz privar um cidadão da liberdade sem condenação.
Mas as prisões criam lastro para uma acusação rocambolesca que favorece o presidente – um presidente que tinha viagem marcada para a região em poucos dias. Até que a polícia apresente provas mais fortes, o que temos é uma tentativa da polícia e do juiz de mostrar serviço para agradar Bolsonaro e justificar a ideologia de criminalização de ONGs, uma tese estranhamente popular entre autoridades das profundezas da Amazônia. Uma tese que, enquanto não for provada, é simplesmente falsa.
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Em artigo científico, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, no Pará, atestaram que exposição ao elemento químico pode ser resultado da queima de combustíveis fósseis nas indústrias
Lucivaldo e Rackel Baía dizem que a mãe, dona Raimunda, ficou doente por causa da poluição das mineradoras (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Barcarena (PA) – O bairro Dom Manoel está localizado às margens da rodovia estadual PA 483, uma das vias que liga a capital Belém ao município de Barcarena, nordeste do Pará. Uma pequena placa suspensa em uma parada de ônibus assinala a entrada do “bairro fantasma”. No lugar não tem moradores. As casas começaram a ser desmontadas no ano de 2012, dando lugar a pilhas de tijolos que, com o tempo, foram levados para outros lugares ou furtados. Muitos desses vestígios e escombros permanecem como testemunhas da história de abandono do local, como se as 147 famílias que viviam ali tivessem saído às pressas.
E elas realmente saíram. O estudo socioeconômico produzido naquele ano, pela Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e a Fundação de Apoio à Pesquisa, Extensão e Ensino em Ciências Agrárias (Funpea), confirmou que as famílias deixaram o bairro Dom Manoel por conta da acentuada poluição das indústrias mineradoras que armazenam diferentes produtos danosos à saúde. Dentre eles estão: combustíveis fósseis, como o coque de petróleo (conhecido como petcoke) e o carvão mineral; manganês, bauxita e caulim. O estudo não apontou o elemento químico e sua consequência à saúde humana da população que vivia no entorno do Parque Industrial de Barcarena.
Ex-moradora do bairro Dom Manoel, Maria das Graças dos Anjos, de 48 anos, disse à agência Amazônia Real que, antes de deixar sua casa, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão do Ministério da Saúde, coletaram amostras de seu sangue e retiraram fios do seu cabelo para exames. Ela disse que nunca soube o resultado desses exames.
Dona Maria, que morou por mais de 30 anos no bairro Dom Manoel, relatou os problemas de saúde que sofre por causa da poluição ambiental: “Comecei a sentir dor no estômago, coceira na garganta e na pele. Esse problema na minha pele dura até hoje, não sei se ainda fico boa disso. A gente está doente e sem saber do que”.
Sua filha, Valdenice dos Anjos, disse que denunciou, à época, às autoridades, a contaminação da população pela poluição das mineradoras. “Denunciamos na Secretaria de Meio Ambiente do Estado e do Município, e também no Ministério Público. Ninguém viu ou ninguém quis ver nossa situação”, diz ela, que é neta de Manoel Brandão, o fundador da comunidade “Cabeceira do Curuperé”. Foi essa comunidade que, com a criação do parque industrial, passou a se chamar Dom Manoel, em homenagem ao seu avô.
Níveis de chumbo
Em 22 de agosto deste ano, o Instituto Evandro Chagas (IEC) divulgou o estudo “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia” (publicado em inglês “Human Blood Lead Levels and the First Evidence of Environmental Exposure to Industrial Pollutants in the Amazon”), que trouxe uma luz à desinformação sobre a poluição ambiental em Barcarena.
A pesquisa consistiu na coleta e análise de amostras de sangue dos moradores dos bairros Dom Manoel – localizado entre 20 e 200 metros do Parque Industrial de Barcarena – e Laranjal, distante dali entre 3 e 5 quilômetros. Essas comunidades foram escolhidas por estarem próximas de possíveis focos de contaminação por efluentes industriais descartados, sobretudo pelas indústrias de beneficiamento mineral localizadas a montante, comprometendo os cursos d’água, o solo e o ar dessa região no nordeste do Pará.
