terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Vale: o dossiê Moçambique

 

Água e ar envenenados. Rios destruídos e, com eles, subsistência de comunidades. Acordos indenizatórios burlados. Repressão. Após explorar carvão por dez anos, mineradora retira-se em “lavagem verde” – mas não apaga rastro de dor

Em dezembro de 2021, a Vale S.A. anunciou um acordo vinculativo com a Vulcan Minerals – uma companhia que é parte do Grupo Jindal – para vender a mina de Moatize e o Corredor Logístico de Nacala por US$ 270 milhões. A transação só poderá ser concretizada após aprovação pelo governo de Moçambique, mas já foi festejado por veículos do mercado financeiro como Forbes e Bloomberg. O anúncio vem dar conclusão a outro feito um ano atrás, quando, após uma década de exploração de carvão em Moçambique, a Vale S.A. apresentou planos de se desfazer da mina de Moatize, que explora em sociedade com a Mitsui Corp.

A alegação da Vale é praticamente uma confissão do impacto que causou: em linguagem business, apresenta planos de “reduzir impactos ambientais” e se tornar “neutra em carbono” até 2050. Naquelas áreas de concessão detidas pela companhia transnacional na escaldante província de Tete, encontramos um problemático padrão de violência, usurpação de terras e morte que contradiz totalmente o que a empresa diz a respeito do seu carvão “de fonte responsável”.

A mina de Moatize foi oficialmente inaugurada em maio de 2011 e produz 11,3 milhões de toneladas de carvão por ano. No seu relatório anual de 2009, a Vale declarou que detinha 1.087 milhões de toneladas de recursos de carvão (tanto provados como prováveis), por todas as suas minas e projetos, dos quais 87% (954 milhões de toneladas) estavam localizados em Moatize. O relatório também apontava para 2046 como a data projetada para esgotamento do projeto.

Entre 2009 e 2010, a Vale reassentou 1.365 famílias – nos reassentamentos de Cateme e 25 de Setembro – para instalar a mina de Moatize. Ao longo do Corredor de Nacala, mais cerca de 2 mil famílias foram reassentadas. A maioria das famílias reassentadas pela Vale sobrevivia de agricultura de subsistência e criação de gado.

Os reassentamentos foram caracterizados por vários problemas já amplamente documentados, incluindo falta de segurança das casas (infraestrutura falha, sistemas elétrico e de esgoto mal feitos), e localização em terras que não permitem a prática da agricultura de subsistência (solos de má qualidade, terras distantes dos mercados e sem acesso à água). Não obstante estes problemas já terem sido denunciados pelas comunidades afetadas e por várias organizações a nível nacional e internacional, a grande maioria não foi resolvida até hoje.

A Polícia da República de Moçambique (PRM), incluindo a sua Unidade de Intervenção Rápida (UIR), tem sido “usada” pela Vale em diversas ocasiões para dispersar e reprimir pessoas que protestam contra a empresa, através de espancamentos e uso de balas de borracha e balas reais. Também têm feito detenções arbitrárias de oleiros, que até hoje esperam por compensação devido à perda dos seus meios de subsistência.

Para piorar ainda mais a situação, jornalistas locais afirmam que têm sido intimidados e ameaçados pelas autoridades locais – incluindo o Presidente do Conselho Municipal de Moatize, Carlos Portimão – para que não reportem sobre estes assuntos. “Se queres reportar sobre a Vale, fala com os seus diretores, não com os locais ou com os oleiros” – dizem os diretores de rádios locais aos seus repórteres.

Para dar espaço à mineração a céu aberto, as pessoas que viviam dentro da área de concessão foram “forçosamente removidas” das suas casas, das pequenas áreas agrícolas ou “machambas” que as alimentavam, dos rios que forneciam água e das margens dos rios onde produziam e comercializavam tijolos de barro para sobreviver. Hoje, “empurrados” para fora da vedação, estas pessoas, juntamente com dezenas de milhares de outros que já viviam nos arredores da mina, enfrentam uma dura realidade: já não há água. Os rios que antes forneciam água para agricultura, criação de gado e outras necessidades básicas, foram desviados para fornecer água à mina, poluídos pela mina, ou simplesmente aterrados por toneladas de areia – uma vergonhosa e descarada violação dos seus direitos humanos. Esses fatos foram amplamente denunciados, por exemplo: aqui e aqui.

