segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Sobrevivente de trabalho análogo à escravidão em vinícolas vira fiscal e ajuda outras vítimas

 TRABALHO ESCRAVIDÃO

 

 
Era janeiro de 2023 quando Luís Henrique Góes e outros trabalhadores embarcaram em uma viagem de 41 horas até Bento Gonçalves, na serra do Rio Grande do Sul, para trabalhar na safra da uva.

O grupo fora contratado contratado por uma empresa que terceirizava mão de obra para fazendas que abasteciam as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi.

O sonho do baiano, que vivia em Lauro de Freitas, era conseguir dinheiro para abrir o próprio negócio: “Ninguém vai para o outro lado do país, deixa a família, por nada”.

Mas a esperança de uma vida melhor foi tomada pelo medo. Luís e outros 209 trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão e tráfico humano.

“Jornada abusiva, tortura física e psicológica, agressões e má alimentação (…) Os capangas tinham tipo um taco de beisebol, spray de pimenta e aparelhos de choque. Se reclamasse, batiam. A gente era tratado como escravo”, lembra.

Trabalhadores resgatados no RS se alimentavam de marmitas estragadas e descansavam em um alojamento precário — Foto: Arquivo Pessoal

Um ano e meio depois do resgate, Luís se tornou agente fiscal de direitos humanos no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP). O trabalho dele é apoiar outras pessoas que também foram vítimas desses crimes.

Fazer visitas, oferecer amparo jurídico e psicológico são algumas das tarefas do sobrevivente.

“Esse propósito foi destinado para a minha vida. Então, estou aqui para dar o meu melhor por essa causa”.

Só no ano passado, mais de 3 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão, segundo o Ministério da Justiça. A maioria das vítimas detectadas é do sexo masculino, negra e tem entre 18 e 29 anos.

Normalmente, elas são vulneráveis economicamente e acabam sendo atraídas com oportunidades de emprego oferecidas por envolvidos com o tráfico de pessoas.

Luís é um exemplo. A dificuldade financeira fez com que ele aceitasse trabalhar no Sul do país. O valor mensal recebido seria de R$ 2 mil.

À reportagem, o sobrevivente contou detalhes sobre as situações desumanas que viveu e como ele transformou o trauma em força para amparar outras vítimas.
 
Comida estragada e jornadas de até 15 horas

Assim que desembarcou no alojamento disponibilizado pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde — que oferecia mão de obra terceirizada às vinícolas — o grupo de trabalhadores se deparou com um cenário diferente do que havia sido prometido.

Luís explica que as vagas foram anunciadas em grupos de WhatsApp. O recrutamento, o tempo de jornada e salário também foram combinados através do aplicativo.

Mas, diferente do que foi prometido pelo contratante, os quartos ficavam no subsolo de um prédio. As camas estavam manchadas, havia mofo pelas paredes e os armários estavam estragados, afirma Luís.

“Percebemos a diferença, mas como a gente já estava lá, com os documentos retidos pela Fênix e sem dinheiro para voltar, torcemos para aquele ser o único problema”.


Espaço onde ficavam trabalhadores em Bento Gonçalves — Foto: Polícia Rodoviária Federal/Divulgação

Não foi o que aconteceu. Segundo os trabalhadores, nos primeiros dias de colheita, eles receberam marmitas estragadas e enfrentaram até 14 horas de jornada, com folgas apenas aos sábados – embora fossem forçados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos.

“As marmitas vinham no mesmo ônibus que a gente. Até chegar o horário de almoço, elas já estavam azedas. A gente comia para não passar fome porque era a única comida que tinha no meio da serra”, conta Luís.

A situação piorou nas semanas seguintes. Os uniformes — que eram lavados diariamente — começaram a ser entregues úmidos no dia seguinte.

“Tivemos princípio de pneumonia (…) procuramos o posto de saúde, mas não fomos atendimentos. Trabalhamos doente. É que, se faltasse uma vez, já perdíamos a passagem de volta”. 

Agressões, torturas e ameaças

Os trabalhadores chegaram a se queixar da situação, mas nenhuma mudança foi feita. Pelo contrário, Luís afirma que a jornada aumentou e o grupo passou a ter dívidas ao pedir adiantamentos para comprar remédios e comida.

“Os ônibus começaram a atrasar. Teve noite que voltamos para o alojamento depois da meia-noite”.

Em meio às condições degradantes, conflitos começaram a surgir entre os coletores de uva e funcionários da empresa terceirizada.

Luís lembra que os supervisores andavam armados com tacos de madeira e, durante os desentendimentos, agrediam quem fizesse reclamações.

Os trabalhadores denunciaram a empresa ao Ministério Público, que notificou a Fênix Serviços.

“Depois de receber a notificação, eles pegaram três meninos que fizeram a denúncia e torturaram (…) socos, chutes, choques, spray de pimenta. Eles ficaram com os rostos deformados”.
 
O dia do resgate 
 

Trabalhadores ficaram em ginásio de Bento Gonçalves — Foto: Divulgação/MPT

Durante a sessão de tortura, o trio aproveitou a distração dos supervisores para fugir do alojamento. Eles caminharam até Caxias do Sul, cidade localizada a mais de 40 quilômetros de Bento Gonçalves.

O trio pediu ajuda em uma base da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que acionou o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Federal (PF) para resgatar os demais trabalhadores.

