Por: Marcio Camilo | Fonte: Amazônia Real 12 de janeiro de 2022
Rita Piripkura é uma das últimas sobreviventes de seu povo. Além dela, só há registro de mais dois Piripkura: seu irmão Baita e o sobrinho Tamandua. Os dois vivem em isolamento voluntário em seu território, localizado no extremo norte de Mato Grosso, na divisa com Amazonas, entre as cidades de Colniza e Rondolândia, “lá na pontinha do mapa” como muitos costumam dizer. Diferentes dos parentes, Rita não é uma indígena isolada há muito tempo. Viúva, ela mora em uma aldeia do povo Karipuna, com seu segundo marido, localizada em Rondônia. Nos últimos tempos, Rita Piripkura tem ganhado visibilidade por ser a única porta-voz de seu povo diante da pressão ameaçadora contra a sobrevivência de seus parentes. A grilagem, o desmatamento e a exploração de madeira ilegal ocorrem dentro do território indígena onde vivem Baita e Tamandua.
Segundo Rita Piripkura, seu irmão e seu sobrinho podem sofrer um ataque a qualquer momento. “De um lado é madeira [extração]. Aí eles correm de lá, mas do outro lado tem o gado e também os grileiros. Estou ficando com muito medo deles serem mortos em conflitos, porque o cerco cada vez mais está se fechando”, contou Rita em entrevista à Amazônia Real, concedida remotamente.
Rita Piripkura é uma personagem emblemática de um povo que foi praticamente dizimado. Nos primeiros minutos da conversa com a reportagem, ela mostra expressão fechada e melancólica. Mas à medida em que vai se sentindo mais segura, se revela uma pessoa simpática e comunicativa. Sua língua materna é a Piripkura, pertencente à família linguística tupi-guarani (tronco tupi). Entende bem o português, mas fala pouco. Por isso a reportagem contou com a ajuda da liderança indígena Adriano Karipuna, que traduziu as respostas de Rita, mais diretas e contundentes.
Do tempo em que morava na aldeia, Rita Piripkura se lembra da convivência com o irmão e o sobrinho. Baita e Tamandua são os dois últimos indígenas Piripkura em condição de isolamento que se tem notícia, desde o fim da década de 1980. Conta que eles sempre tiveram um espírito nômade e gostavam de caminhar durante dias pela floresta, quando regressavam novamente para a aldeia. “Eles nunca pararam direito na comunidade. Ficavam um pouco lá e depois saiam pela floresta. Sempre tiveram essa natureza de ficar vagando, sem um lugar definido, sabe?”
Nas últimas quatro décadas, Rita só se encontrou com Baita e Tamandua durante as expedições da Funai e de outras organizações indigenistas, onde atua como guia. Sente saudades da convivência com os dois na comunidade. Mas ela acredita que as décadas de fuga os deixaram avessos a uma aproximação.
“Eu queria tocar neles, ficar conversando um tempão, mas eles estão muito arredios. Quando a gente se vê eles não deixam chegar perto direito. Ficam mais distantes e a conversa é bem rápida: é um ‘oi’, ‘tudo bem’, e depois eles seguem para dentro da floresta. Eles se abrem até mais com os servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não sei o porquê disso. Porque ficaram tão arredios comigo. Queria entender”, questiona Rita.
A última vez que ela se encontrou com os dois foi em meados do ano passado. Ainda neste mês de janeiro, Rita Piripkura vai participar de uma nova incursão com os agentes da Funai para saber se há vestígios de mais Piripkura. Nessa incursão, ela espera rever os dois novamente para pelo menos dar um “oi” e conselhos sobre os perigos que estão correndo.
SOB RISCO DE ATAQUES
Ultimamente Baita e Tamandua têm entrado nas fazendas para pegar objetos, segundo relatou um fazendeiro a Rita. Ele se queixou da situação dizendo que “estava muito chateado com os dois por conta dos roubos”. Rita explica que para seus parentes isolados isso não é roubo, porque eles entendem que essas coisas (panelas, redes, facões) estão no território deles, e por isso sentem-se no direito de pegar os utensílios para usar durante as caçadas na mata.
