sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Morre Eneas Salati, que desvendou as chuvas da Amazônia

 

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Cientista paulista mostrou que a floresta recicla a própria umidade, o que levou à descoberta dos “rios voadores”

10.02.2022 - Atualizado 10.02.2022 às 11:00

 


DO OC – “Sem Amazônia não tem chuva.” “O desmatamento impacta o agronegócio.” “Os rios voadores levam água ao Centro-Sul.” Essas e outras afirmações hoje óbvias sobre o papel da floresta amazônica na precipitação da América do Sul – e o risco embutido na devastação do bioma – têm sua origem no trabalho de um homem: o agrônomo Eneas Salati, morto no último sábado em Piracicaba aos 88 anos.

Nos anos 1970, Salati usou a tecnologia mais avançada então disponível da física nuclear para desvendar o transporte de umidade na floresta. Fez duas descobertas seminais: em 1976, estimou que mais da metade do balanço hidrológico da região amazônica se devia à evapotranspiração – o “suor das árvores”, pelo qual elas liberam vapor d’água para a atmosfera. Portanto, escreveu, “o desmatamento intensivo deve causar alterações no ciclo hidrológico”. Em 1979, publicou com três colegas um estudo clássico no periódico Water Resources Research no qual mostrava que a Amazônia reciclava a própria chuva, mandando umidade de nordeste para sudoeste.

O agrônomo havia co-fundado em 1968 o Cena (Centro de Energia Nuclear na Agricultura), ligado à Esalq, a escola de agronomia da Universidade de São Paulo, em Piracicaba. Era a época da campanha Átomos para a Paz, da ONU, que estimulou o uso da tecnologia das bombas atômicas para fins pacíficos, como pesquisa e geração de eletricidade. O Cena adquiriu um aparelho chamado espectrômetro de massa, pelo qual era possível determinar a composição química de uma substância pelo “peso” de seus átomos. “Foi o primeiro espectrômetro da América Latina. Meu pai ficou meses em Viena aprendendo a usar aquilo”, recorda-se a limnóloga Eneida Salati, filha do pesquisador.

De posse do equipamento, e estimulado pelo colega israelense Joel Gat, que já usava espectrometria de massa, Salati uniu a técnica de investigação à sua maior paixão: “Ele era louco por água”, conta o ecólogo Reynaldo Victoria, da Esalq, um dos primeiros orientandos de Salati no Cena. Primeiro fez estudos sobre o Nordeste, e depois, naturalmente, passou a olhar para o lugar com mais água no Brasil: a Amazônia.

Salati e seus colegas tentaram entender de onde vinham as chuvas da floresta pluvial. Era sabido que a Amazônia recebia umidade do Atlântico em sua porção nordeste. Mas como ocorria esse transporte? Um jeito de investigar era olhar para a proporção de oxigênio-18 na água.

O átomo de oxigênio vem em dois “sabores” distintos, chamados isótopos: o 16O, com 16 nêutrons em seu núcleo, e o 18O, com 18 nêutrons. Quando as nuvens que trazem a chuva do Atlântico se formam, elas carregam uma determinada “assinatura” isotópica, dada pela proporção desse oxigênio pesado e também do hidrogênio pesado, o deutério. “Foi aí que ele teve a grande sacada da vida dele, seguir a chuva pela calha do Amazonas para saber como variava a razão de oxigênio pesado e deutério”, conta Victoria.

Como é mais pesado, o 18O precipita primeiro e a tendência seria que água da chuva coletada perto da foz do Amazonas tivesse proporcionalmente mais oxigênio pesado que a chuva de Mato Grosso e Rondônia, por exemplo. Só que as análises do espectrômetro mostraram que esse gradiente praticamente inexistia, e que a assinatura isotópica da água das chuvas era a mesma da água subterrânea da Amazônia.

A conclusão de Salati foi que a Amazônia “reciclava” a água: a umidade vinda do Atlântico desabava como chuva na floresta, era evaporada pelas árvores e formava novas nuvens, que iam chover mais ao sul, e assim sucessivamente. Metade da umidade da floresta vinha dessa reciclagem de chuvas. Uma mesma molécula de água era reciclada de cinco a oito vezes.

O trabalho era revolucionário. Salati explicou como funcionava o ciclo da água na maior floresta tropical do mundo e abriu uma avenida de estudos sobre para onde toda aquela umidade ia. Em 1984, ele próprio instalou sinalizações nessa estrada, ao sugerir que a remoção da floresta poderia impactar adversamente a agropecuária no Centro-Sul do Brasil ao cortar o transporte de umidade. Victoria conta que seu ex-professor, que tinha talento para simplificar coisas complicadas, explicava a descoberta com uma imagem: “Ele dizia que na Amazônia você tem um rio embaixo e um em cima [no céu], e os dois estão permanentemente em conexão.”

