O Brasil já pensa o pós-bolsonarismo
Outras Palavras abre série de diálogos sobre o pós-bolsonarismo. É preciso propor um novo horizonte político, para acelerar o fim do pesadelo e garantir que não haja volta ao “velho normal” – mas reconstrução do país em novas bases
Por Antonio Martins
Como assegurar (em 2022 ou antes) a derrota do bolsonarismo — este objetivo que pareceu às vezes tão distante e agora torna-se a cada dia mais possível? De que modo agir para que, afastada a ultra direita do poder, sua herança, as inúmeras boiadas que pisoteiam o Brasil desde 2016, seja revista e anulada? Como aproveitar os ventos de mudança que se formaram após as revoltas contra o neoliberalismo na América Latinas, o afastamento de Trump e o declínio acelerado das ideias de “austeridade”? Que papéis a sociedade civil pode exercer, para pressionar desde já por transformações efetivas, ao invés de ficar restrita a depositar um voto em urna?
A partir de junho, uma nova iniciativa de Outras Palavras buscará construir respostas a estas perguntas. Chama-se Resgate e é realizada em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. Convidados pelo site, ativistas e pensadores de presença destacada nas lutas sociais e na refletirão sobre o Brasil pós-Bolsonaro. Serão provocados por doze ideias-força voltadas a mudanças estruturais, formuladas pelo site e relacionadas adiante. Participarão, entre outros, Luiz Gonzaga Belluzzo, Ermínia Maricato, Ladislau Dowbor, Eduardo Fagnani, Marcio Pochmann, Sonia Fleury, Gastão Wagner, Ivo Lesbaupin, Roberto Andrés, Gilberto Maringoni, Paulo Kliass, Artur Araújo, Henrique Parra, David Deccache, Alana Moraes, Rodrigo Savazoni Gabriel Medina, William Nozaki, Célio Turino, Míriam Duailibe, Sérgio Miletto, João Whitaker, Paolo Colosso. Também estão convidados Aílton Krenak, João Pedro Stedile, Gilmar Mauro, Bianca Santana, Angela Pappiani, Silvio Almeida, Rafael Evangelista, Leonardo Foletto, Rafael Banto, o SOS Corpo, o Cfemea, o coletivo Vigência – e a relação continuará a crescer. Uma área especial do site, aberta a colaboração, reunirá o material produzido – textos de referência, entrevistas em vídeo, áudios, atualizações jornalísticas. Os formatos adotados visarão favorecer experiências de formação política, presencial ou à distância.
Este conjunto de ações é uma tentativa de intervir num cenário complexo e contraditório, cujos elementos principais podem ser descritos assim:
a) O bolsonarismo está enrascado numa crise paralisante e grave, o que amplia em muito as chances de batê-lo. A aliança entre fascistas e ultracapitalistas, que foi decisiva para a eleição do presidente e para sustentá-lo nos dois primeiros anos de mandato, está abalada. Tudo indica que o segundo grupo não apoiará o ex-capitão em 2022; que quer agora afastar-se de sua imagem desgastada; e que tentará aprofundar seu declínio, se possível para que ele não chegue ao segundo turno, o que abriria eventualmente espaço para uma candidatura de direita não-fascista, ou mesmo de centro. Este distanciamento é real e bem-vindo. Graças a ele, Bolsonaro deixou de ter os favores da mídia (em especial, da Rede Globo), enfrenta resistência no Judiciário e reúne uma base parlamentar cada vez mais instável. As exigências desta base, sempre aceitas, tendem a tirar do presidente um de seus grandes trunfos: a máscara de “antissistema”. A perdurarem estas tendências, é provável que a tentativa de impor ao Brasil um projeto fascista naufrague em breve. Se isso ocorrer, não provocará apenas um enorme alívio; indicará também capacidade de resistência democrática da sociedade, algo encorajador e estimulante, para os tempos duros que virão.
b) No entanto, há o risco de, derrotado Bolsonaro, persistir ativo o vasto legado de retrocessos que ele acumula desde o início de seu mandato; que segue construindo; e que, a rigor, teve início antes dele, com o golpe de 2016. Aqui, o fascismo e o ultra capitalismo continuam de mãos dadas. As mesmas mídias que fustigam agora os atos mais bizarros do ex-capitão, e os mesmos parlamentares que passaram a se opor a ele recentemente, insistem em preservar os retrocessos estratégicos de seu governo e de Temer, como o congelamento dos gastos sociais, a contrarreforma trabalhista, a devastação da Previdência pública, a “independência” do Banco Central, a minimização da pauta feminista, LGBTQ+ e de costumes. E querem outros, como a privatização da Eletrobras e dos Correios; o desmanche da Petrobrás, do Banco do Brasil e da Caixa; novas concessões a petroleiras estrangeiras no pré-sal; a mineração em terras indígenas; a Medida Provisória pró-grilagem e tantos outros atos semelhantes.