A pesquisa revelou que no bairro Dom Manoel a população está ambientalmente exposta a chumbo (Pb), independente de gênero, tempo de residência e outros dados epidemiológicos.
“No sangue, os níveis deste elemento foram detectados em valores até nove vezes maiores que os resultados encontrados na comunidade do Laranjal”, diz o IEC.
A pesquisa apontou que no sangue dos moradores do bairro Dom Manoel há nível médio de chumbo de 281,6 microgramas por litro. Esse nível é 12 vezes mais alto do que na Grande São Paulo, uma das regiões mais industrializadas do Brasil, que apresenta uma média de 23,7 microgramas por litro.
Já os moradores do bairro Laranjal apresentaram um nível médio de chumbo no sangue de 32,8 microgramas por litro.
Conforme a pesquisa, “os níveis de chumbo em adultos do bairro Dom Manuel foram até cinco vezes maiores que os níveis recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 11,1% dos jovens, 26,3% dos adultos e 50% dos idosos tinham níveis de chumbo na faixa de 300 a 500 microgramas por litro, ou seja, cerca de três a cinco vezes o limite tolerável pela OMS, que é de 100 microgramas por litro em adultos”.
“Os níveis em crianças atingiram valores até oito vezes superiores aos recomendados pela OMS”, diz o estudo. “27,3% das crianças de zero a dez anos de idade apresentaram níveis de chumbo no sangue que variaram entre 300 e 400 microgramas por litro, o que representa cerca de 6 a 8 vezes mais do que o limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no organismo humano infantil, de 50 microgramas por litro”, complementa.
De acordo com a pesquisa do IEC, no bairro Dom Manoel foram coletadas 41 amostras de sangue dos moradoras, entre os anos de 2009 a 2013, período em que ocorreu, também, as análises dos materiais biológicos.
A pesquisa assinada pelos cientistas Thaís Karolina Lisboa de Queiroz, Karytta Sousa Naka, Lorena de Cássia dos Santos Mendes, Brenda Natasha Souza Costa, Iracina Maura de Jesus, Volney de Magalhães Câmara e Marcelo de Oliveira Lima, foi publicada na revista suíça International Journal of Environmental Research and Public Health (em português Revista Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública).
“Esta é a primeira evidência de exposição ambiental a poluentes industriais na Amazônia”, afirmam os pesquisadores.
Combustível fóssil
No estudo “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia”, os pesquisadores Instituto Evandro Chagas (IEC) observaram que a queima de combustíveis fósseis pode ser uma das causas para a contaminação por chumbo no bairro Dom Manoel. Em Laranjal os níveis foram considerados seguros.
“O uso do carvão mineral, assim como do coque de petróleo (petcoke), também utilizados nas indústrias de Barcarena como alternativa energética, produzem uma quantidade significativa de materiais tóxicos, incluindo o chumbo”, diz a pesquisa.
Os profissionais destacaram no estudo que, mesmo tendo sido proibida a presença de chumbo em combustíveis desde a década de 1990 no Brasil, o carvão mineral continua sendo utilizados nas caldeiras das indústrias em Barcarena.
“Combustíveis fósseis, como carvão mineral, usado em caldeiras no processamento industrial de caulinita e bauxita, emitem poluentes atmosféricos e geram resíduos e efluentes industriais com altos níveis de chumbo”, destaca o estudo.
As formas de absorção do chumbo ocorrem por meio da contaminação pelo ar, pela poeira, pelos alimentos e pela água. É por esse motivo que os pesquisadores do IEC analisaram também os hábitos alimentares dos moradores dos bairros Dom Manoel e Laranjal.
Em nota enviada à Amazônia Real, o Instituto Evandro Chagas (IEC) informou que “os resultados do estudo ainda não consideram a análise de outros contaminantes”, e que os dados obtidos “não permitem identificar as rotas de exposição (água, ar ou alimentos), sendo necessários estudos mais aprofundados acerca da exposição ao chumbo”.
