segunda-feira, 25 de abril de 2022

Garimpeiros invadem aldeia no Vale do Javari e obrigam indígenas a tomarem cachaça e gasolina

Por Elaíze Farias | Publicado em: 20/04/2022 às 18:39

Na aldeia Jarinal vivem indígenas do povo Kanamari e um grupo de recente contato; é a segunda invasão de uma aldeia indígena por garimpeiros na semana (Fotos: reproduções de Whatsapp).
 

Manaus (AM) – Um grupo de garimpeiros invadiu a aldeia Jarinal, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, promoveu uma festa em frente aos olhos dos assustados indígenas, obrigando alguns deles a tomarem cachaça e até gasolina misturada com água. As cenas brutais aconteceram na sexta-feira (15), mas somente na terça-feira (19) dois jovens da aldeia conseguiram comunicar o fato para outras lideranças indígenas, quando chegaram na cidade de Eirunepé ( a 1.159.63 km de Manaus) após três dias de viagem de barco.

A aldeia Jarinal está localizada no meio da mata na parte sul da TI Vale do Javari, à margem do rio Jutaí. Nela vivem 160 pessoas do povo Kanamari e 47 indígenas Tson wük Dyapah (pronuncia Toshom Djapá), de recente contato. A região acima de Jarinal também é habitada por indígenas isolados, entre eles os Warikama Djapá, possivelmente um subgrupo dos Kanamari que optaram por viver em isolamento voluntário. A cidade mais próxima de Jarinal é a distante Eirunepé. As pequenas embarcações são o único meio de transporte utilizado pelos indígenas para seu deslocamento na região.

Nesta terça-feira (19), o presidente do Conselho Indígena dos Kanamari do Juruá e Jutaí (Cikaju), Kadhyi Kanamari, recebeu dois rapazes vindos da aldeia Jarinal. Foram eles que narraram a invasão de suas terras. “Os garimpeiros foram até a boca do igarapé, que fica bem perto da aldeia, e depois foram de canoa até a aldeia fazer festa. O que eles fazem é temperar gasolina com água e ficam dando para os parentes beber. A gente quer que a Polícia Federal vá até lá resolver essa questão dos criminosos garimpeiros”, disse Kadhyi Kanamari. 

Áudios de Kadhyi Kanamari começaram a circular na manhã desta quarta-feira (20) junto de fotos feitas pelos dois jovens indígenas. As imagens do aparelho, embora desfocadas, mostram garimpeiros dançando no meio de uma maloca, sendo observados passivamente pelos indígenas, incluindo crianças. Os garimpeiros também induzem alguns indígenas a “dançarem” com eles. À Amazônia Real, Kadhyi disse que o temor não é apenas a bebida alcoólica, mas ameaças de abusos sexuais das mulheres que vivem na aldeia. 

A invasão dos garimpeiros na aldeia Jarinal aconteceu na mesma semana de outro fato semelhante, mas de maior repercussão midiática. Garimpeiros armados invadiram a aldeia Karimaa, na Terra Indígena Xipaya, em Altamira (PA). Pelas redes sociais, a cacica Juma Xipaya relatou as ameaças que seu pai sofreu e a tentativa de instalação dos maquinários para o garimpo. Houve uma reação imediata das autoridades mas, no domingo, a Polícia Federal informou que acabou soltando os garimpeiros invasores por não conseguir chegar a tempo para fazer o flagrante do crime.

No caso desta nova invasão, os Kanamari do Vale do Javari contam apenas com uma possível ação da Fundação Nacional do Índio (Funai), que até agora não respondeu que providências tomará para conter e impedir o avanço do garimpo na região do rio Jutaí.  Na TI Vale do Javari a Funai mantém uma Frente Etnoambiental por se tratar de território onde existe um expressivo número de indígenas isolados. A Amazônia Real apurou que nesta quarta-feira, a chefia da coordenação da Frente foi trocada.

Os Kanamari, por outro lado, dispõem de uma reduzida rede de interlocutores e apoiadores, diferente do que ocorre com outros povos indígenas que também sofrem com invasão de garimpeiros.

Comunidade isolada e sem comunicação

Aldeia Jarinal dos índios Kanamari (Foto: Funai)

A aldeia Jarinal não possui canal de comunicação com outras áreas, comunidades e cidades. Não tem telefone público ou radiofonia. Qualquer informe ou denúncia de invasão só podem ser dadas pessoalmente, em uma eventual viagem dos indígenas até a cidade de Eirunepé, como aconteceu agora. A TI Vale do Javari tem 8,5 milhões de hectares. É o segundo maior território indígena do país. A maior parte do território está na jurisdição do município de Atalaia do Norte (AM), fronteira com o Peru, onde fica a maioria das aldeias dos povos Kanamari, Marubo, Kulina, Matsés, Matís, Korubo e grupos isolados. A exceção é justamente Jarinal, onde há pouca ou nenhuma ação do Estado brasileiro.

