anais do babaçu
Com mudanças culturais e avanço do agronegócio na floresta de palmeiras, mulheres do babaçu vivem fim de uma era
Piauí | Vitória Pilar | 20 jul 2022_15h52
De cócoras ou sentada no chão, as mulheres cantam, conversam e quebram coco babaçu nos seus quintais – Foto: Vitória Pilar |
A filha de Eliza Sousa é quebradeira de coco. Layane Alves, tem 30 anos e é conhecida como uma das quebradeiras mais jovens da região. Diferente da mãe e da avó, ela não aprendeu a quebrar coco nas florestas, mas nos quintais de casa. E é nos quintais que Layane e um grupo de cerca de trinta mulheres – a maioria quase vinte anos mais velha que ela – se reúne para quebrar o coco e fazer o azeite.
De cócoras ou sentada no chão, as mulheres cantam, conversam e quebram coco babaçu nos seus quintais – Foto: Vitória Pilar |
Quebrar o coco babaçu é um trabalho que exige ao mesmo tempo força e delicadeza. As mulheres sentam no chão, de cócoras ou curvadas, firmando o machado rente ao chão, com a lâmina para cima. O coco, bem menor que um coco-da-praia, fica encaixado no ferro da machadinha, onde recebe marretadas até se partir ao meio e revelar as amêndoas. Um golpe errado, muito forte, pode provocar um acidente. Não é incomum perceber cicatrizes nas mãos e nos dedos das mulheres. Se muito fraco, a quebradeira leva o dobro do tempo para terminar o trabalho. Layane é habilidosa com o machado. Sentada no chão, de cócoras, e com algumas marretadas fortes, consegue tirar os frutos de dentro do coco. A agilidade rende elogios das mais velhas e a admiração da mãe. “Tem gente que fica impressionada com o tanto que eu quebro em um dia só”, revelando conseguir quebrar quase 10 kg por dia. “Na carreira de quebradeira, eu me dou bem”, conta à piauí, entre sorrisos.
Enquanto quebram coco, as mulheres relembram “causos” do passado. A história das quebradeiras de coco do Zundão se confunde com a do lugar. Os Camilos que dão nome à região seriam uma família precursora a desbravar as florestas de babaçu. “Ninguém sabe direito, mas a partir da década de 1940 eles iam construindo casinhas e dando pra quem chegava”, lembra Maria Cleidinar Moreira, de 51 anos, também quebradeira de coco. Mas a generosidade da família tinha preço: “A gente morava na terra, mas trabalhava para o dono como se fosse um aluguel.”
Sousa conta que cada terreno tinha uma “quitanda”, pequeno comércio improvisado que servia como supermercado das famílias. Muitos produtos eram pagos com coco, colhido pelas mulheres e utilizado para fazer o escambo. Caso faltasse algo na sua quitanda, o dono da terra não deixava a quebradeira vender o produto na quitanda do terreno ao lado. “Eles tomavam o coco da gente quando faltava produto para trocar. Era uma exploração, como se fosse para escravizar e submeter a gente. Era a mais pura agressão, mas a gente não considerava porque ninguém dava nome”, relembra Maria de Fátima Pereira, de 63 anos, quebradeira de coco no Zundão. O jeito era voltar para casa com uma mão na frente e outra atrás – sem coco e nem comida.
A violência não parava na porta das quitandas. Os donos da terra contratavam encarregados para vigiar a quantidade de coco quebrado. Quando acreditavam que as mulheres estavam mentindo sobre o coco obtido, castigavam as famílias levando tudo que elas tinham colhido. Foi em um episódio desses que um encarregado atirou nas costas do pai de Eliza, avô de Layane, quando ele tentava recuperar o coco colhido pela sua esposa. O homem precisou ser operado e quase morreu. Por causa das sequelas do atentado, não conseguiu mais trabalhar na roça. Foi uma época difícil para a família, que, para fugir da fome, dividia os irmãos entre a casa, a horta e o manejo do coco. O acidente rendeu uma pensão por invalidez, equivalente a meio salário mínimo – na época, em torno de 60 reais. Ironicamente, a tragédia que acometeu a família de Sousa foi a mesma que garantiu comida na mesa da família sem que eles precisassem passar pelas humilhações nas quitandas do Zundão.