A nota do IEC alerta que os níveis elevados de chumbo, atestados pelas coletas, não significam o imediato adoecimento da população, sendo recomendado o acompanhamento da saúde dos indivíduos que foram ambientalmente expostos, caso permaneçam em contato com as fontes de exposição ao metal.
Mas o estudo sugere um acompanhamento dos moradores de Barcarena. “O IEC vem contribuindo com os órgãos de saúde e Ministério Público, no sentido de se delinear encaminhamentos que visem encontrar soluções para mitigar e/ou sanar o cenário observado até o momento”, diz a nota.
25 desastres em 17 anos
O Pará é o segundo estado no ranking da exploração e refinamento de minérios no Brasil, perdendo para Minas Gerais. Em 2018, 88% das exportações estaduais vieram das indústrias de mineração e refinamento de minérios. Dados do Sindicato das Indústrias Minerais do Estado do Pará apontam US$ 276 milhões são procedentes da extração e do refinamento de ouro, níquel, silício, caulim e bauxita, os dois últimos refinados em Barcarena.
As indústrias mineradoras se instalaram no Parque Industrial de Barcarena, desde a década de 1980. Entre 2001 e 2018, mais de 25 desastres ambientais ocorreram no município. Destes, pelo menos 21 podem ser atribuídos às indústrias de transformação mineral que atuam no município, que tem uma população estimada em 124.680 pessoas, segundo o IBGE.
No Inquérito Civil Público no 1.23.000.000661/2015-70, que obrigou judicialmente as indústrias a providenciar água potável à população contaminada de Barcarena, a Justiça Federal citou as indústrias Albras Alumínio Brasileiro S.A. e Alunorte Alumina do Norte do Brasil S.A. Ambas participam da cadeia produtiva do alumínio no município e são de propriedade do grupo norueguês Norsk Hydro.
Também foi citada a indústria francesa Imerys Rio Capim Caulim S.A., que possuiu duas minas em Ipixuna do Pará, também no nordeste paraense, de onde vem o minério bruto beneficiado em Barcarena. Além dessas, ainda são listadas na ação a multinacional norte-americana e produtora de coque de petróleo Oxbow Brasil Energia Indústria e Comércio Ltda. (antes chamada Tecop – Terminal de Combustíveis Sólidos da Paraíba Ltda), e a Mineração Buritirama S.A., que produz manganês, entre outras.
A mineradora Imerys é considerada uma recordista em desastres ambientais do Parque Industrial de Barcarena. A empresa possui no local dez barragens de rejeitos instaladas, conforme registros no Sistema Nacional de Informações Sobre Segurança de Barragens (SNISB), vinculado à Agência Nacional de Águas (ANA).
Em 2018, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) formalizaram um Termo de Ajustamento de Conduta com a Hydro Alunorte – a maior produtora de alumínio do mundo –, após o vazamento da bacia de resíduos sólidos DRS1. Conforme estudo do IEC, as amostras de águas das comunidades ribeirinhas de Barcarena tinham níveis de chumbo, sódio, nitrato e alumínio, estando este último 25% acima do permitido para a saúde humana.
Os danos à saúde humana
O estudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) diz que os moradores do bairro Dom Manoel apresentaram níveis elevados de chumbo no sangue, independentemente da faixa etária e sexo, sendo que as altas concentrações foram observadas nos grupos mais vulneráveis, como crianças e idosos.
Crianças expostas ao chumbo em Barcarena podem sofrer “danos permanentes ao quociente de inteligência, deficiência cognitiva, irritabilidade e déficit de atenção, além de cólicas abdominais, neuropatia, encefalopatia, anemia, nefropatia e tonturas”, diz a pesquisa do IEC. Um dos motivos para a maior contaminação dessa faixa etária é que as crianças participam mais de atividades de recreação e lazer ao ar livre, estando mais expostas aos produtos tóxicos.