Ao contrário do que se poderia pensar, o número de pessoas gravemente afetadas pela Vale vai muito além das famílias reassentadas e dos milhares de famílias que vivem em Bagamoyo, Nhantchere, Primeiro de Maio e Liberdade – os bairros que vivem nos arredores da mina, debaixo de uma permanente nuvem de poeira e o ruído das explosões, cujos habitantes estão sistematicamente doentes devido à poluição causada pela Vale. Os oleiros são um bom exemplo de outro grupo gravemente afetado. Ainda que a Vale tenha compensado alguns grupos de oleiros que foram obrigados a ceder as suas terras para a mineradora, ainda há muitos outros que não foram incluídos nos acordos.

 


 

Em 2019, por exemplo, quando a Vale começou a expansão para a Mina Moatize III, a mineradora cortou o acesso das comunidades de Primeiro de Maio, Liberdade e Paiol ao rio Moatize, afetando oleiros e camponeses. Desde então, várias reuniões foram realizadas entre as pessoas afetadas, a Vale e o governo, as quais temos acompanhado. Recentemente, a Vale mudou o discurso e passou a afirmar que não pagará mais compensações a oleiros. Enquanto este processo se vai arrastando, mais de 4 mil oleiros passam por muitas dificuldades para sustentar a si e suas famílias.

Na Província de Tete, com a conivência do governo de Moçambique, centenas de milhares de pessoas estão abandonadas à sua sorte, condenadas a viver num cerco letal de carvão por (pelo menos) 35 anos.

Chegada da Vale e a derrocada das comunidades

Zita, uma viúva de 40 e poucos anos de idade, conta que vivia com o seu marido Refo Agostinho – considerado por muitos o melhor oleiro de Moatize – antes de serem forçados a entregar as suas terras à Vale. Mãe de quatro filhos, o mais novo com oito anos, ela e o seu marido Refo tinham a olaria como fonte principal de rendimento. O dinheiro servia para alimentar os seus quatro filhos, pagar a escola e cobrir outras necessidades. “Todos eles cresceram sustentados com o dinheiro da olaria.”

Em 1993, na altura desempregados, sem ninguém que os pudesse apoiar e já com uma filha por criar (a mais velha), Zita e Refo decidiram que deviam fazer um plano de vida e assim garantir o sustento da sua família. Começaram então com o seu trabalho de olaria e produção de tijolos, na zona do lado do paiol, que conseguia render cerca de 30 mil meticais por mês ou mais, dependendo da época. Pouco depois, tiveram até que contratar mais trabalhadores.

“Primeiro tínhamos cinco trabalhadores, depois dez e depois quinze. O pagamento dependia do trabalho, da produção de cada um. Há quem conseguisse fazer 3 mil tijolos por dia, a custo [preço] de mil meticais ou 900. Com o dinheiro da olaria dava para comprar caril, também construímos a nossa própria casa, compramos carro. Refo também tinha outros negócios: montou moageiras, fazia soldadura e bate-chapa. O nosso carro, púnhamos à disposição dos clientes no transporte de tijolos que compravam aqui. Durante 20 anos desenvolvemos esta atividade”.

A história de Refo

“Refo perdeu a vida depois que as coisas mudaram. A Vale tirou-nos tudo. Em Chipanga, o terreno em si era grande, 1 hectare, é lá onde fazíamos tijolos, enquanto que a minha machamba estava em Canchoeiro. A Vale tirou-nos de lá mas não queria pagar pela interrupção das atividades, e nem indenização. Diziam que iam passar o processo X, posição X, mas estavam a negar dar dinheiro, sempre a falar mas sem solução, então eles [os oleiros] tinham que fazer manifestação para receber o dinheiro. Quando eles manifestam chega a polícia, intimida, levam ele para a cadeia. Ficou uma semana, saiu, e continuou a lutar até que a Vale indenizou. Não sei bem quanto dinheiro foi, mas ouvi falar de 60 mil meticais”.

Mas a vida do oleiro nunca mais foi a mesma. “Refo, depois de perder as suas terras começou a sentir dores de barriga, de estômago, ao mesmo tempo já a sentir dor de tensão, e com isso ele morreu. Eu fiquei a sustentar as crianças, vão todas à escola. Só dependo de uma única moagem, que o falecido deixou.”

Listas de levantamento das comunidades viciadas

Estávamos no distrito de Moatize, onde o representante da comissão de oleiros de Nhankweva, Nordino Timba Chaúque, desgastado com a mineradora, suas promessas e mais promessas feitas durante anos. “A empresa está a fazer coisas que a comunidade não gosta.”