Aos poucos, vai se armando uma tranca, de maneira que um novo governo – especialmente se for o de Lula – veja-se de mãos amarradas para tudo o que for essencial. Precisará recorrer a negociações desgastantes e comprometedoras mesmo para avanços mínimos, e se indisporá junto ao eleitorado, que cobrará mudanças. Esta estratégia já foi usada antes. De Getúlio a JK e a Jango: de Lula aos governadores que buscaram evitar a guerra fiscal ou aos prefeitos que enfrentaram a especulação imobiliária, as instituições brasileiras impõem um freio permanente a qualquer governante que ameace a concentração de riquezas e os privilégios coloniais. Os retrocessos dos últimos cinco anos tornaram estas rédeas muito mais apertadas e opressoras.
c) Em favor das mudanças profundas e de uma reconstrução verdadeira do país pesará um fato notável, mas ainda pouco examinado no Brasil. Uma das pilastras centrais que sustenta o neoliberalismo está ruindo, diante de nossos olhos. A ideia de que as sociedades e governos precisam prostrar-se diante da “disciplina” fiscal exigida pelos mercados financeiros, sob pena de serem flagrados em pecado e punidos já não se sustenta. Foi corroída ao longo de décadas pela China, que sempre a desprezou e nem por isso deixou de alcançar resultados econômicos, sociais, tecnológicos e – mais recentemente – ambientais marcantes. É contestada pelas explosões de protestos (e pelos resultados eleitorais) na América Latina, que rechaçam o neoliberalismo e a “austeridade” desde 2019, contagiando Chile, México, Argentina, Bolívia, Peru e Colômbia.
E o neoliberalismo fiscal é desmentido agora, quem diria, nos EUA, onde se originou o Consenso de Washington. Ao lançar três imensos pacotes de resgate social e aplicar, mesmo que parcialmente, o programa de Bernie Sanders, Joe Biden está escancarando que, sim os governos podem proteger suas populações da pandemia, salvar as famílias e pequenas empresas sufocadas pela crise, aliviar as agruras financeiras de estados e municípios (condados, nos EUA), renovar a infraestrutura (com geração de milhões de postos de trabalho dignos), coordenar a transição para as energias renováveis, estimular o desenvolvimento tecnológico, oferecer cuidados para as crianças e idosos. Nada disso gera hecatombes fiscais. Os neoliberais indignam-se, é claro. Mas ao fazê-lo, isolam-se. Num país marcado ao menos há uma década por extrema polarização política, os planos de Biden são apoiados por quase 70% da população, têm endosso majoritário inclusive no Partido Republicano e estão transformando Donald Trump num personagem folclórico do passado.
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Em meio a esta conjuntura incerta, onde os riscos são consideráveis e nada está garantido – mas surgiram novas esperanças e possibilidades –, o Resgate pode cumprir três papeis essenciais: estimular a volta da imaginação política, da ambição por mudanças estruturais e dos planos de longo prazo; abrir espaço para a reflexão e ação autônomas da sociedade civil e dos cidadãos conscientes; e apoiar as iniciativas que tentam promover formação política, superando uma longa ausência da esquerda, em especial nas periferias.
O Resgate tenta projetar um cenário de vinte anos de transformações, num cenário de ruptura com o neoliberalismo e de questionamento das estruturas que produzem a desigualdade e a devastação do país. Para estimulá-lo, Outras Palavras formulou doze ideias-força, que serão debatidas permanentemente no site, ao longo dos próximos doze meses. Estão relacionadas a seguir. Ao clicar sobre cada uma, abre-se uma primeira versão de seu desenvolvimento:
1. Multiplicar o Investimento Público, em ruptura radical com as ideias de “austeridade” e “ajuste fiscal”
2. Resgatar o SUS, que se tornou, durante a pandemia, símbolo da importância do serviço público.
3. Construir a rede brasileira de serviços públicos de excelência – em especial, Saúde, Educação e Mobilidade.
4. Virada socioambiental (Green New Deal brasileiro). Recuperar e transformar a infraestrutura, com transição ambiental acelerada.
5. Introduzir o direito ao Trabalho Digno Garantido e à Renda Básica da Cidadania, como políticas para executar a Virada Socioambiental.
6. Iniciar a revolução urbanística das periferias, como base para enfrentar uma desigualdade central na vida brasileira contemporânea:
7. Estabelecer uma rede de Bancos Públicos e Comunitários e Reconstruir as empresas públicas brasileiras.
8. Estimular e articular uma rede de pequenas e médias empresas, cooperativas e empreendedores individuais.
9. Recuperar a Petrobras e a soberania sobre o Pré-Sal, inclusive para geração de divisas .
10. Lançar um Programa de Reindustrialização Qualificada, articulado a partir dos serviços públicos
11. Iniciar a Transição Agroecológica com Reforma Agrária e Proteção dos biomas brasileiros
12. Estimular os serviços sofisticados ligados a Conhecimento, Ciência, Cultura, Comunicação e Artes
Ambiciosas, porém agora novamente alcancáveis, estas metas são uma alternativa ao desmonte do país. As novas tecnologias – cujo sentido ainda está em disputa – influenciarão todas as relações sociais. De que forma o Brasil emergirá, em vinte anos? Abandonar a imaginação radical é aceitar resignadamente a regressão das últimas décadas; admitir a condição de fornecedor de commodities agrícolas e minerais; condenar a maior parte da juventude a oferecer mão-de-obra precária, barata e ultra-alienada às plataformas globais de trabalho. A uma minoria ínfima e muito poderosa – os proprietários e capatazes da “fazenda Brasil”, esta perspectiva é confortável. Aos 99,9%, resta lutar por uma reconstrução nacional — em outras bases. Mas isso não se fará sem construir um novo horizonte coletivo.
https://outraspalavras.net/outrobrasil/resgate-derrotar-o-fascismo-e-refazer-brasil/
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