“Pensamos que seriamos executados quando vimos os policiais. Só depois que entendemos que era o resgate. Fomos do inferno ao céu. Nunca vi tantos homens chorando”.

Os 210 trabalhadores receberam acolhimento no ginásio Darcy Pozza, em Bento Gonçalves. E, depois de prestarem depoimento e pegarem os documentos (RG, CPF, Carteira de Trabalho) que estavam retidos com a terceirizada, voltaram para as suas casas.
 
De vítima à linha de frente no combate ao tráfico humano

Após o resgate, os trabalhadores passaram a enfrentar um outro desafio: o trauma.

“Os ferimentos cicatrizaram, mas a tortura psicológica ficou. Tenho amigos com atestado psiquiátrico, que vivem à base de remédios controlados”.

Para ajudar na recuperação das vítimas, Lauro de Freitas — cidade natal de boa parte das vítimas resgatados no Sul — recebeu a instalação de um núcleo do NETP.

Essa é a segunda unidade municipal do programa desenvolvido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em todo o Brasil, existem 18 núcleos.

As funções do órgão são criar ações de prevenção ao tráfico de pessoas, responsabilizar os autores e dar apoio às vítimas, seja por meio da criação de planos de ressocialização ao encaminhamento para novas oportunidades de emprego.

Luís foi convidado para ser um agente fiscal de direitos humanos dentro da unidade. A função dele é fazer visitas, oferecer amparo jurídico e psicológico às vítimas.

“A gente vai até as casas e abrigos para poder acompanhar as vítimas até que elas estejam 100% aptas à retornar a sociedade”, explica Luís, que conta com a ajuda de profissionais capacitados para realizar as visitas.

Luís Henrique Góes se tornou fiscal de direitos humanos no NETP — Foto: Luís Henrique Góes/ Arquivo Pessoal

Indenizações e prisões: em que ‘pé’ está o caso envolvendo vinícolas?

Conforme definido nos Termos de Ajuste de Conduta, assinados em 2023, as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi foram condenadas a pagar R$ 7 milhões por danos morais coletivos. Esse valor será pago em duas parcelas de R$ 2,5 milhões, uma delas neste ano e a outra em 2025.

O Ministério Público do Trabalho informou que os valores pagos serão destinados ao projeto Vida Pós-resgate da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão, à Secretaria de Assistência Social do Município de Bento Gonçalves e para a Fundação Gaúcha do Trabalho e Assistência Social.

O restante do valor, R$ 2 milhões, será dividido entre os 210 trabalhadores.

Já o dono da Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde de serviço, Pedro Augusto de Oliveira Santana, chegou a ser preso, mas foi solto após pagar fiança.

Em entrevista à RBS TV (afiliada Globo), o empresário admitiu que já foi alvo de ações trabalhistase de autuações por irregularidades, mas negou as acusações de trabalho análogo à escravidão.

O inquérito que apura o crime ainda não foi concluído pela Polícia Federal. Enquanto isso, a ação civil coletiva movida pelo MP contra a empresa terceirizada também continua em andamento.
 
Qual a finalidade do tráfico de pessoas?

A lei de 13.3445 entende que o crime de tráfico humano acontece quando há o recrutamento, transporte, alojamento, ameaça, abuso ou coação de qualquer pessoa com o objetivo de: 
  • Submeter ao trabalho em condições análogas à de escravo;
  • Remover órgãos, tecidos ou partes do corpo;
  • Submeter a qualquer tipo de servidão;
  • Adoção ilegal;
  • Exploração sexual.

Um levantamento feito pelo Ministério da Justiça, que reuniu dados de 12 instituições públicas, mostra que a principal finalidade desse crime é a exploração laboral.

A vulnerabilidade socioeconômica aumenta a suscetibilidade de tornar-se uma vítima e a tecnologia — em especial as redes Facebook, Instagram ou Tinder — mudou radicalmente o modus operandi dos criminosos, aponta o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas (2021 -2023).
 
Como identificar oportunidades de trabalho análogas à escravidão?

Vagas com salários incompatíveis ao praticado no mercado e múltiplos benefícios, como moradia gratuita, são propostas que exigem cuidados, afirma a coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrações, Marina Bernardes.

“A intenção é atrair pessoas desesperadas, que precisam de um emprego. Por isso, essas ofertas milagrosas chamam a atenção. Mas, tem acontecido dos criminosos anunciarem vagas mais “pé do chão” para não criar suspeitas”.

Os falsos processos seletivos podem incluir entrevistas e até testes de idioma, o que gera a aparência de legitimidade, alerta o Ministério da Justiça.

Antes de aceitar qualquer proposta, é indispensável obter informações sobre a empresa ofertante. Através do número do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), os interessados podem averiguar se a intuição é ou não fantasma ou se possui pendências judiciais.

Já para ofertas de trabalho do exterior, a coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoa dá cinco dicas: Escolha países que possuam representantes da embaixada brasileira;

  • Tenha domínio do idioma local;
  • Viaje legalmente;
  • Pesquise sobre a reputação da empresa;
  • Compartilhe informações sobre a viagem com pessoas próximas.

“As pessoas acham que o tráfico humano acontece quando alguém vai para outros países, mas, não é. Esse crime também pode acontecer dentro do próprio país”.


 
Com informações do g1.



Matéria Original:
Sobrevivente de trabalho análogo à escravidão em vinícolas vira fiscal e ajuda outras vítimas
 
 

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