“Mas aí eles podem morrer por causa disso. Porque o homem branco não entende assim. Entende que é roubo e eles podem ser assassinados. Eu já falei isso pra eles, mas quero repetir quando a gente se encontrar. Quero falar para eles não mexerem nas coisas alheias. Se ele tiver precisando de alguma coisa, que peçam para gente, para mim, para os servidores da Funai que nós damos um jeito”, afirma.
Relatórios e dossiês de organizações indigenistas denunciam que os posseiros estão cada vez mais perto dos dois principais refúgios de Tamandua e Baita, que são os igarapés Panelas e Duelo.
“Dez quilômetros é praticamente nada para os invasores, que com tratores e outras máquinas podem avançar sobre essa distância, derrubando a floresta, em questões de dias”, alerta Elias Bigio, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan), em entrevista à Amazônia Real. Ele conhece de perto a história dos Piripkura e foi o responsável pela elaboração da primeira portaria de Restrição de Uso na região, publicada pelo governo federal em 2008. Na época Bigio era coordenador-geral de Índios Isolados e Recém-Contato (Cgiirc) da Funai.
Destaca que o território dos Piripkura sempre sofreu pressões de invasores, mas que elas eram controladas pela fiscalização. Porém, desde 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, as fiscalizações diminuíram e o avanço sobre o território dos Piripkura resultou em recordes de desmatamento na Amazônia.
A PRESSÃO DO DESMATAMENTO
O dossiê “Piripkura: Uma Terra Indígena devastada“, do Instituto Socioambiental (ISA), mostra que o desmatamento na área aumentou mais de 27 mil por cento nos últimos dois anos (2020 e 2021), em comparação com os dois anos anteriores. Isso significa 2.361 hectares desmatados.
No total acumulado, até 21 de outubro do ano passado, já são 12.426 hectares devastados na terra indígena, o que equivale a mais de 7 milhões de árvores derrubadas. O levantamento foi feito pelo sistema independente do ISA (Sirad), que conta com a base de dados do sistema de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Toda essa devastação foi constatada a olho nu, a partir de um sobrevôo que o ISA realizou, em 25 de outubro de 2021, para coletar informações para o dossiê e registrar os crimes ambientais que estão sendo denunciados.
Ficou evidente para os indigenistas que as atividades no entorno e dentro da TI estão a pleno vapor, com a boiada no pasto, aberturas de estradas vicinais para retirar madeiras no território, construção de açudes e diversas casas de madeira.
“A movimentação dos caminhões, a ocupação das casas, as boas condições das pastagens e o manejo do rebanho bovino no momento do sobrevoo evidenciam que as fazendas instaladas na TI não estão paralisadas, mas exploram os recursos naturais e exercem atividade econômica e/ou comercial”, aponta o dossiê do ISA.
Elias Bigio ressalta que tais atividades são ilegais, já que elas não poderiam ser ampliadas por conta da portaria de restrição de uso da área, até que se concluam os estudos de demarcação da terra indígena e retirada em definitivo dos posseiros. Esses estudos se iniciaram em meados da década de 1980 e nunca foram concluídos pela Funai.
“O que os proprietários das fazendas conseguiram na Justiça foi a permanência no local, usando a pandemia como argumento. No entanto, a decisão do juiz é clara no sentido de dizer que novos empreendimentos não podem ser abertos na terra indígena, por conta da restrição de uso. No entanto, eles estão restaurando empreendimentos que haviam sido desativados em 2008. Voltou tudo: a extração de madeira, a grilagem”, enfatiza.