Mas, para a maioria das famílias, sempre muito numerosas, não havia muita escolha de trabalho nem de vida. Eliza contou que, quando uma menina completava 10 anos, ela já havia deixado a escola – a depender do entendimento do pai, ela nem teria ido. A família entendia que, naquela idade, a menina estava pronta para segurar uma machadinha e quebrar o coco. Quase tão ruins quanto o trabalho braçal ou a violência eram os dias em que a menstruação chegava. Sem absorventes, ou qualquer item de higiene menstrual, as adolescentes recorriam a panos improvisados para segurar o sangue. O assunto era tabu até mesmo entre as mulheres. As meninas tinham vergonha de falar sobre as mudanças no corpo. Educação sexual não era algo a ser comentado em uma casa de família. Consulta no ginecologista era algo improvável. A maioria das quebradeiras só conheceu um consultório ginecológico após a vida adulta, mas há mulheres na comunidade que até hoje nunca fizeram acompanhamento. “A ignorância ainda é muito grande”, explica Sousa.
As mulheres conversam, e o som da lâmina encontrando a casca do coco se mistura a histórias, gargalhadas, causos e cantorias de mães e filhas. “Essas palmeiras não guardam só os cocos, mas os anos das nossas vidas com as pessoas que mais amamos”, diz Eliza. Em comunidade elas aprenderam tudo o que sabem, a força do golpe para quebrar o coco, o ponto de fervura do azeite, o preparo das comidas tradicionais, o cuidado com a horta. Aprenderam com a mãe, que aprenderam com as mães delas.
Aprenderam que, para conseguir juntar 1 kg de coco, é preciso quebrar entre 40 e 60 coquinhos. Dependendo da qualidade em que o fruto desce do cacho na palmeira, é preciso quebrar até bem mais. Caso a quebradeira de coco não tenha muita habilidade, o serviço pode durar mais de uma hora. No comércio da cidade, o quilo pode chegar a 4 reais – sem a casca é um pouco mais caro. Diante do trabalho cansativo e de pouco rendimento, a estratégia das quebradeiras de coco tem sido vender o azeite de babaçu. O litro pode ser vendido a 20 reais. As próprias quebradeiras produzem e vendem o azeite. Uma vez por ano, o Festival do Coco reúne as quebradeiras e os produtos derivados do babaçu, da palmeira e da casca. O babaçu é uma palmeira da qual tudo se aproveita, do caule até as folhas. O coco vira azeite, óleo, farinha, leite e sabão e a palha ou casca, que gera o artesanato e carvão para preparar os alimentos. A feira reúne tudo isso, comidas típicas, artesanato, hidratantes, sabonetes, doces e sorvetes. O evento não acontece há dois anos, por causa da pandemia, e retorna agora em 2022.
Millena da Mata, pesquisadora do Programa Pós Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPGMADER) da Universidade de Brasília (UnB), estuda desde 2019 a rotina das quebradeiras de coco. Em sua análise, as mulheres e as florestas de coco estão envolvidas numa relação ambiental e afetiva, em que umas dependem e cuidam das outras. As quebradeiras se intitulam como “filhas da Mãe Palmeira” e “guardiães da floresta”. “É uma relação quase cósmica entre as mulheres e o babaçu. Elas possuem um cuidado porque as palmeiras dão tudo que elas têm: alimento, comida, trabalho e a dignidade”, destaca a pesquisadora.
Em uma mata virgem, as palmeiras são resistentes às chuvas fortes e ao fogo, mas se o coco ou as folhas não são retiradas das árvores com prudência, a palmeira apodrece e morre. Como as próprias quebradeiras têm envelhecido e se aposentado, a prática tem sido abandonada. Sem substituição da mão de obra pelas gerações mais jovens, o cuidado com a floresta tem diminuído, o que afeta diretamente a saúde e a produtividade das palmeiras. Em um futuro próximo, é provável que sem quebradeiras de coco nas regiões, também não existam florestas de coco babaçu – e vice-versa. Ainda segundo a pesquisadora, as florestas das palmeiras têm sentido o avanço do agronegócio, com o aumento de pastos de bois e plantação de soja. Segundo o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), nos últimos anos desapareceram mais de 7 milhões de hectares de Babaçuais da Amazônia e do Cerrado.
Hoje existem cerca de 300 mil mulheres quebradeiras de coco espalhadas pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Pará, em regiões de transição entre Amazônia, Cerrado e Caatinga. Elas movimentam a economia de mais de 270 municípios nesses estados. E uma das bandeiras empunhadas pelas quebradeiras de coco é buscar garantir a quebra do coco pelas comunidades tradicionais, o chamado babaçu livre. O MIQCB surgiu nos anos 1990 com o propósito de representar as mulheres quebradeiras de coco nos estados que possuem terrenos babaçuais.