Em 2020 iniciaram com o levantamento dos oleiros e camponeses de Nhankweva e outros bairros que deveriam ser indenizados, num processo ainda sem desfecho. “Desde longa data, aproximamos a Vale para podermos discutir sobre estes pagamentos. A empresa prometeu que iria pagar-nos a todos – um grupo de 571 oleiros, e cada um iria receber 125 mil meticais. Paralisamos as nossas atividades. Apenas pagaram as camionetas que estavam lá a retirar os tijolos do sítio onde eles ocuparam para outro lado. Não fomos indenizados.”

A mineradora disse às comunidades para lá voltarem no dia 22 de dezembro de 2021, mas nada resolvido, “a Vale diz que já não vai pagar nenhuma compensação. Cerca de 500 e tantas pessoas, cada uma recebeu 60 mil meticais para paralisar as suas atividades, mas ainda tinham que receber outros 125 mil, o valor da indenização. A Vale disse que já não nos reconhece e que não fazemos parte das listas de levantamento.”

“A Vale subcontratou uma empresa, a MP, para fazer o levantamento. Pessoas da empresa deles, treinadas, capacitadas para aquele trabalho. Mas depois a Vale, para atrasar ou não pagar, veio dizer que naquelas listas feitas pelos seus homens havia pessoas da comunidade infiltradas! A Vale começou a fazer o levantamento em Chipanga em 2009. Conhece toda a regra do trabalho. Nós não temos como dizer que tem pessoas infiltradas, porque ali tinha estruturas locais, técnicos do governo, e membros técnicos do município. Então a comunidade onde entra para dizer que tem pessoas infiltradas?! Toda a estrutura local de todos os bairros fazia o acompanhamento desse processo”, afirmou outro oleiro.

A Vale e o governo vão fazendo o seu pingue-pongue: “isto são manobras da Vale para não nos pagar. Eles é que faziam o cadastramento, mandaram os da MP fazer cadastramento. Então o número está exatamente com eles. Nós temos 3 mil pessoas [na nossa lista]”, dizem os presidentes das comissões de oleiros.

Antigos funcionários da MP confirmam que a Vale afirma ter 5 mil pessoas na sua lista, e acusa os funcionários de terem aumentado os números. Segundo eles, aquilo foi uma manobra da Vale para arrastar o processo. “Fomos até expulsos, confiscaram os nossos telefones privados, andaram a vasculhar, disseram que recebemos dinheiro para pôr mais pessoas, o que não é verdade.”

Desde 2008, pouco foi feito

Paulo Vítor Maferrano, de 41 anos de idade, residente de Chipanga, em Moatize, afirma que por mês conseguia fazer uns 30 mil meticais.

“Chipanga é a nossa área, que a mineradora foi ocupando depois de 2008. No começo, a Vale disse que não iria ocupar as terras de Chipanga. Pessoas que foram retiradas de outras zonas foram a Chipanga fazer suas machambas. Mas de repente a Vale também começou a retirar pessoas de Chipanga, então também já tinham que negociar com aquelas pessoas, pessoas que até agora no fim de 2021 ainda não foram indenizadas.”

A realidade de Paulo não difere de outros oleiros, também ficou sem a sua machamba, sem a olaria, a sua principal atividade. “Já tentamos remeter os documentos, fomos ao governo, e a Vale realmente disse que não nos podia pagar. Então tentamos recorrer a outras instâncias. (…) A Vale ficou com as nossas terras desde o mês de maio deste ano, 2021, são novas terras para onde a Vale está a expandir. Nem a empresa nem nós sabemos a dimensão da concessão da mina. Quando a Vale veio, disseram que primeiro iam nos dar 60 mil meticais para sairmos das nossas machambas, paralisação imediata das nossas atividades, e que depois iriam nos dar 125 mil meticais de indenização. Mas até agora não nos deram nada.”

Violência policial contra os oleiros e as comunidades locais

Os casos de violência policial protagonizados pelas forças do Estado na proteção dos interesses da mineradora remontam ao início do projeto. Pessoas detidas, espancadas, baleadas com balas de borracha e por vezes balas reais, uso de gás lacrimogênio contra cidadãos, mulheres grávidas e crianças.