O coordenador da Opan se refere a um recurso ingressado pelos fazendeiros que conseguiram, no Supremo Tribunal Federal (STF), reverter em partes a decisão de 16 de julho de 2021, do juiz federal Frederico Pereira Martins que determinou que os invasores da TI Piripkura deveriam sair imediatamente da área, reintegrando assim a posse do território aos donos tradicionais.
Para ficar na TI, os fazendeiros utilizaram uma decisão do STF que impede a desocupação de moradias ou imóveis devido ao estado de calamidade provocado pela pandemia de Covid-19.
Dessa forma, um mês depois da decisão da desintrusão (em 18 de agosto), o juiz federal Frederico teve que voltar atrás, acolhendo parcialmente o apelo dos fazendeiros.
“Sendo assim, a ADPF 709 determinou a desintrusão de invasores, mas dentro de um plano de enfrentamento a ser feito pela União, com ênfase, neste momento ainda de pandemia, na criação de um cordão de isolamento, o que acaba por impedir a retirada de qualquer réu da área objeto do conflito”, destacou o magistrado em sua nova decisão.
Investigações antropológicas apontam que o povo de Rita Piripkura habita a região noroeste de Mato Grosso, já na floresta amazônica, há séculos, nas proximidades dos rios Branco e Madeirinha. Desde a década 1950, esse território é alvo de exploração ilegal. Começou pelos seringueiros. Depois veio o garimpo com a exploração da cassiterita, e, a partir dos anos 1960, os governos estadual e federal incentivaram a invasão loteando o território dos indígenas.
“Em 1967, um grupo de empresários paulistas visitou a região, motivados pela propaganda dos governos militares de terras férteis e desabitadas, e já em 1970 são devastadas imensas áreas de floresta na região para instalação da fazenda Castanhal, com 600 mil hectares, à margem esquerda do rio Branco”, contextualiza Bigio.
DAS BOAS LEMBRANÇAS ÀS TRAGÉDIAS
Quando puxa na memória, Rita Piripkura ainda consegue lembrar de um tempo em que era feliz em sua comunidade, convivendo com os pais, os avós e os dois irmãos: “Eu nasci num lugar que era cheio de tabocal (bambus), que a gente usava para fazer flautas e os rituais. Lembro de eu pequena, minha mãe me ensinando a fazer flauta. Eu gostava de correr pela mata, de comer mel e coco babaçu. Hoje já não sei mais fazer flauta e acabou o mel. Hoje, o lugar onde nasci, da minha infância, já não existe mais. Está tudo derrubado pelo fazendeiro. Virou tudo pasto. Só tem gado lá agora”, lamenta Rita.
Dos pais, a indígena se lembra que apesar de serem “muito rígidos” também eram “muito legais”. Ela se lembra com muita tristeza que, junto deles, teve que sair da aldeia por causa das perseguições dos invasores. Mas como era muito pequena não pôde fazer nada. Apenas fugir.
Foi nessa época que surgiram os grandes empreendimentos dentro do território dos Piripkura. E com eles veio a dizimação de um povo. Os conflitos entre os invasores e os indígenas se acirraram, resultado na morte de dezenas de Piripkura por assassinato e doenças dos brancos.
“Depois que eu saí do território, comecei a perder tudo. Tempo depois perdi dois filhos. Depois foi o meu marido que morreu também. Aí fiquei muito triste, sabe? Porque eu lembrei da perda dos meus pais por doença de tosse e diarreia que eles pegaram dos brancos. Aí a tristeza veio mais fundo, né? Chorei, chorei bastante”, recorda a sobrevivente.
Rita Piripkura era muito pequena, mas se lembra dos relatos dos avós. Contaram para ela que houve dois momentos importantes no conflito. O primeiro momento envolveu o assassinato dos indígenas por serigueiros (decada de 1950). Depois disso (segundo momento, entre os anos 1960 e 1970), os sobreviventes fugiram e atravessaram o Rio Aripuanã, se refugiando mata adentro e entre os igarapés. Boa parte desses indígenas morreram posteriormente, também assassinados ou “pelas doenças dos brancos”, que foi o caso dos pais de Rita.