Um dos cientistas que seguiram a pista deixada por Salati e que acabou sem querer criando uma síntese ainda mais simples da ideia do mestre foi o estudante de meteorologia peruano José Marengo, hoje no Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). Ele nunca havia saído de Lima até o fim dos anos 1970, quando um de seus professores veio a Piracicaba e voltou ao Peru com o artigo de Salati debaixo do braço. Marengo ficou impressionado. “Esse paper [artigo científico] me inspirou a trabalhar na Amazônia”, conta.

Em 2004, então no Inpe, Marengo publicou um estudo caracterizando os chamados “jatos de baixa altitude”, correntes de umidade que saíam da Amazônia, batiam nos Andes, “faziam a curva” e levavam umidade até o rio da Prata. Pouco tempo depois, foi chamado por Salati, então na diretoria da FBDS (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável) e pelo aeronauta Gérard Moss para colaborar num projeto de Moss, com patrocínio da Petrobras, de seguir a trilha desses jatos num avião e mostrar como a Amazônia mandava umidade para a América do Sul.

“O Gérard é piloto, ele entende muito de meteorologia, mas não tanto da física. Eu expliquei para ele que o jato era como um rio voador, que se você converte em água tem volume equivalente ao do Amazonas em Óbidos [ponto mais largo do rio]”, recorda-se Marengo. A expressão “rios voadores” batizaria a expedição de Moss e se tornaria parte do léxico corrente da Amazônia.

Outro pesquisador que conviveu com Salati foi o também paulista Carlos Afonso Nobre. Em 1975, Nobre, então formado em engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, foi trabalhar em Manaus no Instituto de Pesquisas da Amazônia. Lá foi designado para apoiar Salati em projetos como a instalação da primeira torre de observações meteorológicas da Amazônia, no meio da floresta e acima da copa das árvores. Depois da experiência no Inpa, Nobre trocou a engenharia pela climatologia em seu doutorado, e tornou-se um dos maiores climatólogos do Brasil. “Ele me incentivou muito a fazer doutorado e me inspirou muito no começo da minha carreira.” Em 1990 e 1991, Nobre publicaria com dois colegas dois estudos também seminais mostrando que, num cenário de aquecimento global, a perda da “fábrica de chuvas” da floresta poderia levar a vegetação a um novo estado de equilíbrio no qual a selva tropical daria lugar a um tipo de savana empobrecida.

A partir dos anos 1990, Salati começou a estudar os efeitos das mudanças climáticas nas bacias hidrográficas brasileiras. Em parceria com a filha Eneida, José Marengo e outros colegas, o agrônomo publicou trabalhos sobre a disponibilidade hídrica futura nos principais rios do país. Estudou, ainda, coisas tão diversas quanto isótopos de carbono para entender nutrientes dos solos (e abriu mais um campo de pesquisa nessa área), geoquímica e energia solar. “Ele não tinha medo de mudança, sempre nos estimulou a fazer coisas novas”, diz Victoria.

Mas Salati não era apenas um teórico. Duas décadas atrás, desenhou um quebra-mar para o condomínio onde tinha uma casa em Ubatuba, litoral norte paulista, e entregou a proposta ao síndico. “Ele dizia que o mundo ia mudar e aquilo era para nos proteger da elevação do nível do mar”, conta o agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, da Fundação SOS Mata Atlântica, ex-vizinho e amigo da família. Salati também desenvolveu e patenteou um sistema baseado em filtragem por vegetação (wetlands) para ajudar na despoluição do rio Piracicaba, cujo mau cheiro chegava a seu escritório. E, por hobby, projetou uma escuna.

Eneas Salati foi diagnosticado com mal de Alzheimer leve quatro anos atrás. Parou de trabalhar, mas levava uma vida normal. Em agosto do ano passado, sofreu uma queda em casa, teve um hematoma encefálico e sua saúde se debilitou.

O pesquisador foi cremado e pediu que suas cinzas fossem espalhadas na Reserva Ducke, uma área de mata do Inpa perto de Manaus. Deixa a mulher, Theresinha Zurk Salati, os filhos Eneas, Eneida, Elisabeth e Eduardo, netos, bisnetos e tataranetos. (CLAUDIO ANGELO)

 

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