Intercâmbio entre indígenas do Amazonas e do Maranhão que fazem a defesa autônoma do próprio território foi articulado pelo indigenista Bruno Pereira e realizado um mês depois de seu assassinato com o jornalista Dom Phillips
Quando o indigenista Bruno Pereira foi assassinado no Vale do Javari,
no Amazonas, em 5 de junho, ele tinha um encontro marcado. Viajaria até
a Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, para promover um intercâmbio
entre os defensores dos dois territórios. A ideia era que os experientes
Guardiões da Floresta Guajajara treinassem os parentes amazonenses do
Javari – que além de também serem ameaçados pela invasão do território,
ainda enfrentam a pesca ilegal e o narcotráfico na tríplice fronteira
com Peru e Colômbia.
“Quando uma árvore tomba, muitas sementes caem no chão e brotam novamente”. Foi assim que os quatro indígenas do Javari definiram a morte de Bruno quando desembarcaram no Maranhão. Binin Matis, Igson Kanamari, Manoel Marubo e Assis Mayoruna estavam ali como sementes para aprimorarem suas técnicas de autodefesa com os Guajajara.
Eles são recebidos por cerca de 50 guardiões, entre eles, Laércio,
que veste uma calça com camuflagem militar e tem o corpo pintado com
urucum e jenipapo. Ele usa no pescoço um colar com dentes de queixada, o
porco do mato. É um dos mais ativos nos cânticos e danças entoados para
saudar os visitantes.
Laércio Guajajara se emociona ao escutar os indígenas do Vale do
Javari falarem sobre Bruno. Levanta com lágrimas nos olhos e abraça com
força cada um deles. Dividem a dor de terem perdido um amigo – em 2019,
Paulino Guajajara fora assassinado diante de seus olhos por invasores do
território.
As equipes da Repórter Brasil e do jornal inglês The Guardian
acompanharam durante uma semana o encontro entre os povos. Nessa
cobertura, jornalistas e indígenas dividiam o mesmo sentimento de luto,
já que o jornalista britânico Dom Phillips – assassinado junto com Bruno
– era amigo e companheiro de trabalho das duas equipes. Entrevistadores
e entrevistados compartilhavam também o esforço para dar continuidade
ao trabalho de Dom e Bruno.
Presenciamos uma ação dos Guardiões da Floresta com dezenas de
indígenas armados com espingardas, pistolas, facões, arcos e flechas.
Andando enfileirados em 10 caminhonetes e duas motos pelas estradas
esburacadas de dentro do território, a sensação é a de seguir uma grande
operação oficial dos órgãos de fiscalização do governo brasileiro, que
se tornaram escassas na gestão do presidente Jair Bolsonaro. Sem apoio
governamental, os Guardiões defendem o território com seus próprios
corpos e estratégias.
A operação para em uma aldeia suspeita de ser conivente com os
madeireiros, quando os guardiões descem das picapes com as armas nas
mãos, se dividem em posições de guarda e interrogam o cacique. As
mulheres guardiãs assumem a frente no diálogo com a comunidade. Nos
últimos anos, elas estão cada vez mais presentes entre os guardiões. “A
gente pensa no futuro. Eu sou mãe e terei netos. Se a floresta for
destruída, como eles vão caçar e construir suas casas?”, afirma Zarawe
Guajajara, que segura uma espingarda durante a operação.
Zarawe Guajajara empunha uma das espingardas usadas pelos Guajajara; ela é uma das mulheres que passaram integrar os guardiões nos últimos anos (Foto: João Laet/Repórter Brasil) |
Após serem convencidos de que a extração de madeira não passa mais
por ali, eles partem para outra aldeia. Pouco à frente, identificam um
caminho por onde madeireiros estão atuando, encontram um trator atolado
em um córrego e colocam fogo na máquina.
“Decidimos incinerar porque é um câncer dentro do nosso território.
Não temos acordo com madeireiro. Estão desrespeitando nosso trabalho,
desrespeitando o Estado brasileiro e trazendo a destruição da floresta,
do meu povo, do nosso rio e da nossa chuva. Somos obrigados a fazer
isso, pois o estado brasileiro não faz”, afirma Olímpio Guajajara, um
dos líderes dos Guardiões da Floresta.
Enquanto o trator queima, Laércio Guajajara agacha e observa. “É uma
sensação de alívio para nós e para a floresta”, descreve. No final de
2019, ele e seu amigo, Paulo Paulino Guajajara, foram atacados por
caçadores que atuavam ilegalmente dentro da Terra Indígena. Lobo, como Paulino era conhecido, morreu.
Laércio recebeu quatro tiros, mas conseguiu sobreviver. Em abril, a
Justiça Federal decidiu que os dois acusados pela morte de Paulino irão a
júri popular.