Nesse período, Rita conta que acabou indo parar em uma das fazendas da região, com outros Piripkura sobreviventes dos ataques, onde trabalhou como cozinheira em condições de escravidão até ser resgatada por uma expedição da Funai, em 1984, que também contou com o apoio da Opan.
A partir de então ela passou a auxiliar o órgão indigenista na procura dos demais Piripkura, bem como na identificação dos cemitérios e aldeias de seu povo. Um ano depois (1985), já com uma série de relatos dos seringueiros e trabalhadores das fazendas sobre a presença de “índios arredios” às margens do Madeirinha, a Funai montou um GT (Grupo de Trabalho) para identificação da TI Piripkura. Mas por conta da constante pressão dos políticos da região, e da força do agronegócio em Mato Grosso, a demarcação do território avançou muito pouco nos últimos 30 anos.
O que tem impedido as invasões de forma definitiva são as portarias de Restrição de Uso de uma área de 243 mil hectares, que hoje é considerada a TI Piripkura. Essas portarias são publicadas anualmente desde 2008, com renovação a cada dois anos.
Mas para a surpresa dos indigenistas, a última restrição, em 17 de setembro de 2021, só foi renovada por um período de seis meses. Ou seja, a portaria vencerá em março deste ano e há uma grande expectativa se a Funai – sob a gestão do governo Bolsonaro – renovará o documento novamente, para que a circulação e a entrada de pessoas, em tese, continue sendo limitada dentro do território Piripkura.
A renovação da portaria faz parte da campanha #IsoladosOuDizimados, das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recém Contato (OPI). Ela também é apoiada pelo ISA.
O QUE DIZ A FUNAI?
A Funai, por meio de nota enviada à Amazônia Real, afirma que tem prestado toda a assistência aos Piripkura, “com ações voltadas à proteção territorial, garantia da segurança alimentar e acesso aos serviços de saúde”. O órgão ressalta que na década de 1980, quando os indígenas foram contactados, a gestão à época não teria adotado todas as medidas legais necessárias para a demarcação da área.
Nesse sentido, o órgão indigenista afirma que teve que montar um outro GT. Porém os trabalhos estão paralisados por conta de uma decisão judicial, “o que pode acarretar uma série de prejuízos ao futuro dos indígenas e à preservação ambiental”. A Funai, no entanto, não detalhou na nota o teor da decisão.
Sobre a portaria de Restrição de Uso, o órgão salienta que a normativa já foi renovada diversas vezes, “sem se dar início a qualquer processo de regularização fundiária com a apresentação de uma proposta de identificação e delimitação definitiva”. No texto, a Funai afirma que “irá apresentar uma proposta definitiva sobre o tema”, no entanto não estabelece nenhum prazo para isso.
O novo GT mencionado pela Funai foi criado por conta de um pedido em tutela de urgência feito pelo Ministério Público Federal. Na ação, o MPF pediu a substituição dos servidores da Funai indicados para compor o grupo técnico porque eles “não possuíam experiência no trabalho com indígenas em isolamento voluntário, tinham conflitos de interesses com a demarcação de terras indígenas, e, principalmente, não tinham a qualificação necessária para realizar o trabalho”.
O juiz federal acolheu os argumentos do MPF e determinou que a Funai nomeasse um novo coordenador para o GT de Identificação da Terra Piripkura. A ação do MPF foi feita com base nas denúncias de entidades indígenas, indigenistas e acadêmicas. Elas publicaram uma carta de repúdio apontando a suspeição dos primeiros nomeados da Funai.
“A partir da publicação da nota, o MPF realizou uma pesquisa sobre cada um dos componentes do grupo de técnico instituído pela Funai e confirmou as informações relativas à suspeição dos servidores para desempenharem a função”, destaca o MPF.
