quinta-feira, 21 de julho de 2022

A responsabilidade penal dos veículos de imprensa nos casos de exposição ilegal da vítima em crimes sexuais

 

Ao veicular matéria nos meios de comunicação, as emissoras, sites, portais e veículos de informação em geral cometem crime?



Publicado por Henrique Matos

Os crimes de cunho sexual tomaram um panorama diferente nos últimos anos, sendo necessário novas formas de interpretar esses delitos e incluí-los na legislação de forma a punir e desestimular tais condutas. Porém, além dos crimes sexuais cometidos pelo autor contra a vítima, uma nova forma de delito vêm se tornando uma ameaça ao direito da Dignidade da Pessoa Humana e a Privacidade, a super exposição causada pela mídia.

OS CRIMES SEXUAIS

Os crimes de cunho sexual são pontualmente abordados no Código Penal brasileiro em seu título VI, que fala dos "Crimes Contra à Dignidade Sexual" abordando à partir do art. 213 até o art. 234-B, sendo divididos em "Crimes contra a Liberdade Sexual" que inclui os crimes:

1. Estupro (Art. 213, Código Penal);
2. Violação Sexual mediante Fraude (Art. 215, Código Penal);
3. Importunação Sexual (Art. 215-A, Código Penal - Incluído pela Lei 13.718 de 2018);
4. Assédio Sexual (Art. 216-A, Código Penal);

Após, o Capítulo I-A aborda o crime de Exposição da Intimidade Sexual no art. 216-B.

O Capítulo II aborda os Crimes Sexuais cometidos contra vulneráveis, elencando tais crimes da seguinte forma:

1. Estupro de Vulnerável (art. 217-A, Código Penal);
2. Corrupção de Menores (art. 218, Código Penal);
3. Satisfação da Lascívia mediante presença de Criança ou Adolescente (art. 218-A, Código Penal);
4. Favorecimento da Exploração Sexual de Menores (art. 218-B, Código Penal);
5. Pornografia de Vingança (art. 218-C, Código Penal - Incluído pela Lei 13.718 de 2018);
6. Estupro Coletivo - Causa de aumento de pena (art. 226, IV, a, Código Penal - Incluído pela Lei 13.718 de 2018);
7. Estupro Corretivo - Causa de aumento de pena (art. 226, IV, b, Código Penal - Incluído pela Lei 13.718 de 2018);

À partir do Capítulo V, o Código Penal passa a abordar os Crimes cometidos para fins de Exploração Sexual em geral:

1. Mediação para Satisfação da Lascívia de Outrem (art. 227, Código Penal);
2. Favorecimento à Exploração Sexual (art. 228, Código Penal);
3. Casa de Prostituição (art. 229, Código Penal);
4. Rufianismo - cafetão/cafetina - (art. 230, Código Penal);
5. Promoção de Migração Ilegal (art. 232-A, Código Penal;)

O Capítulo VI trata do "atentado violento ao pudor público":

1. Ato Obsceno (art. 233, Código Penal);
2. Escrito ou Objeto Obsceno (art. 234, Código Penal);

E com os artigos das disposições gerais (art. 234-A e B), o título tem seu fim.

Apesar de toda regulamentação e as punições severas, além da super exposição do criminoso, garantindo uma "reputação" a ele, os crimes sexuais apenas ficam mais comuns.


[Para saber mais de crimes de cunho sexuais recentes cometidos no contexto da Lei de Importunação Sexual, recomendo a leitura dos artigos sobre as novidades dessa lei aqui na minha página!]

Mais recentemente, o Brasil se chocou com a notícia do médico anestesista que, durante uma cirurgia de parto à cesariana, introduziu seu penis na boca da paciente para satisfazer sua lascívia.

FONTE: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/07/15/anestesista-flagrado-em-estupro-de-mulher-...

Segundo as autoridades, o médico já tinha outras passagens por assédio e já teria estuprado outras pessoas.

Considerado o estado de sedação da paciente e a introdução do pênis do autor na boca da vítima, o tipo penal correto a ser tratado é o de Estupro de Vulnerável (art. 217-A, Código Penal), tendo sido filmado por colegas, foi preso em flagrante.

Seguindo a notícia que deixou todo a sociedade civil perplexa com a tamanha abominação, muitos veículos de informação prontamente se dedicaram a noticiar o fato de todas as formas possíveis.

Mais relevante foi a maneira como a emissora "Jovem Pan" que não só noticiou o fato como também disponibilizou o vídeo gravado pelas enfermeira em que o autor do crime comete o estupro e, o que ficou mais evidente, é a ausência de meio que impossibilite a identificação da vítima, o vídeo foi passado sem nenhum tipo de tarja ou censura.

FONTE: https://www.uol.com.br/splash/colunas/fefito/2022/07/13/jovem-panedenunciada-na-justiça-por-exibir...

A Lei de Importunação Sexual, nº 13.718 de 24 de Setembro de 2018.

A Lei de Importunações Sexuais, aprovada em 2018, trouxe inúmeras novidades ao ordenamento jurídico, sendo elas (como já citadas em outros artigos), os crimes de Importunação Sexual, Pornografia de Vingança, Estupro Coletivo e Estupro Corretivo.

Ao analisar com mais cuidado, especificamente o crime apelidado de Pornografia de Vingança, encontramos uma série de verbos e elementos do crime que podem ser observado, vejamos:

Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Ao veicular o vídeo original do ato criminoso, identificando o autor do crime e a vítima, sem tarja ou censura, a emissora teria cometido crime de Divulgação de Cena Estupro de Vulnerável, nos termos do art. 217-A do Código Penal.

