terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Um mês após Brumadinho, Altamira protesta contra Belo Sun


Movimentos sociais prestam solidariedade às vitimas da Vale em MG e exigem cancelamento do projeto de mineração de ouro da empresa canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu. Autoridades vistoriam região em megamissão inédita




No dia em que o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, MG, completou um mês, centenas de manifestantes tomaram as ruas de Altamira, no Pará, para prestar solidariedade às vítimas da maior empresa de mineração do país. Atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte, os paraenses também exigiram que outro projeto de proporções catastróficas, Belo Sun, que pretende ser a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil, seja definitivamente enterrado.
A marcha saiu do mercado de Altamira às 16 h e percorreu as ruas centrais da cidade, finalizando com um ato ecumênico celebrado pelo bispo emérito da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler. Comparando os projetos de Brumadinho e Belo Sun, o bispo ressaltou as características extraordinárias da Volta Grande do Xingu, uma das regiões mais megadiversas do país. Depois dos impactos de Belo Monte sobre a população local, enfatizou, um novo megaprojeto, cuja barragem de rejeitos seria quase três vezes maior do que a de Brumadinho, serial letal.

Bispo Emérito Dom Erwin Kräutler alertou contra perigos de barragem de rejeitos no Xingu

De acordo com a coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, Antonia Melo, o ato foi convocado pelo Fórum em Defesa de Altamira, e contou com a participação de militantes sociais, religiosos, estudantes, ribeirinhos, sindicalistas, comunidades, pescadores, assentados e outros setores atingidos pela hidrelétrica. “Sinto que a população está se mobilizando de novo. Faz tempo que não fomos tão bem recebidos pelos moradores de Altamira quando saímos às ruas na semana passada para convocar a manifestação. Está todo mundo muito machucado por Belo Monte e com medo de Belo Sun”.
Ainda segundo Antonia Melo, em uma reunião do Ministério Público com comerciantes na última semana, um empresário do Clube de Lojistas de Altamira teria se colocado claramente contra o projeto de mineração de Belo Sun. “Os empresários apoiaram Belo Monte e o comercio sofreu muito. Esta todo mundo quebrado, sem perspectiva, endividado. Belos Sun é visto como uma repetição e está sendo rejeitada por todos os setores”.
Antonia Melo: amplos setores de Altamira temem e rejeitam mina canadense na Volta Grande
Na Justiça

O projeto da mina de ouro Belo Sun que, a poucos quilômetros do paredão de Belo Monte, quer instalar na Volta Grande a maior mina de ouro a céu aberto do país, teve seu licenciamento paralisado pela Justiça Federal no final de 2017. De acordo com decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, antes de qualquer coisa as populações indígenas que deverão ser impactadas terão que ser consultadas de acordo com a Convenção 169 da OIT. Neste sentido, os Juruna da Terra Indígena Paquiçamba já elaboraram um protocolo de consulta que, segundo decisão do desembargador Jirair Aram Meguerian, deve nortear o processo. O Ministério Publico Federal também exige que o licenciamento ambiental da mina seja feito pelo Ibama e não pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMAS). Inicialmente, a Justiça deferiu o pedido, mas posterior decisão de um juiz local retornou a pertinência à Semas. O MPF está recorrendo.


Vistoria da Volta Grande

Ministério Público Estadual e Xingu Vivo conversam com moradores do Travessão Pirarara

Enquanto em Altamira a população se manifestava contra Belo Sun, os Ministérios Públicos Federal e do estado e as Defensorias Públicas da União e do Pará deram início a uma megamissão na região da Volta Grande do Xingu para verificar o estagio do cumprimento de condicionantes de Belo Monte e os impactos da hidrelétrica sobre as populações locais. Além dos quatro órgãos, participam representantes do Incra, do Ibama, da Funai, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, das Universidades Federais do Pará e de São Carlos (SP), das Nações Unidas e da União Europeia, além do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
O objetivo é verificar se estão sendo cumpridas as obrigações estatais e as ações previstas no plano básico ambiental da usina hidrelétrica de Belo Monte para garantia da vida no trecho de vazão reduzida, o trecho do rio Xingu que deve ficar sob monitoramento por seis anos enquanto fornece 80% de sua água para as turbinas da usina.
De acordo com Ana Barbosa e Luiz Teixeira, integrantes do Xingu Vivo, a missão se dividiu em vários grupos que estão visitando comunidades e municípios entre os dias 25 e 26 de fevereiro. “Nós estivemos com a Defensora Agrária Pública do Estado, Andreia Barreto, no Travessão do Pirarara, em uma reunião que juntou comunidades de quatro travessões. O que vimos e ouvimos foi desolador. Não há políticas públicas, não há um projeto de vida para a população impactada por Belo Monte. Duas das escolas nas comunidades estão fechadas, não há merenda nem transporte adequado para as crianças, não há nem material de limpeza. As estradas estão em péssimo estado e as pontes todas comprometidas”, relata Ana Barbosa.
Transporte escolar improvisado é feito por caminhonete sem segurança para as crianças
Segundo Ana Barbosa, está claro que Belo Monte tem impactos muito profundos e ainda desconhecidos na região, o que torna impossível que um projeto do porte de Belo Sun se instale e adicione novos problemas à Volta Grande. “Já foi estabelecido pelo Ibama que por pelo menos seis anos, enquanto perdurar a avaliação do que a diminuição do curso do Xingu na Volta Grande – o chamado Hidrograma de Consenso – por causa de Belo Monte causará às comunidades, é impossível se pensar em novo empreendimento na região. Esperamos que esta missão leve as autoridades a enterrar de vez o projeto de Belo Sun”.
Fotos: divulgação Xingu Vivo

https://amazonia.org.br/2019/02/um-mes-apos-brumadinho-altamira-protesta-contra-belo-sun/?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Not%26iacute%3Bcias+da+Amaz%26ocirc%3Bnia+-+26+de+fevereiro+de+2019


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Vidas atravessadas: como a Vale afeta o cotidiano de indígenas e sem-terra no Pará