Rita Piripkura é uma das últimas sobreviventes de seu povo. Além dela, só há registro de mais dois Piripkura: seu irmão Baita e o sobrinho Tamandua. Os dois vivem em isolamento voluntário em seu território, localizado no extremo norte de Mato Grosso, na divisa com Amazonas, entre as cidades de Colniza e Rondolândia, “lá na pontinha do mapa” como muitos costumam dizer. Diferentes dos parentes, Rita não é uma indígena isolada há muito tempo. Viúva, ela mora em uma aldeia do povo Karipuna, com seu segundo marido, localizada em Rondônia. Nos últimos tempos, Rita Piripkura tem ganhado visibilidade por ser a única porta-voz de seu povo diante da pressão ameaçadora contra a sobrevivência de seus parentes. A grilagem, o desmatamento e a exploração de madeira ilegal ocorrem dentro do território indígena onde vivem Baita e Tamandua.
Segundo Rita Piripkura, seu irmão e seu sobrinho podem sofrer um ataque a qualquer momento. “De um lado é madeira [extração]. Aí eles correm de lá, mas do outro lado tem o gado e também os grileiros. Estou ficando com muito medo deles serem mortos em conflitos, porque o cerco cada vez mais está se fechando”, contou Rita em entrevista à Amazônia Real, concedida remotamente.
Rita Piripkura é uma personagem emblemática de um povo que foi praticamente dizimado. Nos primeiros minutos da conversa com a reportagem, ela mostra expressão fechada e melancólica. Mas à medida em que vai se sentindo mais segura, se revela uma pessoa simpática e comunicativa. Sua língua materna é a Piripkura, pertencente à família linguística tupi-guarani (tronco tupi). Entende bem o português, mas fala pouco. Por isso a reportagem contou com a ajuda da liderança indígena Adriano Karipuna, que traduziu as respostas de Rita, mais diretas e contundentes.
Do tempo em que morava na aldeia, Rita Piripkura se lembra da convivência com o irmão e o sobrinho. Baita e Tamandua são os dois últimos indígenas Piripkura em condição de isolamento que se tem notícia, desde o fim da década de 1980. Conta que eles sempre tiveram um espírito nômade e gostavam de caminhar durante dias pela floresta, quando regressavam novamente para a aldeia. “Eles nunca pararam direito na comunidade. Ficavam um pouco lá e depois saiam pela floresta. Sempre tiveram essa natureza de ficar vagando, sem um lugar definido, sabe?”
Nas últimas quatro décadas, Rita só se encontrou com Baita e Tamandua durante as expedições da Funai e de outras organizações indigenistas, onde atua como guia. Sente saudades da convivência com os dois na comunidade. Mas ela acredita que as décadas de fuga os deixaram avessos a uma aproximação.
“Eu queria tocar neles, ficar conversando um tempão, mas eles estão muito arredios. Quando a gente se vê eles não deixam chegar perto direito. Ficam mais distantes e a conversa é bem rápida: é um ‘oi’, ‘tudo bem’, e depois eles seguem para dentro da floresta. Eles se abrem até mais com os servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não sei o porquê disso. Porque ficaram tão arredios comigo. Queria entender”, questiona Rita.
A última vez que ela se encontrou com os dois foi em meados do ano passado. Ainda neste mês de janeiro, Rita Piripkura vai participar de uma nova incursão com os agentes da Funai para saber se há vestígios de mais Piripkura. Nessa incursão, ela espera rever os dois novamente para pelo menos dar um “oi” e conselhos sobre os perigos que estão correndo.
SOB RISCO DE ATAQUES
Ultimamente Baita e Tamandua têm entrado nas fazendas para pegar objetos, segundo relatou um fazendeiro a Rita. Ele se queixou da situação dizendo que “estava muito chateado com os dois por conta dos roubos”. Rita explica que para seus parentes isolados isso não é roubo, porque eles entendem que essas coisas (panelas, redes, facões) estão no território deles, e por isso sentem-se no direito de pegar os utensílios para usar durante as caçadas na mata.