Nos adultos, a exposição ao chumbo – que depois de absorvido pode permanecer bioacumulado no organismo de dez a 30 anos – está relacionada com danos ao sistema nervoso, manifestando-se nas formas de “dores de cabeça, perda de memória, perda de concentração e atenção às tarefas cotidianas, alterações de humor, irritabilidade, depressão e insônia”, informam os autores da pesquisa do IEC.
Outras pesquisas apontam que a contaminação por chumbo pode causar danos aos sistemas nervoso central e cardiovascular, aos rins e ao fígado.
Em 2012, um relatório do Instituto Blacksmith, em parceria com as Organizações das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO/ONU), classificou o chumbo como um dos poluentes que mais matam no mundo, juntamente com o cádmio, o cromo, o mercúrio, entre outros, resultantes de processamentos industriais ligados à mineração.
“Minha mãe era saudável”
Em Barcarena, a reportagem da agência Amazônia Real encontrou Raimunda Baía, de 71 anos, deitada em uma cama, por conta de um derrame cerebral que sofreu antes de deixar o bairro Dom Manoel, em 2014. Seu esposo, Ulisses Baía, 87 anos, disse que ela adoeceu devido à influência da poluição.
Ulisses recorda que na casa em que moravam tinha uma pequena roça que provia o sustento da família. “Aquilo ali era um paraíso, a gente tinha de tudo lá. Só de açaí a gente tinha 900 pés. Nossos filhos foram criados com o que a gente tirava da roça. Aí chegaram as indústrias e não prestou mais”, contou ele, sem conseguir disfarçar as lágrimas.
O casal é aposentado como trabalhador rural. Ao deixar o bairro Dom Manoel, a família foi viver em Vila do Conde, também em Barcarena.
No ano 2001, o casal Ulisses e Raimunda ficou famoso na localidade porque sua penúltima filha, Eunice Baía, protagonizou o filme “Tainá – uma aventura na Amazônia”, história da menina indígena defensora da floresta. Ela foi escolhida para viver a personagem, após enfrentar uma seleção com mais de 3.000 crianças de todo o país. As filmagens foram realizadas em Manaus, no Amazonas.
Atualmente é a filha caçula Rackel Baía, de 26 anos, que cuida dos pais. Ela diz que dona Raimunda ficou doente ainda no bairro Dom Manoel. “Primeiro ela teve uma demência, depois uma falta de ar e uma moleza que não tinha fim. Aí veio um derrame e ela ficou assim [acamada]”, contou à reportagem.
Rackel diz que sua mãe era saudável antes das mineradoras se instalarem no entorno do bairro Dom Manoel.
“Minha mãe era saudável e ficou doente por conta da poluição que chegou. Primeiro foi a Buritirama e depois a Tecop. Tinha dia que a gente acordava com o nariz todo preto daquele pó. A gente varria a casa e era aquele monte de poeira preta. Se estendesse uma roupa branca no varal, já era”, relembra Rackel.
Assim como os outros moradores do bairro Dom Manoel, dona Raimunda Baía passou por exames com amostras de sangue e cabelo aplicados pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), em 2012. Seus filhos Lucivaldo Baía e Rackel Baía disseram à Amazônia Real que até o momento não tiveram acesso aos resultados dos estudos do IEC.
A indústria Tecop (atual Oxbow Brasil Energia) produz o coque de petróleo (ou petcoke), tendo sido inaugurada em 2012 na cidade de Barcarena. Um muro baixo separa o antigo depósito de combustível sólido da mineradora do bairro Dom Manoel. A Oxbow é uma multinacional norte-americana, que tem indústrias também em Cabedelo, na Paraíba.
A Mineração Buritirama S.A. é uma das maiores produtoras de manganês do mundo, que na época estocava próximo ao bairro Dom Manoel o mineral destinado à exportação.
Os sem indenização
Após saber que o Instituto Evandro Chagas (IEC) publicou o artigo “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia”, com os resultados das pesquisas da contaminação de chumbo em Barcarena, o presidente da Associação de Moradores do Bairro Dom Manoel, Lúcio Negrão, disse que solicitou os resultados dos exames ao IEC. Ele contou à reportagem que foi informado pelo instituto que os resultados serão entregues dentro de uma programação, que ainda não foi divulgada pelo órgão.
