Por Wérica LimaPublicado em: 17/01/2022 às 10:58
Em períodos secos, as florestas com lençóis freáticos rasos se comportam como refúgios hidrológicos e sumidouros de carbono, aponta pesquisa divulgada em revista científica. Fogo, desmatamento e desmonte ambiental são as principais ameaças para esse tipo de floresta. (Foto: Flávia RC Costa/Divulgação) |
Manaus (AM) – Um artigo internacional publicado nesta segunda-feira (17), com a participação de duas pesquisadoras da Amazônia, apresenta uma perspectiva diferente de tudo o que já se sabe sobre a resposta da região amazônica para as mudanças climáticas. Na revista New Phytologist, as cientistas defendem que a preservação e a conservação das áreas de lençóis freáticos rasos são determinantes para conter o aquecimento global. Embora componham 50% de toda a Amazônia, essas áreas têm sido pouco valorizadas ou até desconsideradas em estudos científicos, enquanto se tornam o principal alvo da grilagem, de queimadas e da construção de estradas.
O artigo da New Phytologist “The other side of tropical forest drought: do shallow water table regions of Amazonia act as large-scale hydrological refugia from drought?” pode ser traduzido como “O outro lado da seca nas florestas tropicais: as regiões de lençóis freáticos rasos da Amazônia funcionam como refúgios hidrológicos em grande escala da seca”. A publicação é assinada por Flávia R. C. Costa (pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa), Juliana Schietti (professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas, a Ufam), Scott C. Stark e Marielle N. Smith. Os dois últimos pertencem à Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
“Quando a gente fala de refúgio hidrológico, nos referimos a lugares que provêm as melhores condições hídricas para os organismos vivos. Significa aquele lugar que vai manter as condições adequadas à vida mesmo quando outros lugares ficam ruins”, explica a pesquisadora do Inpa. Diante das mudanças climáticas em curso, bastante perceptíveis nos períodos cada vez mais intensos de estiagem e de chuvas por todo o planeta, e em especial na Amazônia, algumas áreas são capazes de lidar melhor nesses períodos de estresse climático.
Flávia Costa na Reserva Adolpho Ducke, em Manaus (Foto: Daniel Kukla/Divulgação) |
Na hipótese do estudo, esses refúgios hidrológicos cumprem um papel fundamental por dois comportamentos distintos. Em secas moderadas, as florestas de lençol freático raso se beneficiam da redução da umidade no ambiente, que em excesso é prejudicial para o desenvolvimento das árvores. Assim, durante as estiagens, elas passam a crescer mais e atuam como sumidouro de carbono, retendo e compensando a emissão de CO2 das plantas presentes em lençol freático profundo. Além disso, a manutenção da umidade nas partes baixas do relevo, que constituem estas florestas sobre lençol freático raso fazem com que elas se tornem refúgio para a biodiversidade. “São regiões que vão manter a umidade mesmo quando outras regiões estiverem secas demais, dependendo do grau da estiagem”, explica a pesquisadora Flávia.
Resiliência é uma palavra que cabe para retratar esse fenômeno. A região que possui lençóis freáticos rasos permite melhorar as perdas de carbono, potencialmente em sinergia com o aumento de CO2 na atmosfera e, na ponta, fazendo com que elas passem a atuar como sumidouros de carbono.
A degradação dos refúgios
O problema é que as florestas com lençol freático raso têm sido degradadas por falta de proteção. Pela lógica do desenvolvimento predatório da Amazônia, boa parte das atuais áreas conservadas por políticas públicas de proteção ambiental foi determinada por seu valor no contexto atual, priorizar as que possuem maior biodiversidade, estoques de carbono e água no momento em que foram criadas. Mas isso pode constituir em um grande erro, já que na maioria das vezes as políticas públicas não se preocupam em incluir a preservação dos refúgios hidrológicos.
“O que a gente está chamando a atenção é que as regiões que vão contribuir mais para conservação da biodiversidade e estoque de carbono e água no futuro sob mudanças climáticas podem não ser as mesmas que foram priorizadas antes. A gente precisa pensar a conservação no futuro, vendo quais áreas a gente tem que conservar agora para que no futuro elas sejam os reservatórios de todos os serviços ambientais que a gente precisa”, conta a pesquisadora do Inpa.
Porém, como se sabe, uma área é interdependente da outra em ecossistemas tão complexos quanto a Amazônia. O abastecimento dos refúgios hidrológicos depende da retenção de água das partes mais altas da Amazônia, onde a água penetra e escoa até chegar às regiões mais baixas. Em outras palavras: o funcionamento dos refúgios hidrológicos e do sumidouro de carbono durante secas moderadas depende também das florestas de lençol profundo.
“Se houver degradação de tudo que está em cima e só conservar a parte úmida, não será possível manter isso a longo prazo. Não adianta conservar apenas as áreas de lençol freático superficial para manter serviços ambientais. É necessária a conservação de bacias hidrográficas inteiras para que elas funcionem, dizer que não precisamos mais conservar as áreas com o lençol freático profundo é um erro”, ressalta Flávia.
