Caminhos para bloquear o Telegram no Brasil levam ao Supremo
Mídia
Seja na Justiça Eleitoral ou na comum, eventual decisão de tirar o aplicativo de mensagens do ar deve ser questionada no STF
O
destinatário era Pavel Durov, cidadão russo de 37 anos, morador do
emirado de Dubai, cofundador e CEO do Telegram, presente em 53% dos
celulares brasileiros. O ministro menciona o dado no texto e acrescenta
que “teorias conspiratórias e informações falsas sobre o sistema
eleitoral estão sendo disseminadas no Brasil” por meio do aplicativo de
mensagens.
Em sua página de perguntas frequentes,
o Telegram afirma que, “até hoje, compartilhamos 0 bytes de dados de
usuários com terceiros, inclusive governos”. Como tantas outras
autoridades, Barroso foi ignorado.
Na quarta-feira passada (19/1), o ministro disse que pretende debater com os colegas de tribunal possíveis providências contra o Telegram, indicando a possibilidade de bloqueio do aplicativo.
A
Justiça Eleitoral é apenas um dos caminhos possíveis para que isso
ocorra. Assim como aconteceu duas vezes com o WhatsApp, que pertence à
empresa Meta (ex-Facebook), juízes de primeira instância também poderiam
determinar um eventual bloqueio do Telegram. As rotas têm em comum a
alta probabilidade de confluírem ao Supremo Tribunal Federal.
Justiça Eleitoral
“O
arranjo institucional entre o TSE e o STF é muito especial”, comenta
Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral na Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Para ele, caso o bloqueio ocorra por decisão do tribunal
eleitoral, deverá haver articulação prévia com o STF — conforme indica
também a fala do ministro Barroso.
“O TSE é composto por sete
ministros efetivos e sete substitutos. Do STF, vêm três efetivos e três
substitutos”, segue Rais com o raciocínio. “Simultaneamente, há seis
representantes do STF no TSE, ou seja, a maioria dos onze ministros
também está no tribunal eleitoral.”
Partidos políticos contrários
ao bloqueio do Telegram teriam legitimidade para propôr ações no
Supremo questionando uma eventual decisão do TSE. O Partido Liberal, ao
qual o presidente Jair Bolsonaro se filiou no ano passado para concorrer
à reeleição, seria forte candidato a tomar a dianteira da causa.
Porém,
como a maioria dos ministros do STF compõe o tribunal eleitoral e deve
anuir com uma eventual decisão antes do bloqueio, as chances de o
Supremo revertê-la seriam menores do que no caso de uma decisão oriunda
de instâncias ordinárias. Além da possibilidade de adiar a decisão
indefinidamente, por meio dos instrumentos regimentais que os ministros
dispõem para tanto.
Atualmente, há duas ações em tramitação no
tribunal relacionadas ao tema, ambas questionando se o Marco Civil da
Internet pode determinar a suspensão ou o bloqueio de um serviço
oferecido por uma empresa que se recusa a passar informações à Justiça.
As ações tratam de casos envolvendo o WhatsApp.
*
“No primeiro bloqueio, ainda não havia criptografia ponta-a-ponta e
eles não tinham representação no Brasil. Havia o Facebook, mas eles não
se responsabilizavam pelo WhatsApp”, relembra a procuradora da República
Fernanda Domingos, do Ministério Público Federal de São Paulo, que atua
em casos de crimes cibernéticos.
* “O segundo bloqueio aconteceu
mais por um desconhecimento sobre a tecnologia de criptografia
ponta-a-ponta”, afirma Domingos. “Naquele momento, ou o WhatsApp não
respondia ou apresentava respostas em inglês.”
Desde a adoção da
tecnologia de criptografia ponta-a-ponta como padrão, o WhatsApp não é
tecnicamente capaz de acessar o conteúdo das mensagens trocadas por seus
usuários. Os conteúdos são codificados e decodificados apenas nos
aparelhos dos usuários — daí o termo “ponta-a-ponta”.
No entanto,
a empresa tem acesso a metadados — por exemplo, quais usuários
conversam entre si, em que grupos cada usuário participa, que usuários
compõem um determinado grupo, quais mensagens estão sendo repassadas com
muita frequência, entre outras milhares de informações.