O presidente da associação disse que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 2015, foi firmado entre MPPA (Ministério Público do Pará), o MPF (Ministério Público Federal), a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Estado do Pará (Codec), o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e a Companhia de Habitação do Estado do Pará (Cohab), para mediar o remanejamento e/ou indenização das famílias moradoras dos bairros Dom Manoel.
Lúcio Negrão disse que uma parte da população foi indenizada e outra segue aguardando o benefício. “Das pessoas que viviam no Dom Manoel, faltam ainda umas 20 receberem a indenização. Eu sou uma delas”.
O presidente da Associação de Moradores do Bairro Dom Manoel é assistente social. Ele disse que a população decidiu se organizar enquanto associação, justamente por conta dos problemas ambientais e de saúde que começaram a enfrentar em Barcarena.
Negrão conta que muitas pessoas começaram a sair do bairro por conta própria, sem esperar a indenização que deveriam receber, devido a poluição das mineradoras.
O assistente social afirma ainda que, apesar de ser identificado como bairro, a origem de Dom Manuel é uma ocupação tradicional. “Nós não perdemos essa característica, tanto que em 2016, um Laudo Técnico [001/2016/SEAP], encomendado pelo MPF, reconheceu a comunidade Dom Manoel e outras que vivem próximas aos rios e igarapés Curuperé, Acuí, Arienga, Pramajó, Maricá e Dendê, como tradicionais”.
Negrão afirmou que, ao contrário do que se possa pensar – pelo modo como as famílias deixaram o lugar a partir de 2012 – “o bairro Dom Manoel não acabou.”
“Essa história só vai terminar quando todo mundo receber a sua parte por ter que abandonar suas casas, e quando as empresas indenizarem todo mundo que adoeceu por conta da poluição que foi para lá”, cobrou o líder comunitário.
A rua estreita que leva ao bairro dá conta do processo de achatamento que o espaço sofreu. O mato alto e os entulhos justificam o apelido de “bairro fantasma” que o lugar acabou ganhando, exceto pelo campo de futebol do “Bosquinho do Fuscão”, que resiste muito bem cuidado, e onde, nos fins de semana, acontecem campeonatos promovidos pelo seu Adevaldo, mais conhecido como Fuscão.
Ele é filho de Manoel dos Anjos Brandão, fundador da comunidade Cabeceira do Curuperé, que depois virou o bairro Dom Manoel: “Antes o nome aqui era cabeceira e depois a gente colocou o nome em homenagem ao meu pai, que foi quem criou a nossa comunidade”.
Manoel Brandão repartiu a fração de terras que possuía com os filhos e doou alguns lotes para amigos e familiares, dando origem à comunidade e, portanto, ao uso coletivo da terra.
Adevaldo não consegue disfarçar a emoção ao falar da boa vontade do pai e da vida que tinham no bairro antes das chegadas das indústrias: “Quando eu olho hoje eu nem acredito que isso aqui está assim, destruído por causa dessa poluição. Eu não me conformo de ter perdido a paz que a gente tinha no Dom Manoel”.
O que dizem as mineradoras?
A agência Amazônia Real procurou as mineradoras citadas pelos moradores do bairro Dom Manoel, em Barcarena (PA) nesta reportagem, para que elas respondessem aos questionamentos dos comunitários, e também para que as empresas comentassem o resultado do artigo científico “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia” dos pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC).
Em notas enviadas à reportagem, as mineradoras Albras e Alunorte não negaram que utilizam combustível fóssil como fonte de energia na produção de alumínio, mas destacaram que irão fazer mudanças na matriz energética.
A Alunorte disse que está trabalhando em um projeto para mudança de parte da matriz energética, visando o uso de gás natural nas suas operações. “A Alunorte possui tecnologias e realiza boas práticas preventivas no controle das emissões atmosféricas de suas operações. Nos calcinadores, são utilizados precipitadores eletrostáticos para o controle de material particulado e, nas caldeiras, são utilizados filtros de manga para o controle de material particulado, bem como dosadores de calcário para a neutralização de SO2”, disse a assessoria de imprensa.