Laércio conta que os guardiões nasceram por conta da omissão do
governo na proteção aos territórios demarcados. Na primeira ação que
realizaram, em 2012, eram apenas seis indígenas e foram obrigados a
devolver o caminhão apreendido por pressão exercida pelos madeireiros.
Passados dez anos, a realidade é outra – formalizaram uma associação,
investiram em treinamento e adquiriram equipamentos de monitoramento do
território, como drones, celulares e motos.
Quando o monitoramento de defesa foi iniciado, existiam 78 pontos de
entradas de invasores no território, principalmente madeireiros.
Atualmente, são apenas três entradas. A ação dos indígenas que defendem
seu território é elogiada por organizações de defesa ao meio ambiente,
mas eles pagam um preço alto ao assumir a responsabilidade do Estado. Em menos de 20 anos, foram 48 assassinatos do povo Guajajara, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Procurados, Funai, Polícia Federal e Ministério da Justiça não responderam ao pedido de posicionamento da reportagem.
Emboscada iminente
Depois de incendiarem o trator, os guardiões seguem pela trilha e encontram um caminhão e toras de madeira prontas para serem transportadas. Queimam tudo. O trajeto entre os dois pontos é tenso. São cerca de oito quilômetros de caminhada. A qualquer momento pode ocorrer uma emboscada em retaliação ao prejuízo causado com a destruição do equipamento. Acompanhamos os passos rápidos dos indígenas, atravessamos áreas alagadas e ficamos atentos a qualquer sinal de perigo.
Se nós, jornalistas, estamos aflitos, os indígenas do Vale do Javari
encaram a operação com naturalidade. Sentado na trilha aberta pelos
madeireiros, Igson Kanamari está mais à vontade para conversar ali –
distante 2,7 mil quilômetros de casa – do que em Atalaia do Norte (AM),
onde é vítima de ameaças por sua atuação na equipe de vigilância da
Univaja (União das Organizações Indígenas do Vale do Javari). “Não tenho
proteção para ter liberdade de caminhar, passear com minha família. Eu
me sinto preso dentro da minha própria casa”, afirma.
Pai de 11 filhos, Igson teme sofrer uma emboscada. Além de Bruno e Dom, lembra de outro amigo que foi assassinado, o funcionário da Funai, Maxciel Pereira dos Santos. “Não quero ser a quarta vítima”, afirma.
Igson foi um dos últimos a conversar com Dom e Bruno quando os dois subiram o rio Itacoaí para que Dom apurasse informações para o livro que estava escrevendo.
Após o desaparecimento de ambos, Igson foi essencial nas buscas,
assim como os outros indígenas, que ajudaram os policiais a encontrar os
objetos e os corpos. Além disso, o indígena foi testemunha da ameaça
que Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado, fez a todos eles, quando
passou de barco e levantou duas armas. Pelado foi o primeiro a ser preso
e confessou participação no duplo assassinato.
O trabalho da EVU, como é chamada a Equipe de Vigilância da Univaja, ainda está no início e um dos maiores desafios, segundo Igson, é superar a falta de Bruno Pereira – ele tinha papel fundamental na organização e estratégia dos defensores do Javari.
Superar a ausência é outra coisa que os Guajajara têm a ensinar –
para além da bem montada estratégia de defesa do território. Mesmo tendo
visto a morte do melhor amigo de perto, Laércio não desanima. “Paulino
sempre falava que se um de nós morresse não era para ninguém parar com o
trabalho. O que vale a pena é chegarmos ao objetivo de blindar nosso
território”, recorda. Ele aguarda agora a chance de retribuir a visita e
ir até o Vale do Javari para aprender com os vigilantes. “Os brancos
não vão acabar com nosso povo, com a nossa cultura. Era isso que o
Paulino falava e é isso que nós falamos até hoje”.
Laércio Guajajara é um dos pioneiros dos guardiões, ele foi alvejado por caçadores, em 2019 e viu seu amigo, Paulo Paulino, ser assassinado (Foto: João Laet/Repórter Brasil) |
Médico indegenista, Lucas Albertoni, era amigo de Bruno Pereira e conversou com indígenas sobre os cuidados necessários para não afetar a saúde dos indígenas isolados (Foto: João Laet/Repórter Brasil) |
Indígenas da Equipe de Vigilância da Univaja chegam ao aeroporto de Imperatriz (MA) para participarem de intercâmbio com os Guardiões da Floresta (Foto: João Laet/Repórter Brasil) |
https://reporterbrasil.org.br/2022/08/o-legado-de-bruno-e-dom-a-uniao-entre-os-vigilantes-do-vale-do-javari-e-os-guardioes-da-floresta-do-povo-guajajara/
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