Observa-se que o vídeo em questão não conta com nenhum tipo de artifício que impossibilite a identificação da vítima e, como a emissora logo tirou do ar o referido vídeo, inclusive de suas redes sociais, isso reforça a ideia de que a emissora não tinha autorização para divulgá-lo.

O referido artigo do Código Penal ainda prevê a possibilidade de uma excludente de ilicitude:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
[...]
Exclusão de ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.”

Não sendo identificados os requisitos da excludente de ilicitude, resta ilícito o ato e, portanto, fato típico, antijurídico, culpável, punível e é dever do poder público garantir a punição, tanto ao agente criminoso quanto à emissora que divulgou as cenas, afrontando claramente contra a Dignidade da Pessoa Humana.

Segundo à coluna, uma mulher entrou com queixa-crime ao ver as imagens, ao passo que tal procedimento foi protocolado pelo Ministério Público e até o momento da publicação deste artigo, não houve resposta se o fato será processado como crime ou não.

Nos distanciando do mérito da possível ação penal, nos foquemos na competência para sua abertura:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.

A Lei cuidou de definir que o respectivo processo penal se procede mediante Ação Penal Pública Incondicionada, o que significa que, a grosso modo, ao receber a noticia crime, a autoridade não pode se omitir de processar o fato como crime.


A Dignidade da Pessoa Humana

Devidamente elencado como um dos direitos fundamentais de todo cidadão em território nacional, a dignidade da pessoa humana é a base para muitos outros direitos que advém dele como, por exemplo, o direito ao trabalho e remuneração digna, moradia, alimentação, educação, saúde e segurança públicas de qualidade, liberdade de expressão, liberdade religiosa etc.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;

Sendo tratado de diversas formas diferentes por muitos autores, a Dignidade é o tema central de praticamente todo o conceito de "direito". Nas palavras do Ministro Alexandre de Morais, a dignidade é:

Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade” (MORAIS, 2017)

Dessa forma, o direito à Dignidade é principio norteador de todo o ordenamento jurídico e, sendo assim, não pode ser violado ou ameaçado, o que ocorre quando um vídeo é veiculado em redes de comunicação, onde é possível obter elementos que identificam a vítima de um Crime contra a Dignidade Sexual.


A Responsabilidade de Veículos de Mídia nos Casos de Super Exposição da Vítima de Crime Sexual.

Como já abordado, a mera divulgação das imagens sem prévia autorização da vítima e tomar providencias para que seja impossível identificar a vítima, é crime previsto no Código Penal, que se procede mediante Ação Penal Pública Incondicionada e punível o responsável com pena de reclusão de 1 à 5 anos.

Porém, não há prejuízo de ação civil uma vez que trata de direito da personalidade, a sua privacidade (art. , X, CF) e a Dignidade da Pessoa Humana (art. , III, CF).

Art.  A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Art.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Não obstante a previsão constitucional para tanto, ainda há a previsão legal no Código Civil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Não havendo quaisquer dúvidas da ilicitude do ato, não se pode duvidar também do respectivo direito à indenização por danos morais.

Caso ainda reste qualquer dúvida se a conduta da emissora é punível, ainda buscamos mais informações na Constituição Federal de 1988:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Sobre fato, destaca-se o seguinte julgado:

"Os fatos narrados, nos autos, evidenciam o confronto entre dois direitos fundamentais protegidos pela Constituição da Republica de 1988, quais sejam, de um lado, a honra e a imagem do indivíduo; do outro, a liberdade de informação e expressão. () Presente a violação a direito da personalidade, causada por abuso no exercício da liberdade de expressão e informação, a reparação do dano correspondente mostra-se imperativa.” (STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 646671 Min Carmem Lúcia, j 21/05/2013)

E mais regionalmente, a decisão do Desembargador Vitor Ferreira em acórdão que trata dos limites ao direito de informar, explicita os cuidados citados:

“A atividade jornalística deve ser livre para informar a sociedade acerca de fatos cotidianos de interesse público, em observância ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito; contudo, o direito de informação não é absoluto, vedando-se a divulgação de notícias falaciosas, que exponham indevidamente a intimidade ou acarretem danos à honra e à imagem dos indivíduos, em ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.” ( Embargos Infringentes n. 2011.052587-4, Florianópolis, j 21 /10/ 201, Relator Designado: Des. Victor Ferreira)


CONCLUSÃO

Sendo assim, não resta dúvida de que a atuação de emissoras de rádio e televisão devem respeitar os princípios da dignidade da pessoa humana, respeito à honra, dignidade, a imagem do indivíduo e sua privacidade sendo a sua violação punível com indenização por danos morais além de eventual punição criminal ao responsável.

É de responsabilidade do Ministério Público se manifestar à respeito do caso tratado de modo a criar o precedente de prevenção de tais violações, se posicionando de forma firme e inequívoca contra à divulgação de cenas de sexo, pornografia, estupro ou estupro de vulnerável, apologia ao estupro ou ao estupro de vulnerável, sem prévia autorização da vítima e tomando as providência para impossibilitar e afastar elementos que tornem possível o reconhecimento e constrangimento da vítima.

BIBLIOGRAFIA:

BRITO, Allan da Silva Américo de. FALCÃO, Luiz Henrique. DIREITO E COMUNICAÇÃO: A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS EMISSORAS DE TELEVISÃO – PROGRAMAS SENSACIONALISTAS. Revista Unifacs. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/3239/2320.Acesso em 05 de julho de 2022.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33ª ed. São Paulo. Atlas, 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.


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