A 20 de novembro de 2021, quatro membros da comunidade de Nhantchere que têm estado a representar as famílias cujas casas estão rachadas pelas explosões da mina foram detidos injustamente, tendo permanecido na prisão durante três dias. Pouco depois, a 23 de dezembro, outros dois oleiros ficaram detidos por cinco dias, durante uma reunião em que debatiam com a comunidade o que fariam a respeito da recusa da Vale em pagar compensações aos oleiros e camponeses desapropriados pela empresa. Os membros das comunidades que têm tido um papel de liderança nos processos de negociações com a Vale têm sofrido inúmeras represálias e intimidação crescente, incluindo detenções arbitrárias e ilegais.

Baleado dentro de sua própria casa

No dia 6 de maio de 2021, e fatigados com o fato de que a Vale não parecia estar interessada em resolver as compensações e indenizações a pessoas do bairro de Primeiro de Maio que perderam a terra e o acesso ao rio, um grupo de oleiros e camponeses ocupou a Seção 6 da mina da Vale e bloqueou a rodovia mineira, exigindo respostas da empresa. Esta manifestação terminou de forma pacífica, quando oleiros entraram em acordo com representantes da Vale e do governo que se dirigiram ao local, e combinaram que o assunto seria debatido no dia seguinte com toda a comunidade, na praça do bairro.

Mas a reunião do dia 7 de maio de 2021, na praça do bairro Primeiro de Maio, foi uma “emboscada” de (des)concertação montada pela Vale e o governo local. Os representantes da Vale e do governo local não se fizeram ao local, quem se encarregou do evento foram os agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) e da polícia, que decidiram intervir para reprimir a comunidade que exigia os seus direitos. O relato do agricultor e secretário da comissão de camponeses, Fernando Botão, sobre o ocorrido pode ser visto no vídeo a seguir

 


Vasco, estava em casa. Na praça mesmo ao lado da sua casa, a população estava concentrada para ver que solução a empresa e o governo teriam para as suas machambas destruídas e terras perdidas. A estrutura do bairro fizera questão de convocar todas as pessoas da comunidade, para que aguardassem a chegada dos representantes do governo e da Vale.

“De repente vimos a UIR, houve disparos, lançaram gás lacrimogênio, as pessoas corriam de um lado para o outro, então pensei em levar o meu filho de 6 anos da escola para casa. Quando chego em casa ponho o meu filho dentro de casa e fecho a porta. Então, como sempre que eles têm reunião aqui na sede costumam vir pedir emprestadas as minhas cadeiras aqui em casa, e naquele dia eu havia emprestado as cadeiras ao meu vizinho. Naquele dia o vizinho, com toda aquela agitação, vinha devolver as cadeiras. Ele bateu à porta, eu espreitei pela janela e apenas vi a ele. Eu não sabia que ele vinha acompanhado com um homem da UIR. Quando abro a porta para receber as cadeiras, antes de receber as cadeiras apanho uma bala na barriga, sem nenhuma pergunta nem nada, apenas disse ‘são esses agitadores’ e disparou a arma para mim.”

A narrativa de Vasco prossegue: “Dali comecei a passar mal. Como estava com o meu filho de 6 anos, lá dentro o meu filho conseguiu tirar o meu telefone que estava no bolso e ligou para a mãe a informar que aqui a situação não estava bem. A mãe ligou para um taxista e conseguiram levar-me ao hospital local, mas devido à grave situação tive que ser urgentemente transferido para o hospital da cidade [de Tete], onde encontrei um médico que me atendeu com rapidez. Se não tivesse sido rápido, não sei o que teria acontecido. Cheguei inconsciente e dali só despertei depois da operação. Apanhei uma ligadura na barriga, quando procurei saber fui informado que me operaram na barriga e que tinha sujidade por dentro. Eles tiveram que operar para tirar a sujidade dali, fiquei de baixa no hospital por sete dias.”

Vasco tinha partículas pretas dentro do corpo – “sujidade”. “Sim, até que o médico, foi ele que me informou. Foi por causa da bala que recebi na barriga. Até pode ser por causa da poeira que inalamos todos os dias.”

Vasco, na altura desempregado, estava a concorrer a uma vaga de emprego. “Chamaram-me e eu ainda estava no hospital, por não estar em condições pedi-lhes que me dessem uma semana e aceitaram.” Ainda debilitado do baleamento e da cirurgia, foi chamado para uma entrevista. Na altura sem escolha, e depois de muito tempo à procura de emprego, decidiu que, débil ou não, teria que se fazer presente à entrevista. “Foi triste. Fui chamado, e tinha que fazer um esforço para ver se enquanto sara o ferimento eu já vou ganhando pão aos poucos. Fui lá mas ainda não estava recuperado.”