O risco nas grandes secas
Seca na bacia do Solimões em Uarini, no Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) |
Na última COP26, em Glasgow, na Escócia, a preservação e a conservação na Amazônia foi visto como um fator primordial na tentativa de frear as mudanças climáticas. Apesar dos acordos e das promessas estabelecidas entre os países e as empresas, o temor da comunidade internacional é o de que o aquecimento global poderá exceder os 1,5ºC até a próxima década, conforme alertou o último relatório do IPCC. O que o estudo da New Phytologist diz é que se nada for feito a região amazônica pode não contribuir tanto quanto se espera na solução desse problema global.
Com o aumento de eventos mais extremos de seca e cheia devido às mudanças climáticas é possível que nem mesmo essas florestas mais receptivas às secas tenham a capacidade de se manter no futuro, aponta o artigo. “Se as secas ficam fortes demais e o nível do lençol abaixa muito, a água pode ficar fora do alcance até dessas plantas que estão na parte baixa porque elas têm raízes curtas, e aí pode ser uma tragédia já que elas podem simplesmente não ser capazes de sobreviver”, alerta a pesquisadora do Inpa.
O desmatamento é um dos principais vilões no desequilíbrio da Amazônia, sendo responsável por afetar o regime de chuvas e consequentemente, o abastecimento de água para o lençol freático. A diminuição de árvores na Amazônia, que são responsáveis pelo lançamento da água até a atmosfera, ocasiona secas severas e interfere no transporte de água dos rios voadores que iniciam no Oceano Atlântico, percorrem a Amazônia e distribuem as chuvas para a região Sudeste da América do Sul.
As pesquisadoras e os pesquisadores caminhando na BR 319 no trabalho de campo (Foto: Flávia RC Costa/Divulgação) |
Para a co-autora da pesquisa Juliana Schietti, a conservação da Amazônia deve ser pensada como “um grande bloco contínuo” devido ao serviço ecossistêmico de produção e transporte das chuvas. “Quando a gente fala que o regime de chuva está mudando, a gente não sabe ao certo qual impacto isso vai ter sobre essas florestas. Sabe-se que elas são mais vulneráveis à seca, mas não se conhece bem a capacidade delas se adaptarem a mudanças e essa resiliência da floresta é uma grande questão atual na Amazônia”, explica.
Juliana Schietti alerta que a região mais ao sul da Amazônia, na borda do arco do desmatamento, que abrange os estados do Maranhão, do Pará, do Mato Grosso, de Rondônia e do Acre, é em grande parte composta por um lençol freático superficial, incluindo a BR-319.
“A BR-319 fica entre dois grandes afluentes, o rio Purus e o Madeira, tendo como característica um lençol bem superficial. Mais ao sul da rodovia, próximo de Humaitá, há a nova fronteira de desmatamento avançando com a exploração madeireira”, explica Schietti. “É uma das poucas regiões que a gente está monitorando para entender o funcionamento da floresta nesse ambiente, e com o desmatamento, a própria pesquisa fica ameaçada. Há a possibilidade de voltarmos lá e não encontrarmos mais essas áreas delimitadas de monitoramento das árvores e de outros grupos biológicos.”
As áreas no radar dos pesquisadores estão distribuídas a cada 60 quilômetros ao longo da rodovia, sendo que parte dessas terras já foram perdidas para a invasão de exploradores ilegais. Conforme conta a pesquisadora Flávia Costa, as regiões com lençol freático superficial não são boas para a agricultura, correndo o risco de a área ser desmatada e demorar para se regenerar.
“A BR-319 é a porta de entrada para o coração da Amazônia. É um perigo muito grande perder essa área. A partir do momento em que você anuncia que vai liberar a estrada, as pessoas já saem desmatando e foi o que a gente realmente observou lá. O desmatamento ao longo da BR-319 é um desastre e extremamente sério. Não é uma consideração teórica, é a verdade”, complementa Flávia Costa.
A pressão sobre as terras indígenas
Txai Suruí durante protesto em Glasgow (Foto: CopCollab26) |
A única indígena e brasileira a discursar na COP26, Txai Suruí, da Terra indígena Sete de Setembro em Rondônia (RO), vive em uma das áreas mais ameaçadas de desmatamento na Amazônia. Durante a pandemia, houve ataques à sua TI e à TI Uru-Eu-Wau-Wau, ambas ameaçadas por invasores, que ganharam força e apoio do governo diante da construção da BR-319.
“Rondônia é um dos piores estados quando a gente fala dessa questão da proteção dos territórios indígenas e dos ataques, até porque aqui a gente também tem um governo estadual alinhado com o federal”, conta Txai Suruí. Em 2021, ela lembra que o governador de Rondônia (Marcos Rocha, PSL) criou uma lei para acabar com duas unidades de conservação, a Jaci-Paraná e o Parque Guajará-Mirim. “Mas a gente conseguiu reverter essa lei e ter essas áreas de conservação de volta.”