Trem da Vale, que matou 39 pessoas em oito anos, corta a Reserva Indígena Mãe Maria / Laís Souza / Arquivo Joana Zanotto

Geny Viana Porto já matou uma sucuri, e agradece a Deus pela força que tem. As dores nas costas não a impedem de trabalhar agachada no roçado. A agricultora ostenta, aos 64 anos, um corpo esguio e vigoroso, apesar das pontadas que se agravaram desde a última ida até a zona urbana de Parauapebas (PA). A região central da cidade fica a mais de 20 quilômetros da casa dela. A estrada é de chão batido, com inúmeros solavancos e lombadas sem sinalização.
Três gerações de mulheres da família vivem no assentamento Palmares II, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Geny, a filha Carla Simone e a mãe Lindaura criam cavalos, vacas, porcos e aves. Também cultivam milho, feijão, legumes, temperos e ervas medicinais. A vida se encarregou de levar seus homens. O irmão de Geny, Juarez, e o pai, Joaquim, foram atropelados em 2006 e 2010, respectivamente, no mesmo local, pela locomotiva da Vale S.A.
Geny teve o pai e o irmão atropelados pelo trem da Vale, e tenta reconstruir a vida no assentamento Palmares II (Foto: Joana Zanotto)
A Estrada de Ferro Carajás (EFC) percorre toda a extensão ao longo do assentamento conquistado há 15 anos pelo MST. Depois dos atropelamentos, representantes da Vale passaram a visitar a casa de Geny com cada vez mais frequência, mas nunca para propor soluções. Até que ela desse um basta: “Falei para pararem de nos fazer de palhaças.”
Após os crimes de Mariana (MG) e Brumadinho (MG), a Vale está prestes a encerrar as atividades em Minas Gerais. Em contraponto, as operações da mineradora transnacional no Pará estão em plena ampliação. No ano passado, foram aprovados investimentos de U$S 1,1 bilhão de doláres no projeto de cobre Salobo II, e a EFC foi duplicada. Os conflitos por terra e os impactos socioambientais crescem na mesma proporção dos empreendimentos minerários no estado.
Geny conta que a transnacional – apesar do lucro líquido de R$ 17,6 bilhões em 2017, 38% a mais que no ano anterior – não indenizou os sobrinhos que perderam o pai nem construiu uma passagem segura no local das mortes: “Só pagaram o caixão.” A dor das perdas faz as pontadas nas costas parecerem fichinha.
Caminhos sinuosos
O cargueiro da Vale chega a medir três quilômetros, fica parado por horas sobre a estrada e não avisa antes de dar a partida. Os assentados que querem ir à cidade não sabem quando o trem parte e se arriscam por entre os vagões, torcendo para que a locomotiva não se mova de repente.
Pela ferrovia que matou os familiares de Geny, os minérios da Serra de Carajás (PA) são levados até o terminal portuário de exportação de Ponta da Madeira, em São Luís (MA). O principal destino é a China.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) contabiliza 312 acidentes ao longo da EFC entre 2006 e 2013. No período de 2010 a 2017, 39 pessoas morreram por atropelamentos na linha.
As três mulheres que tomam conta dos 35 alqueires de terras no Palmares II têm uma trajetória de suor e resistência. A família deixou Minas Gerais para trás na década de 80, em busca de oportunidades – por ironia, a Vale pretende repetir esse mesmo trajeto para expandir seus negócios.
O trem que atravessa o Palmares II é mais um símbolo do modelo exportador de commodities dominante no Brasil. Além da ferrovia, são 786 barragens de rejeitos espalhadas pelo país, a maioria administrada pela Vale. O Pará é o segundo no ranking nacional de barragens de mineração, atrás apenas de Minas Gerais, mas caminha para ser o primeiro da lista.
As maiores barragens de rejeitos do estado encontram-se em Carajás, Trombetas, Juruti, Paragominas e Barcarena. Neste último município, houve um vazamento de bauxita da empresa mineradora Hydro Alunorte em fevereiro de 2018, contaminando o rio Murucupí e a bacia do rio Pará.
Indígenas na linha de frente
O rio Parauapebas se encontra com o Itacaiúnas e desemboca no Tocantins, o segundo maior curso d’água brasileiro. Em sua margem direita, entre os afluentes Flecheira e Jacundá, vivem os Parkatêjê, o povo da jusante do rio, e comunidades menores Jê, na Reserva Indígena Mãe Maria – um respiro verdejante na região devastada pelas madeireiras e mineradoras.
Desde a década de 70, a Vale está em conflito com os povos Timbira, que ocupam uma área de 62 mil hectares na região. Alvo de projetos de integração do governo militar, a reserva é cortada pela EFC, pela rodovia BR-222 e pela linha de transmissão de energia de Tucuruí, da Eletronorte.
Temidos por sua valentia, os povos Jê foram apelidados pelos moradores da cidade de Gavião durante a década de 50. Os Parkatêjê lutaram para conquistar autonomia econômica após dez anos de trabalho forçado na coleta de castanha para o regime militar. Hoje, ambos travam um embate contra a duplicação da estrada de ferro, no único trecho em que a obra não foi realizada por falta de licenciamento.
O empreendimento interfere diretamente no território e no estilo de vida desses povos. Duplicar, para eles, significa mais barulho, mais atropelamentos e mais danos ambientais.
Trem da Vale transporta minérios até o Maranhão (Foto: Laís Souza / Arquivo Joana Zanotto)
Entre os rios Xingu e Cateté, os Xikrin também estão cercados por projetos mineradores da Vale. A antropóloga Lux Vidal, professora emérita da USP e pioneira nos estudos sobre os Xikrin, declarou em entrevista à Agência Pública que “não se paga com milhões a morte de um rio”.