Enquanto Vasco estava no hospital, a sua esposa sustentava os filhos com a venda de bolinhos e pequenos negócios que faz em casa. Vasco não consegue fazer trabalhos como capinar ou carregar água, e no trabalho tem que fazer manobras com o cinto de segurança da viatura.

“Quando ponho o cinto de segurança, passa aqui na barriga, quando há mudanças de temperatura ou quando está para chover tenho sentido dores. As pessoas que fizeram isso comigo não foram responsabilizadas, o próprio governo teve conhecimento, nenhum deles esteve aqui pelo menos para saber como eu estava a passar nesses dias, até agora não tenho qualquer informação ou resposta deles.”

Vale processada

Pelo menos dois casos foram abertos contra a mineradora Vale Moçambique para tentar aceder a informações de interesse público, sendo um pela organização não governamental Justiça Ambiental (JA!) e o outro pela Ordem dos Advogados de Mocambique (OAM).

A JA! exigiu “a disponibilização dos relatórios de monitoria ambiental da Vale entre 2013 e 2020, pois são documentos públicos que devem ser de amplo conhecimento, em especial, das comunidades que convivem diariamente com as operações da Vale.”

A Vale diz ser uma “empresa transparente” mas nega o acesso a documentos de interesse público, tentando argumentar de diversas formas contra as decisões do tribunal que por mais de uma vez deram razão à JA! e à OAM. No recurso interposto pela mineradora, a Vale defendeu que “dúvidas não subsistem que os relatórios contendo informação solicitada pela requerente […] são de natureza confidencial”.

Este argumento foi rebatido pela (JA), que não arredou o pé do chão.

O Tribunal Administrativo, através do Acórdão n.º 130/2020, de 30 de dezembro de 2020, referente ao processo n.º 26/2020 – 1ª, deu razão à organização da sociedade civil, concluindo que “a informação pretendida não pode ser classificada como confidencial” uma vez que “tem a ver com as operações mineiras, nomeadamente, se elas são ou não prejudiciais ao meio ambiente” e reiterou ainda que “a Constituição da República define o ambiente como direito do cidadão e determina deveres de todos para com este direito”. Mais uma vez, a Vale recorreu a esta decisão.

A OAM, por sua vez, requereu ao tribunal para intimar a mineradora Vale Moçambique S.A., para disponibilizar diversas informações de interesse público, incluindo os Memorandos de Entendimento e demais acordos firmados entre o governo, a Vale Moçambique e as comunidades afetadas; informação referente ao valor total dos impostos pagos pela Vale ao Estado Moçambicano; informações sobre os processos de reassentamento em curso; entre outros.

O Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo deu razão à OAM e intimou a Vale a disponibilizar a informação em causa. Inconformada com esta decisão, a Vale interpôs recurso. Tramitado o processo e analisadas as alegações e contra-alegações apresentadas, os juízes conselheiros da Primeira Seção do Tribunal Administrativo, através do Acórdão n.º 119/2020, de 15 de dezembro de 2020, referente ao processo n.º 131/2020 – 1ª, decidiram negar provimento ao recurso interposto por esta mineradora, por falta de fundamento legal para reverter a decisão recorrida, e concordaram com a decisão anterior que condenara a Vale por violação do direito à informação de interesse público.

A postura da mineradora Vale S.A. (e a Vale Moçambique não é exceção) em relação a fornecer informação relevante sobre os seus impactos é bem conhecida. Publicamente, e em reuniões, dizem sempre que estão disponíveis para prestar qualquer informação solicitada pelos cidadãos e organizações da sociedade civil, mas nunca o fazem.

Em abril de 2021, durante a Assembleia Geral de Acionistas da Vale S.A. no Rio de Janeiro, Brasil, alguns acionistas da empresa votaram pela não aprovação do relatório da administração, uma vez que omitia informações importantes sobre o empreendimento em Moçambique. Estes acionistas também solicitaram inúmeros documentos de interesse público, inclusive os documentos solicitados pelas organizações da sociedade civil moçambicana a respeito das atividades da Vale Moçambique em Moatize. Executivos sêniores da empresa comprometeram-se a enviar os documentos solicitados, e também estas promessas não foram cumpridas.

Não obstante tanta relutância em informar o público em geral sobre os reais impactos das suas atividades, a empresa Vale esforça-se em lavar a sua imagem e alega constantemente ser uma empresa transparente, ética e íntegra.

