Três jornalistas de rádio, de três cidades do interior do Brasil, os três assassinados por pistoleiros contratados por mandantes interessados em calar suas vozes críticas ao poder local. Estas histórias se intercalam no documentário brasileiro “Boca Fechada,” lançado em plataformas de streaming em fevereiro, sobre assassinatos de jornalistas que atuam em cidades afastadas dos grandes centros do país.
Por Júlio Lubianco | 8 março, 2022
Israel Silva, Jairo de Sousa e Gleydson Carvalho: jornalistas assassinados são tema de documentário sobre violência contra comunicadores no Brasil. Crédito: Boca Fechada |
Por acontecerem em sua maior parte distantes das grandes cidades, os assassinatos de jornalistas no Brasil são pouco conhecidos pelo grande público. Mas os números impressionam: entre os anos de 1995 e 2018, foram 64 execuções por conta do exercício da profissão, segundo um levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público citado no filme. Em 2021, o Brasil entrou na zona vermelha de liberdade de imprensa, a segunda pior categoria na classificação de risco da ONG Repórteres sem Fronteiras.
O trabalho de pesquisa começou anos antes, quando Lopes escreveu a dissertação “Comunicadores executados no Brasil por conta do exercício profissional” durante seu mestrado em direitos humanos na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Aquiles Lopes e Marcelo Lordello dirigiram o filme e sofreram ameaças durante a produção. Crédito: cortesia |
Para trazer essa realidade à tona, Lopes e se juntou com o cineasta Marcelo Lordello para produzir o documentário. O filme reconstitui os assassinatos dos comunicadores Israel Silva, Jairo de Sousa e Gleydson Carvalho para traçar as características desse tipo de crime no Brasil e identificar os pontos que se repetem em muitos dos casos.
“Esses comunicadores trabalham a maior parte em rádios muito pequenas, estruturas muito pequenas, e fazem parte de ecossistemas muito pequenos, da raiz do coronelismo brasileiro, em que um grupo político ou outro controla tudo. Controla a comunicação, o comércio, sistema imobiliário, todo o setor que entrega, quem paga, onde gasta,” disse Lopes.
“Os padrões [também] se repetem quando esses casos entram na fase judicial. [O filme busca] entender como também está implicado quem mandou matar e como não se faz justiça sobre isso. … Lidamos muito com as pessoas que ficam, e como eram esses traumas, como era essa sensação de injustiça,” disse Lordello à LJR.
‘Não farei um programa da mesma forma’
Em Lagoa do Itaenga, cidade de 22 mil habitantes no estado de Pernambuco, na Região Nordeste, Israel Silva comandava um programa na rádio comunitária Itaenga FM 98,5. O foco do noticiário eram ocorrências policiais e informações sobre a política local.
Júlio Filho substituiu o colega assassinado Israel Silva na Rádio Itaenga FM: evita noticiar fatos policiais e políticos. Crédito: Boca Fechada |
"A primeira vez que ele foi ameaçado lhe foi dito que não poderia falar o nome de Fulano. Ele ficou apavorado. Fomos na delegacia e fez um boletim. Umas semanas depois, foram uns caras lá na rádio, mas ele não estava. Nesse dia ele foi escoltado por dois sargentos. A partir de então ele passou a ficar com medo de estar sozinho," diz no filme a viúva Rosineide Silva.
Silva foi assassinado em novembro de 2015 após deixar os filhos na escola. O inquérito policial concluiu que ele foi executado vingança de traficantes denunciados no programa de rádio. Em 2018, três pessoas foram condenadas pelo crime.
Desde o assassinato de Silva, o radialista Júlio Filho passou a ocupar o horário, mas passa longe dos assuntos abordados pelo antecessor.
"Não farei um programa da mesma forma que era feito. A população ficou decepcionada, esperava a mesma linha combativa. Eu falei para a direção da rádio que nem mesmo queria noticiar fatos policiais", diz Filho no documentário.
Repercusão internacional e impunidade
Dos três casos retratados, o de Gleydson Carvalho é o que teve mais visibilidade. Ele foi assassinado em 2015 por um pistoleiro enquanto estava no ar, dentro do estúdio da Rádio Liberdade FM. O crime ocorreu em Camocim, cidade de 68 mil moradores no estado do Ceará, no Nordesde do Brasil, mas a repercussão foi internacional. Na época, o New York Times reportou sobre a tendência alarmante de assasinatos de jornalistas no Brasil.
Carvalho também denunciava casos de corrupção envolvendo políticos locais. Em 2019, os três executores do crime foram condenados a penas entre 27 e 23 anos de prisão. Os mandantes seriam dois tios do ex-prefeito da cidade vizinha Martinópole, segundo o Ministério Público. Mas eles nunca chegaram a ser julgados.
O sobrinho dos mandantes, o ex-prefeito James Bell e alvo de críticas de Carvalho, foi afastado do cargo no final de 2016, pouco mais de um ano depois da morte do jornalista por impobridade administrativa. Ele nega envolvimento com o crime. O ex-prefeito renunciou à sua candidatura nas eleições municipais de 2020.
Em janeiro de 2021, Carvalho foi homenageado com um busto em Martinópole. Em agosto, o monumento foi vandalizado.
Intimidação da equipe de produção
Jairo de Sousa Júnior é jornalista na TV Mania, em Bragança-PA: sem medo de seguir a linha combativa do pai assassinado. Crédito: Boca Fechada |
Em Bragança, cidade de 128 mil habitantes no litoral do estado do Pará, na Região Norte, a equipe de produção encontrou um ambiente hostil. Pessoas que seriam ligadas ao suposto mandante do assassinato de Jairo de Sousa foram até o hotel onde a equipe estava hospedada.
“A gente sentou, e aí chegou um carrão com som alto, saem dois caras. A gente está num hotel que fica num posto de gasolina, sentados lá para ver o que vamos fazer no dia posterior. E aí o produtor local diz que [aquelas pessoas] são os sobrinhos do mandante. Isso foi no primeiro dia que a gente chegou,” disse Lordello à LJR.
Sousa trabalhava na Rádio Pérola, onde fazia críticas e denúncias a políticos locais, e foi executado em 2018 supostamente a mando de um vereador por R$ 30 mil segundo o Ministério Público, conforme reportado pelo Projeto Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). O político nega o crime, mas não quis dar entrevista para o documentário.
“Teve uma certa polêmica se conseguiríamos fazer o filme sem trazer o outro lado. Mas a gente buscou. Eles que não quiseram falar,” disse Lordello.
"Bragança está sofrendo calada porque não tem mais ninguém fazendo o que ele fazia. Como ele denunciava e batia nos grandes,” diz no filme o filho de Sousa, o também jornalista Jairo Sousa Júnior. Ele hoje é repórter e apresentador da emissora local TV Mania. “Eles tiraram meu pai e tiraram meu medo. Se for para fazer o que ele fazia, eu estou disposto também.”
Boca Fechada disponível em plataformas como YouTube, Google Play, Apple TV, Now, Vivo Play e Cine Brasil TV.
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