O engenheiro químico Reginaldo Sabóia de Paiva encontrou, no Cateté, os metais pesados ferro, cobre, cromo, níquel, manganês e chumbo em níveis acima do máximo preconizado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente. O médico João Paulo Botelho Vieira Filho, responsável pela assistência à saúde dos Xikrin, identificou resquícios desses metais na farinha de mandioca consumida pelos indígenas. A poluição persistente do rio Cateté é decorrente da Usina Onça-Puma de Níquel, da Vale.
Questionada sobre os conflitos com povos originários em suas áreas de influência, a assessoria de comunicação da mineradora informa que “a empresa mantém equipe técnica e multidisciplinar exclusiva dedicada ao relacionamento permanente, qualificado, respeitoso e de longo prazo”. A nota enviada à reportagem acrescenta que as aldeias indígenas não integram área de autossalvamento diretamente afetadas em caso de emergência com as barragens.
Agronegócio e mineração em sinergia
Nessa Amazônia descampada, onde os latifúndios desérticos e as áreas de extrativismo descobrem os antigos berços de mata, a mineração e o agronegócio avançam a exemplo do trem, abrindo caminhos no Sudeste paraense a despeito de tudo que há pela frente.
“Criam-se sinergias entre essas atividades [agronegócio e mineração], que beneficiam a concentração de terras”, argumenta o professor Fernando Michelotti, especialista em Desenvolvimento Rural na perspectiva camponesa.
“O que para uma comunidade indígena é um azar, estar em área de mineração, para grandes fazendeiros é sorte pois podem negociar com a empresa as terras por um alto valor”, compara Michelotti, doutorando em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Sobre a conjuntura desfavorável, do governo Bolsonaro (PSL), o pesquisador analisa que “nessa lógica de expansão do agronegócio e flexibilização das leis ambientais, tudo converge para os interesses das grandes empresas. Os atores, na mesma esteira, se aliciam uns aos outros, mesmo que de forma ‘invisível’”.
O Pará lidera o ranking de desmatamento na Amazônia Legal. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mensurou um desmatamento de 2.433 km² em 2017 e 2.840 km² em 2018.
O engenheiro ambiental Ariel Medrado Barros, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), compara o Sudeste do Pará à Faixa de Gaza, tamanhos os conflitos e níveis de violência. “As barragens de rejeitos não têm previsão de serem retiradas e do que se fazer com ela. Tem várias barragens desativadas que ficam lá, gerando um grande problema ambiental. Na hora que se desativa, as barragens ficam mais perigosas por não serem fiscalizadas”, adverte.
No Pará, nenhuma barragem da Vale foi construída com base na metodologia à montante, empregada na barragem da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho. Na metodologia à montante, o corpo da barragem é construído com o próprio rejeito, por meio de alteamentos sucessivos, o que aumenta o risco de vazamentos. No estado do Norte, o maciço foi construído sobre rochas compactadas.
Projeções de um pesadelo
Se houvesse rompimento na barragem do Sossego, o território onde vive a família de Geny – do início da reportagem –, seria um dos primeiros locais atingidos. As 517 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Palmares II em 1996 não param de se multiplicar. Estima-se que ao menos cinco mil pessoas morem no assentamento, que dispõe de uma praça com quadra para esportes ao centro, três unidades escolares e posto de saúde.
O assentado Francisco de Assis acompanha os fluxos migratórios desde o início do processo de regularização daquela área. Ele se mudou para a região em 1987 com os pais e nove irmãos, atraídos pela mineração em Serra Pelada. No Maranhão, a família trabalhava para um latifundiário, pagando 50% da produção “mais o capim”. Com o declínio do ouro, voltaram ao trabalho pesado para fazendeiros da região, até a conquista do assentamento próximo a Parauapebas.
O município abriga a Serra do Carajás, maior reserva mineral da Vale no mundo. Saem das minas dos Carajás cerca de 35% do minério de ferro produzido pela companhia anualmente. No entanto, Parauapebas tem apenas 12% do sistema de esgotamento sanitário com coleta e tratamento, de acordo com o relatório de 2017 produzido pelo Atlas do Esgoto da Agência Nacional das Águas.
Na Escola de Educação Infantil Maria Salete Ribeiro Moreno, em Palmares II, 158 estudantes moram no assentamento e 83 são de comunidades vicinais. A diretora da unidade, Deusamar Sales Matos – apelidada de “Deusa” – diz que as políticas públicas do município não viabilizam educação de qualidade para todos: “Tem escolas superlotadas em Parauapebas”, lamenta, ao citar a riqueza do solo do município.
Diretora da escola Maria Salete Ribeiro Moreno diz que a riqueza de Parauapebas não é revertida em bem-estar para a população (Foto: Joana Zanotto)
Deusa orgulha-se de seus diplomas e da história que constrói todos os dias. A família também chegou do Maranhão guiada pelo brilho do ouro. Antes, ela e o irmão trabalhavam na área de construção civil. Organizada no MST, ela estudou o magistério no Rio Grande do Sul e, desde então, dedica-se à educação.
“A Vale disputa ideologia. Mexe com a formação da juventude, a partir do ponto de vista da destruição da população mais pobre”, avalia a educadora. “Nós estamos em uma comunidade organizada pelo movimento, em que tudo que nós temos foi conquistado com coletividade, solidariedade e luta. O projeto de educação deles, por meio da Fundação Vale, é quantitativo. Os valores deles são produtividade, consumismo”.
Trabalhadores da Vale em Minas Gerais informaram em off que já foram avisados de que a empresa pretende migrar de vez para o Pará – além de ampliar seus empreendimentos em Moçambique, na África. A mineradora não confirma a informação.
Por: Joana Zanotto
Fonte: Brasil de Fato
Edição: Daniel Giovanaz