A Albras afirmou que não possui caldeiras no seu processo industrial. “A empresa está acompanhando a mudança de parte da matriz energética da Alunorte para futuramente ter o mesmo benefício do uso de gás natural nas suas operações, sobretudo na etapa inicial do processo produtivo”, afirmou a assessoria da mineradora.
A indústria destacou que “faz o controle de emissões de suas fontes de energia e afirma que os seus índices estão abaixo dos limites estabelecidos por lei”, informou a assessoria.
Em nota enviada à reportagem, a francesa Imerys Rio Capim Caulim negou utilizar combustíveis de origem fóssil como matriz energética, afirmando ainda desconhecer qualquer problema relacionado à contaminação por chumbo nos bairros vizinhos às suas instalações, em Barcarena. “A Imerys não utiliza esse tipo de fonte de energia”, diz a mineradora, destacando: “Esses metais não são utilizados nas operações da Imerys”.
À reportagem, a assessoria de imprensa da Mineração Buritirama S.A. informou em nota o seguinte: “nós não temos e nunca tivemos operações de Mineração em Barcarena. Temos apenas atividades referentes a logística em Barcarena”.
A Amazônia Real consultou a Junta Comercial do Estado do Pará (Jucepa) sobre a atividade da Buritirama S.A. Segundo o órgão, a Mineração Buritirama está instalada desde 16/02/2005 no KM 18 da PA 483, no perímetro urbano do bairro Dom Manuel. A indústria tem uma mina de manganês em Marabá, no sudeste do Pará.
Procurada por telefone e e-mail, a Oxbow Brasil Emergia (também conhecida como Tecop) não atendeu à reportagem.
O que diz o MPF?
A Amazônia Real perguntou ao Ministério Público Federal (MPF) no Pará se o órgão irá abrir um procedimento para investigar a contaminação por chumbo da população do bairro Dom Manuel, em Barcarena. O MPF respondeu que já tem investigação aberta sobre o tema, e vai incluir esses dados da pesquisa do Instituto Evandro Chagas (IEC) na investigação do procedimento administrativo nº (1.23.000.000141/2019-91).
“O objetivo [do procedimento] é acompanhar as consequências da poluição nos territórios das comunidades tradicionais Acuí, Arienga, Bairro Industrial, Canaã, Curuperé, Dom Manoel, Ilha São João, Maricá e Pramajó, localizadas em Barcarena/PA, em razão da implantação do complexo do Distrito Industrial de Barcarena/PA)”, esclarece a nota da assessoria de imprensa do MPF.
Sobre o estudo “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia”, publicado em inglês na revista suíça International Journal of Environmental Research and Public Health, o MPF disse que está analisando os dados. “Estamos em contato com o Instituto Evandro Chagas para obter as informações em português, para que possam servir de prova em eventual processo judicial”.
Sobre o Inquérito Civil Público no 1.23.000.000661/2015-70, que em 2015 obrigou judicialmente as mineradoras a providenciar água potável para a população de Barcarena, primeiramente por meio da distribuição emergencial de água potável e, por fim, por meio da instalação de sistema de abastecimento permanente de água potável, o MPF disse que, durante a tramitação da ação a Justiça Federal, declinou o processo para a Justiça Estadual.
“O MPF recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região, em Brasília, contra essa decisão. O processo nº 1006728-45.2018.4.01.0000 aguarda decisão no tribunal. Na Justiça Estadual, o processo ganhou o número 0005489-66.2019.8.14.0008 e tramita na 1ª Vara Cível e Empresarial de Barcarena. Também na Justiça Estadual o processo aguarda decisão”, segundo o que esclareceu o órgão.
Isso significa dizer que o bairro Dom Manoel não recebeu, até o momento, o sistema de abastecimento permanente de água potável das mineradoras, o que impede que os moradores retornem às suas casas, como desejam.