“Mas aí eles podem morrer por causa disso. Porque o homem branco não entende assim. Entende que é roubo e eles podem ser assassinados. Eu já falei isso pra eles, mas quero repetir quando a gente se encontrar. Quero falar para eles não mexerem nas coisas alheias. Se ele tiver precisando de alguma coisa, que peçam para gente, para mim, para os servidores da Funai que nós damos um jeito”, afirma.
Relatórios e dossiês de organizações indigenistas denunciam que os posseiros estão cada vez mais perto dos dois principais refúgios de Tamandua e Baita, que são os igarapés Panelas e Duelo.
“Dez quilômetros é praticamente nada para os invasores, que com tratores e outras máquinas podem avançar sobre essa distância, derrubando a floresta, em questões de dias”, alerta Elias Bigio, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan), em entrevista à Amazônia Real. Ele conhece de perto a história dos Piripkura e foi o responsável pela elaboração da primeira portaria de Restrição de Uso na região, publicada pelo governo federal em 2008. Na época Bigio era coordenador-geral de Índios Isolados e Recém-Contato (Cgiirc) da Funai.
Destaca que o território dos Piripkura sempre sofreu pressões de invasores, mas que elas eram controladas pela fiscalização. Porém, desde 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, as fiscalizações diminuíram e o avanço sobre o território dos Piripkura resultou em recordes de desmatamento na Amazônia.
A PRESSÃO DO DESMATAMENTO
O dossiê “Piripkura: Uma Terra Indígena devastada“, do Instituto Socioambiental (ISA), mostra que o desmatamento na área aumentou mais de 27 mil por cento nos últimos dois anos (2020 e 2021), em comparação com os dois anos anteriores. Isso significa 2.361 hectares desmatados.
No total acumulado, até 21 de outubro do ano passado, já são 12.426 hectares devastados na terra indígena, o que equivale a mais de 7 milhões de árvores derrubadas. O levantamento foi feito pelo sistema independente do ISA (Sirad), que conta com a base de dados do sistema de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Toda essa devastação foi constatada a olho nu, a partir de um sobrevôo que o ISA realizou, em 25 de outubro de 2021, para coletar informações para o dossiê e registrar os crimes ambientais que estão sendo denunciados.
Ficou evidente para os indigenistas que as atividades no entorno e dentro da TI estão a pleno vapor, com a boiada no pasto, aberturas de estradas vicinais para retirar madeiras no território, construção de açudes e diversas casas de madeira.
“A movimentação dos caminhões, a ocupação das casas, as boas condições das pastagens e o manejo do rebanho bovino no momento do sobrevoo evidenciam que as fazendas instaladas na TI não estão paralisadas, mas exploram os recursos naturais e exercem atividade econômica e/ou comercial”, aponta o dossiê do ISA.
Elias Bigio ressalta que tais atividades são ilegais, já que elas não poderiam ser ampliadas por conta da portaria de restrição de uso da área, até que se concluam os estudos de demarcação da terra indígena e retirada em definitivo dos posseiros. Esses estudos se iniciaram em meados da década de 1980 e nunca foram concluídos pela Funai.
“O que os proprietários das fazendas conseguiram na Justiça foi a permanência no local, usando a pandemia como argumento. No entanto, a decisão do juiz é clara no sentido de dizer que novos empreendimentos não podem ser abertos na terra indígena, por conta da restrição de uso. No entanto, eles estão restaurando empreendimentos que haviam sido desativados em 2008. Voltou tudo: a extração de madeira, a grilagem”, enfatiza.
O coordenador da Opan se refere a um recurso ingressado pelos fazendeiros que conseguiram, no Supremo Tribunal Federal (STF), reverter em partes a decisão de 16 de julho de 2021, do juiz federal Frederico Pereira Martins que determinou que os invasores da TI Piripkura deveriam sair imediatamente da área, reintegrando assim a posse do território aos donos tradicionais.