https://amazonia.org.br/2019/02/vidas-atravessadas-como-a-vale-afeta-o-cotidiano-de-indigenas-e-sem-terra-no-para/?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Not%26iacute%3Bcias+da+Amaz%26ocirc%3Bnia+-+25+de+fevereiro+de+2019

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Governo prepara pacote de obras para Amazônia

Projetos incluem ponte sobre o Rio Amazonas, hidrelétrica e extensão da BR-163 até o Suriname; militares querem marcar posição

Vicinal – estrada de acesso – da BR-163, em Novo Mundo, norte do Mato Grosso. A ocupação das terras às margens da rodovia ocorre, desde a abertura da estrada na década de 1970, sem controle das autoridades. Hélvio Romero / Estadão
O governo vai começar o seu plano de desenvolvimento pela região amazônica e enviará três ministros ao oeste do Pará para avaliar investimentos de infraestrutura e definir grandes obras na região. A escolha não é casual. O avanço nessas áreas isoladas da floresta e na fronteira atende também a um compromisso de campanha do presidente Jair Bolsonaro de aumentar a presença do Estado no chamado Triplo A. Trata-se de uma área que se estende dos Andes ao Atlântico, onde organismos internacionais supostamente pretendem criar uma faixa independente para preservação ambiental.
A região é estratégica para os militares, que querem marcar posição contra o que chamam de “pressões globalistas”. Como parte dessa estratégia, os ministros Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) desembarcam nesta quarta-feira, 13, em Tiriós (PA) para discutir com líderes locais a construção de uma ponte sobre o Rio Amazonas na cidade de Óbidos, uma hidrelétrica em Oriximiná e a extensão da BR-163 até a fronteira do Suriname.
A hidrelétrica teria, na avaliação do governo, o propósito de abastecer a Zona Franca de Manaus e região, reduzindo apagões. A ampliação da BR-163 – construída nos anos 1970, ainda inacabada e notícia por causa de seus atoleiros – cumpriria uma meta de integração da Região Norte. Já a ponte ligaria as duas margens do Amazonas por via terrestre, ainda feita por travessia de barcos e balsas. O projeto serviria como mais um caminho para o escoamento da produção de grãos do Centro-Oeste.
Bebianno comparou as iniciativas à retomada do Calha Norte, projeto do governo José Sarney para fixação da presença militar na Amazônia. “A retomada do Calha Norte é fundamental para o Brasil como um todo. Estamos fazendo um mapeamento da região e vamos lá olhar pessoalmente”, afirmou o ministro ao Estado.
O movimento coincide com ação do governo para combater a influência do chamado “clero progressista” da Igreja Católica naregião. O pano de fundo é a realização do Sínodo sobre Amazônia, que será organizado em outubro, em Roma, pelo Vaticano. Entre os temas que serão discutidos estão a situação dos povos indígenas e de quilombolas e os investimentos na região – considerados “agendas de esquerda” pelo Planalto.
A última série de grandes investimentos na Amazônia ocorreu ainda no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o início das obras das hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará. Nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, os canteiros foram abandonados ou perderam o ritmo.
O Planalto justifica a escolha dos projetos com o argumento de que a população dos municípios da margem norte do Amazonas está abandonada e seu objetivo é implementar um plano de ocupação para estimular o mercado regional e definir um “marco” da política do governo de incentivo econômico.
Resistências
Um auxiliar de Bolsonaro afirmou que a presença dos ministros do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos na comitiva tem por objetivo reduzir eventuais ataques de ativistas e ambientalistas. A área delimitada para o início do plano estratégico é formada por reservas ambientais e territórios de comunidades isoladas, como a dos índios zoés, na região de Santarém.
Para tentar quebrar resistências, o governo vai incluir termos de responsabilidade socioambiental em todas as obras e firmar compromisso de diálogo com as comunidades locais. A equipe do presidente já antevê, no entanto, reações especialmente de países da União Europeia, que têm ligações com as entidades mais influentes da área de defesa da preservação da floresta.
Militares com cargo no governo recusam a comparação com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado por Lula com obras em todo o País, especialmente no Norte e no Nordeste. Ainda está prevista a retomada do projeto de revitalização dos afluentes do Rio São Francisco.
A viabilidade dos projetos de infraestrutura na Amazônia desenhados pelo Planalto esbarra numa série de dificuldades. As tentativas de se instalar uma usina no Rio Trombetas já fracassaram em outros governos por obstáculos socioambientais. O mesmo problema já comprometeu a continuidade da BR-163. A região é de mata densa, sem estradas. Seria necessário abrir uma rodovia na floresta, região marcada por áreas protegidas.
Por: Tânia Monteiro e André Borges
Fonte: Terra
https://amazonia.org.br/2019/02/governo-prepara-pacote-de-obras-para-amazonia/?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Not%26iacute%3Bcias+da+Amaz%26ocirc%3Bnia+-+14+de+fevereiro+de+2019

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

'Amazônia é totalmente estratégica para nossa sobrevivência enquanto espécie'.



Desenvolvimento regional para Amazônia, e tal como praticado na região nos últimos 60 anos, é definitivamente sinônimo de integração nacional - Marcela Vecchione