Contínua e sistemática violação de direitos humanos

Pelos céus de Moatize, nuvens negras espessas cobrem os céus a cada momento que as dinamites são rebentadas na mina. O ar é poluído, as superfícies estão sempre cobertas por uma poeira preta, e já não se pode deixar a farinha de milho a secar ao ar livre. Mais poeira vem da estrada, causada pelos camiões da Vale quando circulam.

Há muita falta de água, e a que sai das torneiras sai preta como carvão. A empresa fechou, desviou, interrompeu ou poluiu os rios que alimentavam milhares de pessoas. Animais e plantas também sofrem. O gado ficou sem pasto e vai sobrevivendo do lixo das lixeiras espalhadas pela cidade de Moatize. Caminhando pela cidade até se pode confundir, e pensar que os cães têm dimensões fora do normal, com coleira e tudo. Mas não, é gado bovino tornado vira-lata.

Com as explosões violentas e quase diárias nas minas de Moatize, mais de mil casas nos bairros de Primeiro de Maio, Nhantchere, Liberdade e Bagamoyo têm rachaduras nas paredes, e muitas já desabaram. Estas rachaduras nas casas dos bairros vizinhos da mina da Vale também já se tornaram marca registada da empresa no local. As famílias afetadas estão há anos a exigir compensação por estes danos e um reassentamento condigno num local onde não tenham que conviver com esta situação.

Os arredores da mina da Vale estão também repletos de histórias trágicas que mostram a verdadeira face do dito “desenvolvimento”.

Em setembro de 2014, a pequena Ester do bairro Primeiro de Maio perdeu a vida, enquanto brincava num buraco aberto pela Vale e foi soterrada com areia despejada por um caminhão basculante contratado também pela mineradora. Tudo o que a Vale fez foi dar 5 mil meticais à família da criança, para apoiar com as cerimônias fúnebres. Em novembro de 2020, em Cateme, uma criança morreu e outras quatro ficaram gravemente feridas quando brincavam na área de machamba do seu avô, dentro do reassentamento construído pela Vale. As crianças encontraram um objeto enterrado: uma antiga mina de guerra que explodiu. Outro caso trágico diz respeito a um grupo de crianças que estava a tomar banho num buraco aberto e abandonado pela Vale, que se enchera de água na época das chuvas. Duas crianças morreram afogadas porque não sabiam que o buraco era tão fundo. Nem a empresa Vale nem o governo se responsabilizaram por qualquer um destes casos.

Níveis elevadíssimos de poluição e um atentado à saúde pública

“Aqui as pessoas quando tossem saem coisas pretas, e os médicos disseram que é da poeira da mina. A Vale, a equipa do hospital e o governo, durante uma semana, vieram fazer testes às pessoas. Viram que tinham tosse, e que estavam a tirar coisas pretas. Daí a empresa nunca mais veio para aqui para nos dar resposta”, disse um dos membros da comunidade.

Os níveis de poluição da água e ar em Moatize põem em risco milhares de pessoas, muitas delas acabam por ir parar aos hospitais com problemas respiratórios, tosse aguda, tuberculose. Mas para a mineradora apenas importa o lucro. Em 2021, a situação de poluição em Moatize agudizou-se.

Segundo análises laboratoriais feitas à água (bairro Liberdade) por solicitação da organização Justiça Ambiental, só em 2021 os resultados da poluição da água e do ar estão três vezes acima dos limites nacionais e internacionais estabelecidos por lei. Foram, por exemplo, registados níveis de Cádmio (Cd) de 0,009 mg/l na área de concessão da Vale, enquanto que os níveis considerados admissíveis por Moçambique e pela Organização Mundial de Saúde são de 0,003 mg/l. O cádmio é um metal pesado que produz danos ao sistema nervoso e pode provocar distúrbios no desenvolvimento fetal, mesmo em concentrações reduzidas.

Segundo fontes hospitalares, o maior número de pessoas atendidas no Hospital de Moatize são diagnosticadas com tuberculose.

“A cada dia que passa, aqui no hospital, nós recebemos um número maior de pessoas que acusam tuberculose devido à poluição causada pela Vale aqui em Moatize. A poluição está a afetar muita gente, esta empresa está a fazer-nos mal, mesmo eu estou a passar mal. Vi muitas pessoas a consumir água suja do rio, a água já não está a vir como vinha. Com a Seção 6 que a Vale abriu agora, toda a sujidade, químicos que saem da empresa, vêm desaguar no rio Moatize, até onde vai desaguar o rio Revúboé. Isto está mal.”

 

https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/vale-o-dossie-mocambique/

 

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