Terra indígena Apyterewa tem sido alvo de ocupação ilegal de pecuaristas e garimpeiros, se tornando a área protegida mais desmatada da Amazônia desde 2018.
The intercept | Carol Castro 27 de set de 2023, 13h11
Vista aérea da terra indígena Apyterewa, que tem sido alvo de pecuarista
e garimpeiros no sudoeste do Pará. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress |
Em sete anos, não indígenas ergueram 210 casas, igrejas, lojas de comércio, uma escola e até um posto de gasolina dentro da terra indígena Apyterewa, na cidade de São Félix do Xingu, no sudoeste do Pará. Essa ocupação ilegal deu origem a uma vila, que foi batizada de Renascer e hoje reúne cerca de mil invasores – eles superam em número os 730 indígenas legalmente instalados na área e donos do território, de acordo com documentação acessada pelo Intercept, que incluem relatórios de órgãos do governo federal e investigações da Polícia Federal.
A perspectiva é ainda de mais crescimento, com novas casas em construção. Tudo isso acontece ao lado de uma base de operação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai.
Um dos canais de acesso da vila Renascer alcança outra área invadida: a vila do Piranha, com dez edificações e plantações. Do outro lado da reserva, um sujeito de nome Josemar Alves da Costa, assassinado em 2022, negociou com uma dezena de pessoas pedaços de terra que não lhe pertenciam. Esses e outros quatro povoados ainda vivem ilegalmente dentro dos 773 mil hectares que pertencem ao povo Parakanãs, homologados em 2007, durante o segundo mandato do presidente Lula.
Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon, a TI Apyterewa foi a reserva indígena com maior área de floresta derrubada na Amazônia nos últimos quatros anos. Não é coincidência os números crescentes de desmatamento e invasões na região amazônica. O ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, estimulou a legalização do garimpo em terras indígenas e discursou inúmeras vezes a favor da revogação de reservas às comunidades tradicionais – além de sucatear e desmontar os órgãos de defesa do meio ambiente e proteção aos povos indígenas.
Em nota, a Funai confirmou os recordes de desmatamento na área Apyterewa nos últimos anos e que, para contê-los, foi criado o Comitê de Desintrusão para “garantir a proteção constante e permanente de todos os territórios indígenas”.
Políticos defendem ocupação ilegal da reserva Apyterewa
O município de São Félix do Xingu também concentra políticos contrários às proteções das reservas indígenas. João Cleber de Souza Torres, atual prefeito de São Félix do Xingu, do MDB, e seu irmão, o deputado estadual Francisco Torres de Paula Filho, mais conhecido como Torrinho, do Podemos, acumulam denúncias por tomada de terra e até assassinato.
Antes de se eleger prefeito, Torres chefiou a Funai no estado do Pará durante o governo Bolsonaro e foi denunciado pelo Ministério Público Federal por abrir uma estrada usada por garimpeiros dentro da terra dos Parakanãs. Já eleito, ele organizou caravanas a Brasília para lutar contra as operações de desintrusão e reuniões para defender a presença de não indígenas em terras já demarcadas. Seu vice, João Batista Alves de Abreu, também liderou resistências contra a desintrusão, em 2016 – ano que a Vila Renascer começaria a ser instalada na terra indígena Apyterewa.
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A primeira operação de desintrusão durou poucos meses. Em 2011, o governo federal criou as duas bases de controle e fluxo dos invasores que permanecem até hoje – base 1, de São Sebastião, e base 2, de São Francisco. As ações naquele ano perduraram apenas de janeiro a março, quando uma decisão judicial garantiu a permanência dos não indígenas na área.
Quatro anos depois, o Supremo Tribunal Federal derrubou todas as ações que impediam a desintrusão. O governo federal, então, articulou uma espécie de força-tarefa, entre a Funai, os ministérios da Defesa, da Justiça e do Desenvolvimento Agrário para tirar os invasores de vez das terras dos Parakanãs.
No início de janeiro de 2016, o atual prefeito de São Félix do Xingu, que havia acabado de perder a reeleição municipal, partiu para Brasília. Junto a eles estavam outros dois nomes: Adelson Costa e Antônio Belfort, segundo documentos oficiais acessados pelo Intercept.
O primeiro deles é um pastor evangélico da vila Taboca com uma fazenda chamada Fé em Deus, além de presidente de uma associação local. Em uma de suas empreitadas, juntou-se a posseiros e ameaçou indígenas que pretendiam fundar uma nova aldeia dentro da reserva. O segundo é um pecuarista afortunado e que já tentou sucessivas vezes ocupar um cargo público – foi candidato três vezes a vereador, mas nunca se elegeu.
De acordo com documentos acessados pela reportagem, Belfort também se apossou de terras na Apyterewa. Ambos fazem a ponte do político com uma peça-chave nas manifestações daquele ano: Vicente Paulo Terenço – outro posseiro poderoso, famoso por acumular terras e protegê-las com pistoleiros, além de ser acusado de ordenar assassinatos.
Nenhuma dessas figuras expõem o rosto publicamente para promover ou incentivar atos contrários aos direitos indígenas. Ficam apenas nas articulações e bastidores. Foi ele quem mandou para Brasília, em 2016, um grupo de invasores que defendiam abertamente intervenção militar – os parentes de Belfort compartilharam essas manifestações golpistas em suas redes sociais.
Enquanto isso, no Pará, sua turma migrou para a base 2 da Funai na TI, onde montou acampamento. E de lá, da Vila Renascer, não saíram até hoje – mais uma vez, as decisões judiciais impediram a completa remoção dos invasores.
Tentamos contato com o prefeito João Cleber de Souza Torres e com o deputado Francisco Torres de Paula Filho, mas nenhum deles nos respondeu. Não conseguimos encontrar Torenço, Adelson Costa e Antônio Belfort.
Terra indígena Apyterewa, que pertencem aos Parakanãs e tem sido alvo de constantes invasões. Foto: Bruno Santos/ Folhapres |
Quatro anos depois, com o aumento das invasões em 2017, negociações de conciliação abertas pelo STF, fiscais do Ibama viraram reféns dos invasores. Após autuarem uma área por desmatamento ilegal, manifestantes bloquearam vias e atiraram contra eles, que foram obrigados a buscar abrigo na base 2. Os invasores cercaram a base com barricadas e impediram os servidores de receber alimentos por três dias. Terenço foi indiciado como réu pela Justiça, que também ordenou o imediato desbloqueio das vias.
Governo Lula homologou reserva Apyterewa em 2007
Tamanha adesão de invasores nessa terra indígena vem de uma narrativa difundida pelas lideranças sobre a mudança da extensão da TI Apyterewa. Segundo eles, lá na década de 1990, o governo ampliou a área dos indígenas, que era de 266 mil hectares, para 980 mil hectares, deixando 4,5 mil famílias de não indígenas em situação irregular. Pouco tempo depois, em novo acordo com o governo, a área foi reconfigurada para os atuais 773 mil hectares.
A Funai reconheceu cerca de 1,3 mil famílias que viviam no local e negociou indenizações – as outras 3,2 famílias não foram reembolsadas. Em alguns casos, o órgão entendeu que havia “má-fé” no pedido de reparação.
Alguns dos não indígenas indenizados julgaram que receberam um valor muito baixo e começaram as negociações que perdurariam por anos. Em 2005, fecharam um acordo: a homologação das terras só aconteceria após o julgamento “da boa fé dos não indígenas”. Só que o governo Lula se antecipou e, em 2007, antes do julgamento, homologou por meio de um decreto a TI Apyterewa. Os invasores nunca perdoaram a “traição” da justiça e do presidente petista.
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