Por: Vitor Necchi e Patricia Fachin | 13 Fevereiro 2019
Nos últimos 60 anos, as propostas de desenvolvimento para a Amazônia e os povos tradicionaisque habitam a região, como indígenas, quilombolas e amazônidas, visam “integrar a região - e as várias ‘regiões’ dentro da Amazônia - ao país”, diz a pesquisadora Marcela Vecchione à IHU On-Line. No entanto, lamenta, “dificilmente há um debate sobre desenvolvimento de dentro da região para fora, com contribuições endógenas para o desenvolvimento nacional”. O desenvolvimento regional entendido como integração, argumenta, “produz mais periferização”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Marcela destaca que hoje a Amazônia enfrenta dois problemas que estão correlacionados: no nível macro, informa, o desmatamento e a degradação dos ecossistemas têm impactado a diminuição da cobertura florestal, enquanto no nível micro o desmatamento tem como consequência a perda de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. “Desde 2009, em pesquisa contínua, tenho percebido que a violação de direitos humanos caminha de mãos dadas com o desmatamento e a degradação ambiental na Amazônia. Os motivos são óbvios. De maneira mais direta, o desmatamento vem acompanhado de um processo violento, que não é apenas cartorial, de grilagem de terras. Perceba que nos locais de maior foco de desmatamento na Amazônia, é justamente onde ocorre o maior número de assassinatos no campo. De forma igualmente perceptível, mas com efeitos mais no médio e longo prazo, o desmatamento e a degradação, em conjunto com a apropriação indevida de terras, que passou por um movimento acelerado de consolidação pelo Programa Terra Legal, leva à despossessão dos povos, que não têm mais a base material necessária para a reprodução de seus modos de vida”, informa.
Nesse cenário, adverte, as tentativas de resolver os conflitos na região não podem ser unicamente militares. “A alternativa para isso não pode ser a militarização, seja de ordem conservacionista, com a criação de áreas ambientais de proteção integral, ou intervencionista, no sentido de dispor de efetivos militares ou de milícias dentro dos territórios, independentemente de os mesmos territórios serem regularizados ou não, tal como versa boa parte dos sistemas e planos que Bolsonaro pretende revitalizar, como o Plano Nacional de Desenvolvimento de Fronteirasou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras - Sisfron e, mais especificamente, com a regulamentação da Lei da Grilagem (Nova Lei de Regularização Fundiária, a 13.465)”, pontua.
Marcela Vecchione também comenta as especulações em torno da possibilidade de o Brasil abandonar o Acordo de Paris a partir do governo Bolsonaro. “Nas negociações internacionais de clima e biodiversidade, perpetradas desde então, o Brasil sempre foi referência em suas experiências desenvolvidas a partir dessa concertação, que foi global. Cabe dizer que os movimentos socioambientalistas do Brasil tiveram importante contribuição nesse processo, que fortaleceu a ideia de multilateralismo com a participação de atores estatais e não estatais no processo, incluindo os povos e comunidades tradicionais. Agora, imagine se toda essa história e as práticas dela resultantes acabam com um simples decreto presidencial, que pode fundir o Ministério do Meio Ambiente com o seu antagonista, dadas as configurações políticas atuais, o Ministério da Agricultura? Ou um decreto que pode nos retirar do Acordo de Paris?”
Marcela Vecchione (Foto: Gabriela Garrido - PUC-SP)
Marcela Vecchione é doutora em Ciência Política/Relações Internacionais pela McMaster University, Ontário, Canadá, e mestra em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atualmente leciona no Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido - PPDSTU no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – Naea.A entrevista foi publicada, originalmente, aqui em Notícias do Dia, 05-12-2018.

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como a Amazônia e os povos tradicionais são tratados pelos políticos?
Marcela Vecchione - As exceções são muito poucas para um fator geral que vemos se repetir em vários temas específicos de planos de governos, ainda que sob discursos distintos: o fato de que pensar um tipo desenvolvimento para a Amazônia e suas gentes, sendo povos indígenas, povos tradicionais, quilombolas e todos os outros amazônidas, envolve integrar a região - e as várias “regiões” dentro da Amazônia - ao país. Desenvolvimento regional para Amazônia, e tal como praticado na região nos últimos 60 anos, é definitivamente sinônimo de integração nacional, com esse movimento convergindo para um só centro que é o governo federal e seus fluxos prioritários no e para o Centro-Sul do Brasil, e a partir do que se coloca no Centro-Sul para o mundo. Ou seja, o desenvolvimento regional infelizmente entendido como integração produz mais periferização. Seja na sua versão para dentro - para o crescimento total do país e com suposta diminuição do que se vê como desigualdade e atraso na Amazônia -, seja na sua versão para fora - com o crescimento que se complementaria e se tornaria ainda maior a partir de uma integração regional, com o Brasil como liderança, e para a qual a Amazônia é peça geopolítica fundamental, como foi o caso da IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana).
De ambos os pontos de partida (ou de chegada), se olharmos para as metas a se alcançar, a Amazônia e seu povo são espaço e sujeito, respectivamente, com muito pouca agência; como se fossem parte do Brasil para que o Brasil pudesse ser Brasil de verdade e grande. Só que isso ocorre sem consulta e sem consentimento dos diversos povos e populações dessa parte do Brasil, inclusive de suas cidades. A contribuição da relação do povo amazônida para construir a Amazônia e fazer o Brasil do jeito que é (sociobiodiverso e urbanodiverso), portanto, tem pouco ou nenhum reconhecimento.