Segundo a liderança Kora Kanamari, por estarem isolados e incomunicáveis, os Kanamari de Jarinal, que raramente saem do local, podem ser presas fáceis dos garimpeiros, além de ludibriados e enganados por uma suposta boa intenção dos invasores.

“Os garimpeiros oferecem bebida e dinheiro pros parentes, pro cacique. Os parentes estão incomunicáveis, estão desinformados com o que acontece fora de lá. Eles não sabem por que, por exemplo, os garimpeiros passaram a gostar dos Kanamari. Eu não duvido que os jovens que foram a Eirunepé foram para comprar alguma coisa que os garimpeiros pediram e acabaram mostrando as fotos da festa pros parentes Kanamari que estão em Eirunepé”, disse à Amazônia Real.

Kora Kanamari acredita que aldeia pode ser impactada por conflitos internos, pois os garimpeiros vão induzi-los a aceitá-los internamente, cooptando-os com presentes, objetos e bebidas.

“Nosso medo é que os parentes possam ser comprados, manipulados. Com as lideranças ficando dependentes dos garimpeiros. A nossa maior preocupação mesmo é com os Tson wük Dyapah, que estão refugiados lá, desde que quase foram exterminados em outra área. A Funai abandonou eles”, disse.

“Essa invasão nos preocupa muito. Nosso papel é denunciar para que o governo tenha vergonha e faça o seu papel. É preciso que as autoridades, o Estado, a Funai, vão lá ver a situação, como agem os garimpeiros, quantos são, as ameaças que eles fazem”, completou.

Abuso sexual e drogas

A liderança Higson Kanamari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Feliciana Kanamari, vice-presidente da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), disse à Amazônia Real que os garimpeiros também teriam ameaçado os indígenas da aldeia Jarinal caso eles denunciassem ou fizessem qualquer relato da situação pelas redes sociais. 

“A situação está tensa. A gente está correndo para ajudar nosso povo. Não tem ninguém para proteger os parentes isolados”, disse Feliciana. Segundo ela, as organizações indígenas do Vale do Javari comunicaram o episódio à Frente Etnoambiental do Vale do Javari, vinculada à Funai, mas não obtiveram respostas.

“Com esses invasores, a nossa preocupação é também com a exploração sexual. Podem influenciar no uso de drogas, causar desmatamento, poluição. Os parentes vivem de agricultura e pesca. Eles (garimpeiros) podem estar iludindo os líderes com dinheiro, com retirada de ouro”, disse ela à reportagem.

Higson Kanamari, que já foi presidente da Akavaja, contou que os moradores da comunidade vêm pedindo ajuda das lideranças desde a chegada dos garimpeiros na região da aldeia Jarinal.

“Há seis meses eles vêm pedindo para que as autoridades façam algo. Eu mesmo estava tentando ir lá, mas é muito difícil o acesso, muito caro. Enquanto isso, o garimpo está avançando, caçadores estão entrando na área deles”, disse.

Conforme Higson, os garimpeiros estão concentrados na área do Igarapé do Juruazinho, que fica a 15 minutos da aldeia, viajando em uma embarcação com motor 40. “Eles (garimpeiros) agem com draga, montam tubulação e já começam a escavar na beira do igarapé. Eles vão entrando diariamente. Isso leva muito risco para o povo Kanamari. Uma vez que o garimpo entra, jamais o povo vai continuar tendo saúde”, disse.

O presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo, preocupa-se com as consequências das ações do garimpo em um território não fiscalizado pela Funai ou por autoridades de segurança, especialmente num momento político do País em que o órgão indigenista está aparelhado por gestores antiindígenas e favoráveis ao agronegócio e à mineração. 

“A Funai está cada vez mais fragilizada. Quando acontece algum fato como este é difícil a Funai se manifestar, a Frente se manifestar. O Estado não faz nada, com exceção de alguns parceiros dentro da Funai. Por mais que a gente esteja pressionando, a Funai não está fazendo o seu papel”, disse Paulo Marubo à Amazônia Real.

Paulo Marubo salientou que a realidade do Vale do Javari é muito complexa, porque a localização do território é remota e de difícil acesso, além da barreira de comunicação, já que as comunidades não têm tecnologia, nem acesso a sinal de celular ou internet.