Atualmente,
o WhatsApp mantém representação no país e coopera com autoridades
brasileiras. “Informações de grupos, informações cadastrais, o que não
seja conteúdo de mensagens, eles fornecem com ordens judiciais sem
problema nenhum”, afirma Domingos. “Naqueles casos [em que houve
bloqueio], na minha visão, o que irritou os juízes é que eram
investigações muito graves e eles já tinham tentado aplicar multa.”
A
postura atual do WhatsApp é diametralmente oposta à do Telegram. “Eles
não respondem nunca, para ninguém”, diz a procuradora da República.
“Ignoram todas as autoridades”, ela resume.
“A empresa não dá nem
bom dia”, concorda Diogo Rais. “Ignora por completo a força do Poder
Judiciário brasileiro”, diz o professor. “Isso mostra uma política
organizacional refratária, afastada de qualquer instituição, de qualquer
país.”
Em entrevista à Marie Claire,
na semana passada, a ministra substituta do TSE Maria Claudia
Bucchianeri ecoou esse pensamento: “O Marco Civil só responsabiliza
plataformas digitais se descumprirem ordens judiciais, e temos uma
plataforma que não recebe ordem judicial. Isso precisa mudar”, ela
disse. “Proibiremos o Telegram no Brasil? Algo precisa ser feito.”
As
ações em tramitação no STF relacionadas aos casos do WhatsApp têm
relatorias da ministra Rosa Weber e do ministro Edson Fachin. Nos dois
casos, os relatores votaram
pelo entendimento de que juízes não podem determinar o bloqueio de
aplicativos de mensagens por descumprimento de ordem judicial.
Ambas
as ações, no entanto, estão paradas desde maio de 2020 após pedidos de
vista do ministro Alexandre de Moraes. Ele também relata o inquérito das
fake news, que investiga a atuação de redes coordenadas de
desinformação, inclusive no Telegram.
Em outubro, durante o
julgamento no TSE das ações que pediam a cassação da chapa
Bolsonaro–Mourão pelo uso de disparos em massa nas eleições de 2018,
Moraes foi taxativo ao dizer que naquele ano “houve disparo em massa”. “Se os autores da ação negligenciaram a prova, isso é outra questão. Há gabinete de ódio”, continuou o ministro.
“A
Justiça Eleitoral pode ser cega, mas não pode ser tola. Não podemos
aqui criar de forma alguma um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que
ocorreu. Todo mundo sabe o mecanismo utilizado nas eleições e depois
das eleições.”
Justiça Comum
Enquanto as ações no
Supremo não são decididas, com uma conclusão sobre a validade do trecho
específico do Marco Civil da Internet, permanece no ar também a
possibilidade de juízes de primeira instância determinarem o bloqueio do
Telegram — assim como ocorreu nas ações envolvendo o WhatsApp.
Essa
alternativa, sem articulação com o STF, teria menos chances de
prosperar e ser duradoura do que a saída pela via da Justiça Eleitoral,
segundo avaliam os entrevistados. “Deve haver gravidade suficiente que
justifique esse pedido, mas isso não depende da gente, depende das
investigações”, diz a procuradora da República Fernanda Domingos.
“Esse
cenário é razoável, considerando todo esse processo”, afirma Rais,
ressaltando que uma eventual decisão com base no Marco Civil da Internet
chegaria, de novo, ao Supremo. “É como se todos os caminhos levassem ao
ministro Alexandre de Moraes.”
Um deputado federal que
participou das discussões durante a tramitação do Marco Civil da
Internet opina, em condição de anonimato, que não há outra saída viável
senão bloquear o Telegram. Para ele, não seria possível fazer a empresa
colaborar com as autoridades apenas por meio de mudanças legislativas.
“O problema não é a lei, é o Telegram.”
Já o deputado Vinícius
Poit (Novo-SP), que presidiu a Frente Digital no biênio 2020–21,
acredita que um eventual bloqueio feriria direitos fundamentais tanto da
empresa como de usuários. “Uma possível decisão nesse sentido
implicaria negativamente na promoção do acesso à informação”, afirma.
“Existe
um abuso de poder monocrático, ao passo em que por meio de uma única
decisão proferida por um magistrado pode ser determinado o bloqueio de
uma plataforma”, ele diz. “Qualquer decisão desse tipo deveria, ao
menos, ser colegiada.”