A TI de Txai Suruí possui atividade garimpeira ilegal. No passado, o lugar chegou a ser invadido e degradado antes da demarcação. Atualmente, os povos indígenas realizam o reflorestamento e o monitoramento das terras, catalogam e fazem a documentação das espécies encontradas.
“A gente tem não só uma omissão por parte do governo em relação à proteção dos nossos territórios, mas também de incentivo da invasão desses territórios por parte do próprio governo. E a gente consegue ver facilmente as consequências e os reflexos que isso trouxe para dentro dos territórios”, afirma.
Na construção da BR-319, a jovem líder indígena critica a falta de consulta aos povos originários, previsto na convenção do trabalho Nº169. “Temos exemplos de outras estradas que foram construídas, a gente sabe toda a destruição que traz. Perto dos territórios indígenas a gente tem uma pressão ainda maior com essas construções, sem contar a destruição da flora e fauna”.
Um levantamento realizado pelo Mapbiomas revela que os territórios indígenas já demarcados ou aguardando demarcação foram os que mais preservaram suas características originais, fazendo parte de menos de 1% do desmatamento no Brasil entre 1985 e 2020.
“O Brasil sempre teve um papel de personagem principal quando a gente fala na questão ambiental, e hoje ele se coloca num papel de vilão por toda a política antiambientalista, antipovos indígenas que ele [Jair Bolsonaro] vem colocando em prática, que ele vem pregando no Brasil. A forma como o Brasil está e como o Bolsonaro tratou a COP26 e se comportou são um reflexo do que vem acontecendo no Brasil: um ataque ao meio ambiente”, conclui Txai Suruí.
O desmatamento em alta
Brigadista do PrevFogo do Ibama, checa área de floresta derrubada e queimada em Apuí, sul do Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real) |
Em um ano, entre agosto de 2020 e julho de 2021, meses em que se mede a temporada do corte da floresta na Amazônia, o desmatamento aumentou em 21,97%, o maior crescimento desde 2006, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os dados recordes em meio a crise climática, preocupa as pesquisadoras, que fazem menção à falta de políticas públicas de proteção ambiental no Brasil. Outro levantamento, com base em dados do Sistema de Alerta de Desmatamento, do Imazon, mostra que a Amazônia Legal perdeu 10,2 mil quilômetros quadrados de floresta entre janeiro e novembro de 2021, o equivalente a sete vezes o tamanho da capital paulista. Nos últimos dois anos, foram desmatados 964 quilômetros quadrados nos meses de novembro, as duas piores taxas em dez anos.
“As mudanças climáticas são o nosso grande desafio atual e os governos parecem não entender isso ou até entendem, mas não tomam ações práticas para frear o aquecimento global e suas consequências. A política ambiental é sempre marginalizada. Isso tem um impacto muito grande para a geração atual e para as gerações futuras”, destaca a pesquisadora Juliana Schietti.
Juliana Schietti na Reserva Ducke, em Manaus (Foto: Scott C Stark/Divulgação) |
Flávia Costa cita o desmonte de órgãos ambientais como uma forma de acelerar a destruição da Amazônia sem levar em consideração as pesquisas e os contrapontos colocados pelos especialistas.
“É meio óbvio que a gente não tem visto nenhuma política positiva, a gente só tem visto desmonte dos órgãos ambientais, e as legislações que existem não estão sendo cumpridas porque a fiscalização também foi desmontada. A gente não vai resolver o problema da Amazônia só dizendo ‘Conserve determinadas áreas’ e pronto. O resto todo vai continuar contribuindo para o aquecimento se as políticas de uso da terra não mudarem”, frisa.
Para garantir o funcionamento da floresta e sua contribuição para a manutenção do clima global, Flávia aponta três fatores que devem ser priorizados: a preservação das áreas que podem servir como refúgio hidrológico, a conservação de bacias hidrográficas inteiras para assegurar o abastecimento do lençol freático e a conservação de grandes blocos de floresta desde o leste até o oeste, para assegurar o funcionamento climático da Amazônia.
“Entretanto, não tem como cancelar o efeito de mudança climática apenas conservando as florestas mais resilientes. A floresta não é capaz de promover a absorção de todo o carbono que a China e os Estados Unidos, por exemplo, lançam no mundo anualmente. “O que as florestas com lençol freático superficial podem fazer é atrasar o ponto em que o balanço de carbono sai do equilíbrio. Se a gente mantivesse essas florestas funcionando como sumidouro, poderia atrasar o momento em que as florestas passam a ser só emissores de carbono”, declara a pesquisadora.
Vista sobre um local de lençol freático profundo na Floresta Nacional do Tapajós (Foto: Marielle N Smith/Divulgação). |
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