Três tentativas de aprovar uma lei do Babaçu Livre já passaram – e foram devidamente soterradas – no Congresso. O primeiro, em 1996, previa a proibição da derrubada de palmeiras no Maranhão, Pará, Piauí, Tocantins, Goiás e Mato Grosso. Tramitou por dois anos e foi arquivado em 1999. O segundo e o terceiro projetos foram arquivados em 2008 e 2015, respectivamente. Todos davam livre acesso das comunidades agroextrativistas aos babaçuais, além de proibir o uso de agrotóxicos por pulverização e garantir benefícios para comunidades tradicionais.
Sem sucesso no Congresso, as organizações de quebradeiras levaram a luta pelo babaçu livre para estados e municípios, mas as vitórias até agora são mínimas. De acordo com o MIQCB, apenas dez cidades maranhenses, uma no Pará e três no Tocantins aprovaram leis municipais protegendo as florestas e as comunidades. Tocantins tem também uma lei estadual no mesmo sentido. No Piauí dos Zundões, não há lei estadual ou municipal sobre o tema.
No território conhecido como Xixá, região que compreende o Zundão dos Camilos, quatro adolescentes de 15 a 18 anos se preparam para a aula de catequese que acontece aos sábado, na capela às margens da rodovia estadual PI-112. Raisa e Raiane Silva, Giovana Oliveira e Nadja Mesquita carregam cadernos, estojos, garrafinhas d’água e celulares com capinhas coloridas nas mãos. Estão concluindo o ensino médio e se preparando para o vestibular. Querem estudar, sair da comunidade, ter outros rumos. Nunca quebraram coco, nem querem: é algo muito antigo para elas, coisa de mulheres mais velhas.
As quebradeiras tradicionais entendem os novos projetos da juventude e não acham correto que quebrar coco seja a única opção das mulheres da região. Por outro lado, não acham justo que o trabalho delas seja extinto, e a floresta, idem. “Eu quero que daqui a vinte anos alguém possa vir fazer uma reportagem aqui e encontre esse lugar com gente, não com pasto. O campo é feito de gente, não de produtos”, finaliza Alves.
Vista como mais velha para as mais jovens e como muito jovem pelas antigas quebradeiras, Layane Alves, com seus 30 anos e sua machadinha, repete a tradição de quebrar coco na roda com as mulheres, enquanto desafia suas lembranças e seus sonhos. Ela se orgulha do que aprendeu com a mãe. Diferente de muitas mulheres jovens da região, não foi embora. Não completou o ensino médio, mas queria ser professora de crianças. Abandonou o sonho da sala de aula quando casou e se tornou mãe. Casou-se com um homem de lá mesmo, teve três filhos e vive de quebrar coco. Ela mora perto da mãe, uma diferença de dois quintais, que percorre rapidamente entre os matagais. Layane não pretende que a única filha mulher, a mais nova, de três anos, siga seus passos. Lara acompanha a mãe e a avó nas quebras do coco nos fundos dos quintais. Vez ou outra, a figura miúda aparece carregando o cacete e uma cestinha com os cocos já quebrados.
A expectativa das matriarcas – a mãe, a avó e outras quebradeiras – é de que a menina tome outro rumo, termine os estudos e vá para a universidade pública. Para isso, sua mãe segue quebrando coco babaçu e apurando azeite para garantir os sonhos da menina longe das machadinhas. Se tudo sair como planejado, a tradição daquela família se acabará com Layane Alves, candidata à última quebradeira de coco do Zundão.
https://piaui.folha.uol.com.br/ultima-quebradeira-de-coco/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_119&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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2 comentários:
Excelente matéria. Todo o nosso respeito e admiração as quebradeiras de côco. Elas são conscientes de que o babaçual existe porque tem gente que vive lá, e que luta pela conservação da natureza. Lutam por autonomia e querem ser livres do agronegócio e do veneno que estes fazendeiros espalham impunemente, principalmente nos territórios tradicionais que o agronegócio invadiu e que é conhecido por Matopiba (região do sul do MA, TO, PI e BA).
Acredito que o Zundão dos Camilos deveria mudar de nome por causa da terrível história de opressão e exploração que a família 'Camilos" submeteu as comunidades tradicionais naquela região. É uma "homenagem" sem sentido.
Viva as quebradeiras de côco babaçu!!!
Na Bahia a Secretaria de Desenvolvimento Rural está ajudando as quebradeiras daqui já fundaram uma associação com a ajuda do Estado e estão envasando com rótulos e vendem muito bem o óleo
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