Enquanto medicamentos sem eficácia como os do kit covid são vendidos sem ICMS ou tarifas de importação, reduzindo repasses aos Estados e municípios, tratamentos novos com base científica ainda não contam com redução de impostos
Medicamentos como a cloroquina e a ivermectina, que foram largamente usados no Brasil no tratamento da Covid-19
por incentivo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), continuam recebendo
benefícios fiscais concedidos a produtos de combate ao coronavírus,
embora sejam inúteis contra a doença. As desonerações, que afetam
impostos da União e dos Estados, não estão vinculadas ao decreto de
emergência sanitária do Ministério da Saúde e, mesmo com o anúncio do
fim da pandemia, continuarão válidas até que sejam revogadas.
O caso chama atenção porque drogas comprovadamente eficazes contra a
Covid não recebem tais benefícios. Sem isenções, remédios úteis como o
baricitinibe e o paxlovid, que estão começando a chegar ao SUS, vão
custar mais ao ministério e às secretarias de Saúde e também aos
pacientes da rede privada.
A cloroquina e a azitromicina, que fazem parte do chamado kit Covid – uma cesta de produtos ineficazes que foi o carro-chefe da gestão Bolsonaro no combate à pandemia – estão isentas do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) desde julho de 2020, como forma de “prevenção ao contágio e enfrentamento à pandemia”. A desoneração vai até abril de 2024.
Os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de 20 Estados mantêm isenção fiscal para tratamentos ineficazes contra o coronavírus, mas não para medicamentos que realmente funcionam (Foto: Carolina Antunes/PR) |
A medida vale em 20 estados e já foi prorrogada três vezes pelo
Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), a última delas em outubro.
O órgão é formado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelos
secretários estaduais de finanças. Os convênios firmados devem ser
posteriormente aprovados pelos legislativos estaduais para entrar em
vigor, já que os recursos do ICMS são destinados aos cofres dos Estados.
O acordo concede tarifa zero de circulação a medicamentos contendo
cloroquina e hidroxicloroquina, que são eficazes contra malária e lúpus,
mas não contra o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid, assim como o
antibiótico azitromicina, eficiente contra bactérias, não vírus.
Procurado, o Ministério da Economia afirmou que a isenção foi proposta e aprovada pelas secretarias estaduais, que a lista de medicamentos é “responsabilidade das unidades federadas” e que desconhece o montante que deixou de ser arrecadado (veja a íntegra da resposta).
O comitê nacional dos secretários estaduais de finanças (Comsefaz) também não revelou os valores. André Horta, diretor do comitê, informou à Repórter Brasil que a lista de produtos repete os mesmos itens desonerados pelo Ministério da Economia. Ele disse ainda que o convênio foi aprovado de forma unânime pelos Estados e que só poderá ser revogado quando perder a validade, em 2024. “Já os novos medicamentos ainda não foram desonerados pois não houve proposta até o momento”, afirma.
“Qual a lógica dessas desonerações fiscais?”, questiona a
pesquisadora Maria Angélica Borges dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), especialista em economia da saúde. “Em nome da saúde é muito
fácil aprovar medidas como essas, pois a ameaça à vida é um argumento
central. Mas esse apelo pode facilitar as más práticas”, diz.
“É difícil justificar a isenção para um medicamento sem comprovação
científica”, critica Francelino Valença, diretor da Fenafisco, entidade
que representa os fiscais tributários estaduais.
Aparelhos de ozonioterapia também estão isentos de ICMS. Trata-se de uma terapia experimental que tem registro na Anvisa apenas para procedimentos estéticos e odontológicos.
Porém, durante a pandemia, foi aplicada no tratamento da Covid, mesmo
sem comprovação científica, a partir da aplicação de ozônio via retal.
Defensores da prática chegaram a ser recebidos pelo então ministro da Saúde Eduardo Pazuello para tratar de sua adoção no SUS.
A lista de isenção conta também com produtos importantes para enfrentar a Covid, como luvas, máscaras, seringas, agulhas, aparelhos de Ecmo (que funcionam como um pulmão artificial), kits de intubação e ventiladores pulmonares.