Poit lembra que o texto do PL 2.630/20,
conhecido como PL das Fake News, busca limitar a distribuição em massa
de conteúdos em aplicativos de mensagens. O projeto foi aprovado no
Senado, mas ainda precisa passar pela Câmara. O deputado acredita que
uma mudança legislativa nesse sentido também feriria a liberdade de
empresas e usuários.
“Atacar a questão da disseminação de
conteúdos por meio de um contingenciamento do alcance de
compartilhamento e limitando a quantidade de usuários em grupos é uma
questão delicada”, avalia. Para o deputado, uma mudança nesse sentido
implicaria “na interferência do Estado em empresas privadas”.
Alcance
As
“milícias digitais” citadas por Moraes em sua decisão poderiam ser
desarticuladas no Telegram caso o serviço fosse bloqueado no Brasil. Mas
permaneceriam ativas em outras plataformas e, além disso, poderiam
continuar acessando o Telegram por meio de VPNs (“virtual private
network”, em inglês, “rede virtual privada”) — método capaz de
dissimular a origem do tráfego de dados —, mesmo que com alcance menor.
“Para
um usuário comum, cortaria o acesso. Um usuário mais sofisticado, que
vai na dark web ou faz qualquer coisa do tipo, conseguiria acessar”, diz
o engenheiro de telecomunicações Eduardo Tude, presidente da Teleco,
empresa de consultoria do setor.
“Para o Telegram em si, que é
quem a Justiça pretenderia atingir, seria um baque, representaria perda
de usuários no Brasil”, ele afirma. Decisões judiciais do tipo são
cumpridas pelas prestadoras de acesso à internet. “As empresas têm
ferramentas que identificam esse tráfego”, explica Tude.
Das
pessoas que têm acesso à internet no Brasil, 98% se comunicam pelo
WhatsApp ao menos uma vez por mês. O percentual de uso do Telegram é de
53%, segundo dados do ano passado. Apesar da diferença relevante na
quantidade de usuários nas duas plataformas, conteúdos podem viralizar
muito mais rapidamente no Telegram. O limite em um grupo de WhatsApp é
de 256 pessoas. No Telegram, é de 200 mil pessoas.
O presidente
Jair Bolsonaro (PL) criou um canal de distribuição oficial no aplicativo
no início de 2021. Em outubro, quando os serviços do Facebook —
inclusive o WhatsApp — saíram do ar em todo o mundo durante cerca de
sete horas, o Telegram aumentou sua base em 70 milhões de usuários em um
único dia. Naquele mês, Bolsonaro chegou à marca de 1 milhão de
inscritos em seu canal.
Uma estratégia usada pelo presidente para
aumentar o alcance de seu canal no Telegram é divulgá-lo em plataformas
com mais usuários brasileiros, incentivando que usem o aplicativo para
receber informações.
* No Twitter, onde tem 7 milhões de
seguidores, Bolsonaro mantém no perfil um link para seu canal de
distribuição no Telegram, que tem pouco mais de 1 milhão de inscritos.
*
No Instagram, onde tem 19 milhões de seguidores, o presidente possui um
link para seu perfil no Gettr, rede fundada por um ex-auxiliar de
Donald Trump e usada por ativistas de extrema-direita, onde Bolsonaro
tem 582 mil seguidores.
Outros pré-candidatos à presidência também têm canais oficiais no Telegram, porém com números muito menores que os de Bolsonaro:
* O ex-presidente Lula da Silva (PT) possui 47 mil inscritos;
*
O ex-ministro Sergio Moro (Podemos) disse em depoimento na Operação
Spoofing que deixou de usar o Telegram por não considerar o aplicativo
confiável. A investigação apura o vazamento de mensagens trocadas entre
ele e procuradores da Lava Jato por meio do aplicativo, no caso que
ficou conhecido como Vaza Jato, após reportagens do site The Intercept
Brasil. Moro não tem canal oficial no Telegram;
* O ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) tem 19 mil inscritos;
*
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), não possui canal pessoal.
O governo paulista mantém um canal institucional com 19 mil inscritos.
*Publicado originalmente em JOTA
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/Caminhos-para-bloquear-o-Telegram-no-Brasil-levam-ao-Supremo/12/52593
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