Debate eleitoral sobre a Amazônia

Nas eleições deste ano, apenas nos programas de governo do PSOL e do PT/PCdoB foram dedicados itens específicos para a região. No primeiro caso, de maneira muito mais detalhada, a Amazônia é colocada como um dos lugares do país onde existem variados povos e comunidades tradicionais, e povos indígenas, apontando que o reconhecimento e a demarcação de suas terras seria fundamental para garantir os direitos desses povos que tanto contribuem para a conservação da natureza e para a produção e existência da biodiversidade, desde a reprodução de seus modos de vida. Por trazer na chapa uma mulher amazônida e indígena, a campanha do PSOL foi um marco histórico para o processo eleitoral na região. Não importa que não foram para o segundo turno. Sonia e Boulos pautaram um debate que se tornou de grande importância no segundo turno e, ousaria dizer, daqui para a frente, de forma mais disseminada. Questionaram o modelo de desenvolvimento vigente e suas consequências diretas para os povos e comunidades que vivem suas vidas de forma distinta das vidas em grandes cidades do Sule do Sudeste.
Essas formas distintas de viver resistem na sua permanência, mesmo depois de terem sido esmagadas com a colonização antiga, ou a mais recente, na forma dos megaprojetos infraestruturais e agrícolas. Ainda assim, esses povos continuam contribuindo para que a vida possa continuar a existir nas cidades com água boa e de qualidade. Isso ocorre de forma difusa ainda que não optem, em muitos casos, por viverem nas cidades, mostrando opções de crescer diferente, de outras economias, questionando profundamente as desigualdades, seja por serem sem teto na cidade, ou sem terra no campo. No final das contas, estavam falando de espaços de vida, que no ambiente rural ou urbano demandam terra.
Esse debate puxou a corda dos debates do segundo turno de uma maneira que nunca pensei que veria Haddad, por exemplo, fazendo: falando de aumento de imposto rural progressivo de acordo com o tamanho da propriedade, assumindo o compromisso com a diminuição do uso dos agrotóxicos e a transição agroecológica, e reconhecendo o papel central da demarcação das terras indígenas e dos povos tradicionais, bem como da proteção ampla de seus direitos, como fundamental à manutenção do equilíbrio ambiental, climático e da agenda de direitos humanos. Não tenho dúvida que foi a inflexão da chapa Boulos-Sonia que levou a isso.
A figura de Sonia nos mostrou a resistência e a persistência pela permanência do seu ser mulher indígena quando voltava para dialogar e plantar ainda mais política na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que queima pela voracidade do agronegócio no entorno. Penso mesmo que a chapa foi um evento político, e que representou o conjunto da defesa da diversidade e da necessidade de terras e espaços de viver para que os territórios dessa diferença pudessem continuar a prosperar e a se reproduzir; foi a chapa da resistência, no campo e na cidade. Foi a chapa de pensar a política para além das eleições, pelas eleições, puxando o discurso eleitoral da esquerda para a autocrítica, e ainda mais à esquerda. Sendo assim, o reconhecimento da diversidade produtiva da Amazônia e de seus povos foi intrinsecamente ligado à defesa no programa de governo Boulos-Sonia de políticas de reconhecimento de direitos territoriais, sem os quais essa produção não poderia acontecer, e isso levou à inflexão no programa de Haddad também.
Não importa que não representaram 1% dos votos. O importante foi que representaram e, sobretudo, apresentaram uma proposta de governo, de políticas para o público em sua diversidade em escala nacional, a partir de temas que nunca haviam despontado em debates eleitorais. Isso é um ganho democrático inestimável, especialmente nesse momento do desespero de fazer escolhas e do medo de que as partes que nunca, ou poucas vezes foram parte, para lembrar Jacques Rancière, estão tendo suas existências oficialmente e institucionalmente ameaçadas por lideranças de governo e de Estado. Neste sentido, o procedimento eleitoral da campanha nos lembrou que a democracia é muito mais que apenas procedimento político, podendo representar escolhas de como nos organizaremos coletivamente nas eleições para existirmos coletivamente e politicamente para além delas.
No segundo turno, esse movimento de pensar a política cotidianamente e baixar a escala da representação no tratar com o grande público em suas diversidades ficou ainda mais claro. Algumas variações na proposta de programa de governo PT/PCdoB demonstraram isso. A Amazônia, assim como os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, apareceram como itens específicos no programa, com particularidades, chamando atenção para as vocações produtivas em diversas áreas da região a depender de suas particularidades. Além disso, ainda que o programa também tenha mudado de forma a fazer algumas concessões ao grande capital, não se furtou nesse segundo momento a destacar o potencial de produção da agricultura familiar em torno das estradas da região, precisando este grupo, assim, de vias de integração para escoar suas produções. Ou seja, outro tipo de integração está sendo vislumbrado programaticamente, o que dá mais base para o movimento social e os povos e comunidades fazerem suas reivindicações e disputas a posteriori, ainda que o candidato que as tenha proposto não tenha vencido o pleito.
Até o cacau da Transamazônica, plantado em sistemas agroflorestais, foi lembrado no último debate eleitoral do primeiro turno ao relacionar incentivo à produção e à redução do desmatamento na região amazônica. Algo um tanto quanto inesperado para partidos políticos que outrora defenderam a construção da hidrelétrica de Belo Monte na mesma área. O fato é que a região apareceu de forma específica no programa, ainda que dentro da vocação produtiva e expansionista. Isso é um ganho quando esses assuntos tinham visibilidade zero ou tinham visibilidade quando algo de muito impacto se interpunha a seus povos.
IHU On-Line - Como vê a participação de indígenas na política brasileira?
Marcela Vecchione - Novamente, coloco o fato na análise do discurso político e das disputas em todo o processo eleitoral, e para além dele. Talvez, se Sonia Guajajara e sua ampla rede de apoio vinda de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais não tivessem aparecido como atores emergentes e fundamentais neste processo eleitoral, as declarações absurdas de Bolsonaro, de que  quilombolas não servem para nada e que não demarcaria nem um centímetro de Terra Indígena, não teriam ganho tanta notoriedade, provocando contestação.
Cabe notar que esta onda de ocupação na política pelos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais já vem ocorrendo desde 2013, com a ocupação do Congresso no Abril Indígena, e foi ganhando força nos últimos anos com a culminância do maior número de candidaturas vindas destes segmentos desde a redemocratização, sendo a região Norte a de maior incidência destas candidaturas. Estamos falando aqui de um processo de democracia radical e profunda que absolutamente apavora políticos de tendências fascistas como Bolsonaro; obviamente, pois os mesmos não poderiam sobreviver em uma democracia mais plural e mais democratizada, por assim dizer.
IHU On-Line – Como avalia o discurso de Bolsonaro sobre a Amazônia?