Para ficar na TI, os fazendeiros utilizaram uma decisão do STF que impede a desocupação de moradias ou imóveis devido ao estado de calamidade provocado pela pandemia de Covid-19.
Dessa forma, um mês depois da decisão da desintrusão (em 18 de agosto), o juiz federal Frederico teve que voltar atrás, acolhendo parcialmente o apelo dos fazendeiros.
“Sendo assim, a ADPF 709 determinou a desintrusão de invasores, mas dentro de um plano de enfrentamento a ser feito pela União, com ênfase, neste momento ainda de pandemia, na criação de um cordão de isolamento, o que acaba por impedir a retirada de qualquer réu da área objeto do conflito”, destacou o magistrado em sua nova decisão.
Investigações antropológicas apontam que o povo de Rita Piripkura habita a região noroeste de Mato Grosso, já na floresta amazônica, há séculos, nas proximidades dos rios Branco e Madeirinha. Desde a década 1950, esse território é alvo de exploração ilegal. Começou pelos seringueiros. Depois veio o garimpo com a exploração da cassiterita, e, a partir dos anos 1960, os governos estadual e federal incentivaram a invasão loteando o território dos indígenas.
“Em 1967, um grupo de empresários paulistas visitou a região, motivados pela propaganda dos governos militares de terras férteis e desabitadas, e já em 1970 são devastadas imensas áreas de floresta na região para instalação da fazenda Castanhal, com 600 mil hectares, à margem esquerda do rio Branco”, contextualiza Bigio.
DAS BOAS LEMBRANÇAS ÀS TRAGÉDIAS
Quando puxa na memória, Rita Piripkura ainda consegue lembrar de um tempo em que era feliz em sua comunidade, convivendo com os pais, os avós e os dois irmãos: “Eu nasci num lugar que era cheio de tabocal (bambus), que a gente usava para fazer flautas e os rituais. Lembro de eu pequena, minha mãe me ensinando a fazer flauta. Eu gostava de correr pela mata, de comer mel e coco babaçu. Hoje já não sei mais fazer flauta e acabou o mel. Hoje, o lugar onde nasci, da minha infância, já não existe mais. Está tudo derrubado pelo fazendeiro. Virou tudo pasto. Só tem gado lá agora”, lamenta Rita.
Dos pais, a indígena se lembra que apesar de serem “muito rígidos” também eram “muito legais”. Ela se lembra com muita tristeza que, junto deles, teve que sair da aldeia por causa das perseguições dos invasores. Mas como era muito pequena não pôde fazer nada. Apenas fugir.
Foi nessa época que surgiram os grandes empreendimentos dentro do território dos Piripkura. E com eles veio a dizimação de um povo. Os conflitos entre os invasores e os indígenas se acirraram, resultado na morte de dezenas de Piripkura por assassinato e doenças dos brancos.
“Depois que eu saí do território, comecei a perder tudo. Tempo depois perdi dois filhos. Depois foi o meu marido que morreu também. Aí fiquei muito triste, sabe? Porque eu lembrei da perda dos meus pais por doença de tosse e diarreia que eles pegaram dos brancos. Aí a tristeza veio mais fundo, né? Chorei, chorei bastante”, recorda a sobrevivente.
Rita Piripkura era muito pequena, mas se lembra dos relatos dos avós. Contaram para ela que houve dois momentos importantes no conflito. O primeiro momento envolveu o assassinato dos indígenas por serigueiros (decada de 1950). Depois disso (segundo momento, entre os anos 1960 e 1970), os sobreviventes fugiram e atravessaram o Rio Aripuanã, se refugiando mata adentro e entre os igarapés. Boa parte desses indígenas morreram posteriormente, também assassinados ou “pelas doenças dos brancos”, que foi o caso dos pais de Rita.