Importação livre
Além do ICMS, os remédios à base de cloroquina estão isentos de
tarifas de importação desde março de 2020, juntamente com outros
produtos ineficazes do kit Covid, como ivermectina e nitazoxanida. “Com o
objetivo de facilitar o combate ao coronavírus, zeramos o Imposto de
Importação da cloroquina e da azitromicina, para uso exclusivo de
hospitais em pacientes em estado crítico. Essa redução também se estende
a outros produtos e vai fazer toda a diferença em nossa luta!”, afirmou Bolsonaro à época.
A medida é assinada pela Câmara de Comércio Exterior (Camex), do
Ministério da Economia, e já foi prorrogada cinco vezes – a última delas
em novembro passado, quando a taxa zero foi estendida até junho de
2022.
A lista da Camex tem 533 produtos isentos e foi atualizada pela última vez em 1º de abril de 2022,
sem, no entanto, que a cloroquina e a ivermectina fossem retiradas. Com
isso, as drogas do kit Covid gozam de tarifa de importação zerada,
assim como itens essenciais ao tratamento, como oxigênio medicinal,
anestésicos, analgésicos, luvas, máscaras e kits de diagnóstico.
Após a publicação da reportagem, o Ministério da Economia enviou nota
informando que a lista de produtos foi elaborada pelo Ministério da
Saúde e que a Camex ainda está debatendo se as desonerações do imposto
de importação serão mantidas. Quanto ao medicamento baricitinibe,
recentemente incorporado ao SUS, a pasta diz que está em vias de entrar
para a lista Covid e receber a isenção.
A pesquisadora da Fiocruz ressalta que o imposto de importação
corresponde a menos de 1% no preço final dos medicamentos, enquanto o
ICMS chega a 14%, segundo dados da Conta-Satélite de Saúde de 2019. “O
que garante que a isenção fiscal promova o acesso?”, questiona Santos.
“Como o preço final dos medicamentos é proposto pela empresa, a margem
sem imposto pode ser embutida no produto até onde o consumidor aguentar
pagar e a legislação permitir, o que é prática habitual no setor”,
completa.
“Quando o governo federal retira o imposto da cloroquina e da
ivermectina, ele diminui também os repasses para Estados e municípios”,
afirma o diretor da Fenafisco.
Com o incentivo do governo Bolsonaro, a ivermectina tornou-se um dos
remédios mais vendidos do Brasil: foi o quarto mais comercializado em
2020, segundo dados da consultoria IQVIA, alcançando a mesma posição em
2021, quando 45,1 milhões de unidades foram vendidas.
Por outro lado, drogas realmente eficazes contra a Covid são
comercializadas há vários meses sem os incentivos. O baricitinibe, por
exemplo, que acaba de ser incorporado ao SUS, tem aval da Anvisa desde
setembro para tratar pacientes graves de Covid, mas não consta da lista
do Confaz nem da Camex. O tocilizumabe, que é usado fora da bula em
serviços privados, também não recebeu incentivos. Apenas o rendesivir,
primeira droga anti-Covid a chegar ao Brasil, conta com isenção fiscal,
mas somente do imposto de importação, e não de ICMS.
Leia também: Com lentidão do governo, pacientes do SUS ficam sem acesso a remédios eficazes contra Covid
Com as regras atuais, o Ministério da Saúde vai pagar mais para
oferecer o baricitinibe no SUS, medicação indicada apenas para pacientes
graves. Segundo a farmacêutica Lilly, cada comprimido ofertado ao
governo federal custa R$ 27,22 sem ICMS e PIS/Cofins, ou R$ 37,72, com
os impostos.
Mas, no ano passado, a pasta adquiriu esta medicação para o
tratamento da artrite reumatoide (sua indicação original na bula) por R$
32,80 a unidade (sem PIS/Cofins, mas com ICMS). Dos 530 mil comprimidos
comprados, 400 mil já foram entregues. É deste estoque que devem sair
as primeiras pílulas para o tratamento da Covid no SUS. Por este preço, o
custo total do tratamento (feito com uma pílula diária por 14 dias) sai
por R$ 459, quando poderia custar R$ 381.
A Lilly diz que ainda não foi procurada pela Saúde para negociar a
venda de novos lotes e que a incidência de impostos no preço será
discutida só em caso de nova compra.
Um comentário:
O negacionismo e a política genocida deste desgoverno persistem em toda impunidade! E este benefício de isenção de remédios ineficazes vai p/os amigos da quadrilha? Lamentável estas ações que passam impunemente, sem controle nenhum, depois de uma CPI da covid que provou tanto descaso e falcatruas!
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