Marcela Vecchione - Há problemas no estado de coisas da Amazônia antes de ele ser eleito. De fato, há muitos problemas. Mas, tornar os problemas de desenvolvimento na Amazônia em problemas unicamente de segurança, ou mais especificamente, em problemas de militarização, é assumir que a Amazônia é uma floresta sem gente, sem cultura e sem política, espaço vazio a ser coordenado por forças de inteligência militares para garantir a tranquila destinação de suas terras aos setores do agro-hidro-minério negócio. Em última instância, está se dizendo que o povo amazônida não tem capacidade de se governar e decidir seus futuros possíveis, de acordo com seus modos de vida, seja em uma colocação seringueira, em um sistema agroflorestal, em uma aldeia, ou em uma grande cidade, como Manaus ou Belém. A Amazônia não é só floresta, ou só fronteira, da mesma forma que a floresta e as fronteiras que existem, por vezes dentro das cidades, têm suas particularidades a respeito de como querem ser urbanizadas, de fato já o sendo.
A alternativa para isso não pode ser a militarização, seja de ordem conservacionista, com a criação de áreas ambientais de proteção integral, ou intervencionista, no sentido de dispor de efetivos militares ou de milícias dentro dos territórios, independentemente de os mesmos territórios serem regularizados ou não, tal como versa boa parte dos sistemas e planos que Bolsonaro pretende revitalizar, como o Plano Nacional de Desenvolvimento de Fronteiras ou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras - Sisfron e, mais especificamente, com a regulamentação da Lei da Grilagem (Nova Lei de Regularização Fundiária, a 13.465). Não se pode dizer que isso é uma questão de ideologia, também. Estamos tratando aqui de direitos à terra e ao território que garantem à Amazônia ser patrimônio de todos e todas, que foram adquiridos por meio de muita batalha, nacionalmente e internacionalmente, sem militarização, muito pelo contrário. A proposta dos direitos territoriais e coletivos veio em resposta ao simplismo da militarização, da vigilância e da concentração de terras nas mãos de muito poucos ou sob o domínio exclusivo do Estado, como ocorria, enquanto política pública de segurança nacional na Amazônia, ou na Politica de Integração Nacional - PIN, no período ditatorial.
A ideia de usufruto sobre os territórios da União para os povos é justamente o reconhecimento de sua melhor capacidade de gestão e manutenção desses territórios alicerçada em direitos a esse mesmo usufruto. É muito angustiante ver que os candidatos que defendem a região, colocando esses direitos no centro do debate, tenham sido taxados de comunistas por uma parte importante da população brasileira que não vive e não conhece a realidade amazônica. Isso só contribui para as pessoas com menos informação pensarem que direitos territoriais e conservação de territórios pelos povos, em respeito aos seus modos de vida, é privilégio. Tirar direitos de um grupo abre precedentes para que direitos possam ser tirados de qualquer um, a despeito de sua garantia prévia. O que todos precisamos prestar atenção é que a criação de precedentes para a exceção independe da região em que se vive ou a que grupo se pertence; trata-se de tornar o estado de exceção presente, em um ato específico, em regra.
Vimos isso ocorrer na Alemanha, com o nazismo, no Peru, com o fujimorismo, especialmente no que tocou aos povos da Amazônia do lado de lá na fronteira. Quando se ancora isso em objetivos supostamente de base econômica que beneficiariam a nação, a violência da exceção pode se tornar a regra, pois anuncia-se que o bem de todos, nestas condições, se torna mais importante que a sobrevivência de poucos. Sendo assim, o que está em jogo é justamente a permanência da exceção como regra e a despossessão de direitos como prática. Mas vamos lembrar que, independente da contabilidade, o que vale é a humanidade, e só na Amazônia brasileira somos aproximadamente 30 milhões de pessoas, e mais de 150 povos distintos. É muita diversidade e muita gente em xeque por uma ideia que não confere de nação. Lembremos também que nós, na Amazônia, fazemos parte da nação, e não de uma ideia que pretende nos objetificar, tirando de nós o caráter de sujeitos de direitos, coletiva ou individualmente.
IHU On-Line - Qual a importância estratégica da maior floresta tropical do mundo?
Marcela Vecchione - É totalmente estratégica para nossa sobrevivência enquanto espécie. Para além da lógica centrada no carbono, pela qual desde o primeiro relatório do IPCC a floresta amazônica aparece como o maior estoque de gás no mundo, podendo a sua conversão e modificação influenciar diretamente na quantidade de CO2 jogada na atmosfera e no próprio ciclo do carbono no mundo, a floresta amazônica é fonte de resistência e inovação. Há muitos outros pesquisadores mais bem qualificados em suas áreas para falar sobre isso, como os arqueólogos e os ecólogos, mas o que posso dizer é que é preciso resistência, não somente resiliência, para sobreviver na floresta.
A resistência que as espécies, incluindo aí nós, os homo sapiens, manifestados na forma de diferentes modos de vida dos povos da floresta, praticam para existir na floresta é fonte infinita de tecnologia socioambiental, de adaptação climática, de sociobiodiversidade. Resistência que se dá à forma colônia, à forma Estado, que se combina aos processos naturais ferozes que na floresta se desenvolvem. Essa resistência não naturaliza a natureza e traz à tona a ligação profunda entre as visões de mundo em constante processo de transformação na criação contínua - e plantada - do que é a floresta. Ou seja, natureza e o homo sapiens, natureza e povos, não se separam. Isso é uma contribuição estratégica em termos de base de pensamento, e de ação política, se quisermos sobreviver neste mundo.
Em termos políticos e históricos - ainda que provavelmente a cosmopolítica e suas cosmologias de referência não devam ter sido a base para a tomada desta decisão -, foi a partir do entendimento da contribuição da floresta amazônica para o desenvolvimento sustentável em nível global que foi criado o primeiro Programa Piloto de Proteção de Florestas Tropicais, o PPG7, no marco da Conferência da Terra (Convenção da ONU sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento), a Rio Eco 92. Naquele momento, entendeu-se que, com estratégias coordenadas de cooperação internacional, auxiliando a criação das estruturas institucionais para a instalação e o funcionamento do Ministério do Meio Ambiente no Brasil, até então inexistente, em consonância com a criação de programas específicos para a demarcação de Terras Indígenas e de Unidades de Conservação, seria possível gerar lições importantes para a governança ambiental global.
Nas negociações internacionais de clima e biodiversidade, perpetradas desde então, o Brasilsempre foi referência em suas experiências desenvolvidas a partir dessa concertação, que foi global. Cabe dizer que os movimentos socioambientalistas do Brasil tiveram importante contribuição nesse processo, que fortaleceu a ideia de multilateralismo com a participação de atores estatais e não estatais no processo, incluindo os povos e comunidades tradicionais. Agora, imagine se toda essa história e as práticas dela resultantes acabam com um simples decreto presidencial, que pode fundir o Ministério do Meio Ambiente com o seu antagonista, dadas as configurações políticas atuais, o Ministério da Agricultura? Ou um decreto que pode nos retirar do Acordo de Paris?
Mapa da Amazônia Brasileira (Foto: IPAM Amazônia)
IHU On-Line - Pela importância da Amazônia, por que ela não é mais valorizada no debate político? 