“Para informar para nós ou para o Estado, o parente precisa sair da aldeia Jarinal. São dois dias caminhando no varadouro. Depois desce pelo rio mais dois ou três dias. É difícil, complicado, dificultoso”, afirma.

Nesta quarta, a Akavaja enviou um documento à Univaja pedindo que a organização solicite ajuda do MPF e da PF. Segundo o documento da Akavaja, a aldeia Jarinal deveria ter barreiras sanitárias desde 2021, quando houve processo seletivo na Funai. “Com os garimpeiros dentro de nosso território, estamos à mercê de doenças por causa de água contaminada, do alcoolismo e droga”, diz o documento.

Em outubro de 2020, no auge da pandemia, lideranças Kanamari denunciaram a falta de assistência médica e de ações das autoridades de saúde indígena na aldeia e a preocupação com o contágio da doença na aldeia, sobretudo com os indígenas de recente contato, conforme revelou a Amazônia Real

“Os Tson wük Dyapah precisam ser olhados com mais atenção. Eles são muito poucos. São pessoas especiais, diferentes. Eles vivem com os parentes Kanamari na aldeia Jarinal, mas são diferentes até nas características físicas de nós; até na fala”, disse Kora Kanamari, na época, para a Amazônia Real.

A presença de balsas de garimpo na região do Vale do Javari não é nova. Há anos, os indígenas denunciam a circulação de grandes dragas que exploram ouro nos leitos dos rios. Em agosto de 2017, indígenas denunciaram que os isolados Warikama Djapá (também chamados de Djapar) foram atacados e mortos por garimpeiros. Na mesma época, foi divulgado que um grupo de indígenas isolados conhecidos como Flecheiros teria sido massacrado também por garimpeiros na região do rio Jandiatuba. O MPF chegou a confirmar, mas depois reconsiderou a informação repassada. Na época, a Base de Índios Isolados, localizada naquela calha de rio Jandiatuba, havia sido desativada pelo governo federal.

Com a grande repercussão do caso do massacre, a PF divulgou que fez investigações, mas o massacre não foi confirmado. Em setembro do mesmo ano, a PF, o MPF e o Ibama realizaram uma operação de destruição de balsas de garimpo e, desde então, não se soube mais de notícias de presença de garimpeiros ou de novas operações de destruição de balsas de garimpo.

Sesai disse ao MPF que não há garimpeiros na área

Após a publicação desta reportagem, a assessoria de imprensa da Funai entrou em contato para informar que “acompanha o caso por meio da sua unidade descentralizada na região e que acionou a Polícia Federal para adoção das providências cabíveis”. O órgão disse também que “segue em articulação com as autoridades locais e está à disposição para colaborar com os trabalhos de proteção à comunidade”.

O MPF também enviou respostas dizendo que a sua unidade sediada em Tabatinga promoveu imediatamente uma reunião com a Coordenação Regional da Funai e com a Frente de Proteção Etnoambiental para apurar os fatos e acompanhar as medidas adotadas.

“Diante da gravidade do relatado e da necessidade de obtenção de informações precisas para subsidiar a atuação do MPF, foram instados diversos órgãos públicos, bem como as organizações de representação indígena. Foi também requisitada a instauração de inquérito policial para averiguação”, diz a nota do MPF.

Segundo o MPF, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informou ao órgão que “não há neste momento relatos da presença de garimpeiros no local”.

“As apurações seguem em curso com o necessário rigor e celeridade que o caso impõe. Além disso, importa registrar que o MPF possui relacionamento estreito e canal direto de comunicação tanto com os órgãos públicos quanto com as organizações indígenas e que há inquéritos policiais e procedimentos em andamento para apurar questões relacionados ao garimpo na região”, diz o MPF, em nota.

Esta matéria foi atualizada no dia 25 de abril para incluir respostas da Funai e do MPF enviadas após a publicação desta matéria

Grupo de indígenas Tson wük Dyapah (Foto: Arquivo Funai)

 Elaize

Reportagem Elaíze Farias

Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. Atuou como repórter na imprensa do Amazonas e especializou-se na produção de reportagens socioambientais na Amazônia com enfoque em povos indígenas e povos tradicionais, direitos territoriais, direitos humanos, impactos de grandes obras na natureza e nas populações amazônicas, entre outros assuntos. Possui Prêmio Imprensa Embratel, Prêmio Onça-Pintada de Jornalismo e Prêmio Fapeam de Jornalismo Científico. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

(elaize@amazoniareal.com.br/elaizefarias@gmail.com) 

 

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