Nesse período, Rita conta que acabou indo parar em uma das fazendas da região, com outros Piripkura sobreviventes dos ataques, onde trabalhou como cozinheira em condições de escravidão até ser resgatada por uma expedição da Funai, em 1984, que também contou com o apoio da Opan.
A partir de então ela passou a auxiliar o órgão indigenista na procura dos demais Piripkura, bem como na identificação dos cemitérios e aldeias de seu povo. Um ano depois (1985), já com uma série de relatos dos seringueiros e trabalhadores das fazendas sobre a presença de “índios arredios” às margens do Madeirinha, a Funai montou um GT (Grupo de Trabalho) para identificação da TI Piripkura. Mas por conta da constante pressão dos políticos da região, e da força do agronegócio em Mato Grosso, a demarcação do território avançou muito pouco nos últimos 30 anos.
O que tem impedido as invasões de forma definitiva são as portarias de Restrição de Uso de uma área de 243 mil hectares, que hoje é considerada a TI Piripkura. Essas portarias são publicadas anualmente desde 2008, com renovação a cada dois anos.
Mas para a surpresa dos indigenistas, a última restrição, em 17 de setembro de 2021, só foi renovada por um período de seis meses. Ou seja, a portaria vencerá em março deste ano e há uma grande expectativa se a Funai – sob a gestão do governo Bolsonaro – renovará o documento novamente, para que a circulação e a entrada de pessoas, em tese, continue sendo limitada dentro do território Piripkura.
A renovação da portaria faz parte da campanha #IsoladosOuDizimados, das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recém Contato (OPI). Ela também é apoiada pelo ISA.
O QUE DIZ A FUNAI?
A Funai, por meio de nota enviada à Amazônia Real, afirma que tem prestado toda a assistência aos Piripkura, “com ações voltadas à proteção territorial, garantia da segurança alimentar e acesso aos serviços de saúde”. O órgão ressalta que na década de 1980, quando os indígenas foram contactados, a gestão à época não teria adotado todas as medidas legais necessárias para a demarcação da área.
Nesse sentido, o órgão indigenista afirma que teve que montar um outro GT. Porém os trabalhos estão paralisados por conta de uma decisão judicial, “o que pode acarretar uma série de prejuízos ao futuro dos indígenas e à preservação ambiental”. A Funai, no entanto, não detalhou na nota o teor da decisão.
Sobre a portaria de Restrição de Uso, o órgão salienta que a normativa já foi renovada diversas vezes, “sem se dar início a qualquer processo de regularização fundiária com a apresentação de uma proposta de identificação e delimitação definitiva”. No texto, a Funai afirma que “irá apresentar uma proposta definitiva sobre o tema”, no entanto não estabelece nenhum prazo para isso.
O novo GT mencionado pela Funai foi criado por conta de um pedido em tutela de urgência feito pelo Ministério Público Federal. Na ação, o MPF pediu a substituição dos servidores da Funai indicados para compor o grupo técnico porque eles “não possuíam experiência no trabalho com indígenas em isolamento voluntário, tinham conflitos de interesses com a demarcação de terras indígenas, e, principalmente, não tinham a qualificação necessária para realizar o trabalho”.
O juiz federal acolheu os argumentos do MPF e determinou que a Funai nomeasse um novo coordenador para o GT de Identificação da Terra Piripkura. A ação do MPF foi feita com base nas denúncias de entidades indígenas, indigenistas e acadêmicas. Elas publicaram uma carta de repúdio apontando a suspeição dos primeiros nomeados da Funai.
“A partir da publicação da nota, o MPF realizou uma pesquisa sobre cada um dos componentes do grupo de técnico instituído pela Funai e confirmou as informações relativas à suspeição dos servidores para desempenharem a função”, destaca o MPF.
Por: Marcio Camilo
Fonte: Amazônia Real
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