Marcela Vecchione - Diria que é valorizada tanto quanto pode ser um fator de mais integração e de garantia de posições de liderança para o país, seja na agenda de infraestrutura e comércio intra e inter-regional, seja no debate ambiental. Dificilmente há um debate sobre desenvolvimento de dentro da região para fora, com contribuições endógenas para o desenvolvimento nacional. Mas, de novo, penso que a chapa Boulos-Sonia trouxe uma inflexão para este debate, como também trouxe o engajamento dos povos da região no processo eleitoral, conectando isso às suas necessidades e à sua sobrevivência. Acho que principalmente Sonia foi capaz de comunicar o que são estas riquezas e suas particularidades para uma parte do país, pelo menos, que se interessou em ouvir e saber mais sobre isso. Foi bastante pedagógico, neste sentido.

IHU On-Line - Os brasileiros, no geral, estão atentos e preocupados com a situação da floresta? A sociedade não deveria estar mais mobilizada e pressionando para a preservação do bioma e de seus povos?
Marcela Vecchione - Sinto essa preocupação aumentando. Não penso que temos um conjunto de sociedade homogêneo no grupo atual do que se chama sociedade brasileira. Temos uma sociedade partida e várias sociedades ou ideias de viver em grupo que nunca foram contempladas por esta sociedade mais envolvente. Para além da ideia da polarização que hoje domina como nossa sociedade estaria constituída, eu acrescentaria que acima disso nós somos muito diferentes mesmo, mas acho que essa não é a principal reflexão agora. A reflexão é como pensar e fazer para que aqueles que sejam conscientes dessa diferença e estejam dispostos a comunicá-la possam ter espaço para fazer isso com segurança, garantia de recursos e de maneira ampla, pública e irrestrita. Quando falo isso, estou me referindo diretamente à educação.
No segundo turno das eleições, vimos um lado defendendo veementemente o fim da liberdade de formularmos e circularmos conteúdos, de termos incentivo e investimento público para continuarmos estudando e pesquisando, e tudo isso influencia diretamente na queda da produção e divulgação científica de informações sobre a região. A educação e a divulgação científica têm um papel primordial no preenchimento da lacuna de (des)conhecimento sobre a Amazônia e seus povos. Se temos um governo que defende a educação a distância, em vez de investimento e construção de mais polos educacionais, com produção de material diferenciado e formação de professores com conteúdo crítico, dificilmente esta sociedade envolvente, que não dialoga com os povos amazônicos, poderá conhecer mais sobre a realidade amazônica e, consequentemente, respeitá-la e reconhecê-la.
IHU On-Line - Nos últimos anos, qual o principal problema que atinge o bioma e em que dimensão?
Marcela Vecchione - Em termos macro é aquilo que o senso comum debate: o desmatamentoe a degradação da terra e dos ecossistemas com acentuada diminuição da cobertura florestal. Em termos mais específicos, é a perda e ameaça aos direitos territoriais de povos e comunidades frente à reformulação do que significa o direito à terra na Amazônia. Penso que mais enfaticamente e de forma visível a partir do massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, ficou claro que não podemos pensar de forma desvinculada a proteção da natureza, na forma dos direitos ambientais, dos direitos humanos e a garantia do direito à terra na região.
Desde 2009, em pesquisa contínua, tenho percebido que a violação de direitos humanoscaminha de mãos dadas com o desmatamento e a degradação ambiental na Amazônia. Os motivos são óbvios. De maneira mais direta, o desmatamento vem acompanhado de um processo violento, que não é apenas cartorial, de grilagem de terras. Perceba que nos locais de maior foco de desmatamento na Amazônia, é justamente onde ocorre o maior número de assassinatos no campo. De forma igualmente perceptível, mas com efeitos mais no médio e longo prazo, o desmatamento e a degradação, em conjunto com a apropriação indevida de terras, que passou por um movimento acelerado de consolidação pelo Programa Terra Legal, leva à despossessão dos povos, que não têm mais a base material necessária para a reprodução de seus modos de vida. Essa despossessão também gera apropriação indevida de biodiversidade, da feita em que se apropria da riqueza da terra, possível na Amazônia quase sempre em associação com o conhecimento tradicional.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm sugerido que é preciso pensarmos no desenvolvimento da Amazônia em conjunto com o desenvolvimento da chamada Revolução 4.0. O que seria um desenvolvimento adequado da região, na sua avaliação?
Marcela Vecchione - Para nós, pesquisadores engajados na e com a região, essa é a pergunta-chave, mas ao mesmo tempo muito difícil de responder definitivamente. Não acho que somente entrar e adentrar na Amazônia a partir da Revolução 4.0, que é justamente a revolução da biodiversidade, mas, contraditoriamente, também da apropriação desta para a biologia sintéticacom base em regimes de propriedade intelectual bastante desiguais, vá resolver os problemas de desenvolvimento por aqui. Como apontei na resposta anterior, nossos problemas podem já ir começando a ser resolvidos com a promoção dos direitos humanos, aliados à garantia dos direitos territoriais, e de políticas públicas construídas em arranjo com os povos da região.
Por exemplo, quando estava sendo negociada a Lei 13.123/2015, que constitui o novo marco legal de acesso e proteção da biodiversidade, os povos da Amazônia, bem como os povos do Cerrado, apontaram os inúmeros problemas relacionados ao bioma. Aqueles que propuseram essa lei disseram que ela seria a via para a entrada do país na Revolução 4.0. Entretanto, aqueles que são os principais produtores do conhecimento que torna possível a biodiversidade teoricamente protegida dessa lei, apontaram a mesma como via de flexibilização para se abrir à apropriação indevida e/ou sem repartição justa de benefícios dos seus conhecimentos tradicionais. Então, essa revolução seria mesmo para quem, da maneira como vem sendo regulada globalmente e nacionalmente? De fato, apostar em um desenvolvimento baseado na biodiversidadeseria estratégico para a Amazônia, mas não sem antes várias questões relativas aos direitos territoriais e à real proteção dos conhecimentos tradicionais serem resolvidas. Do contrário, estaríamos apenas dando novos apostos ao desenvolvimento, sem repensá-lo de fato.


http://www.ihu.unisinos.br/585210-amazonia-e-totalmente-estrategica-para-nossa-sobrevivencia-enquanto-especie-entrevista-especial-com-marcela-vecchione